domingo, 30 de janeiro de 2011

Devoro-te

Este mundo pertence a si mesmo
Sonho e pesadelo.

Este mundo está lotado
de imagens e mensagens
de automóveis e fumaça
de poluição e trapaça
de lixo e esgoto
de esperança e de medo.

Este mundo pertence a si mesmo.
Mais pesadelo do que sonho;
mais mentira que esperança;
menos proximidade e mais distância.
O ser humano nele gestado
exerce uma fuga permanente
querendo inventar outro mundinho particular 
nesse espaço apertado.
 
Mate quem está ao seu lado
pra viver um pouco mais folgado.
Elimine toda oposição:
compre gente!
pensamentos
imagens
mensagens.
 
Funde uma emissora
pague um programa de tv
coloque um antena na montanha
e preencha o silêncio
com mentiras.
Seja cínico e minta
descare, descarne
amasse, esmague
e coma!!!
O ser humano devora o mundo
e por ele é devorado
não o decifra
não o lê
não o estuda
só se arvora
a devorá-lo
devorando-se.

O ser humano num prato
a faca e o queijo
o mundo é o desejo,
o fruto despedaçado
em fatias para poucos.

Árvores, rios, animais,
mares, montanhas,
nuvens manchadas de poeira
ares contaminados de gases,
detritos industriais,
restos mortais da humanidade.

O mundo está acabando
a estrutura enferruja
e vai perdendo sua força vital.
A seiva está se esvaindo
E a esperança vai retornando
ao pretérito.

Deixe o mundo entregue
a si mesmo
cesse a luta e 
feliz anos passados.

Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel

Mal-aventuranças

Hoje, 30 de janeiro de 2011, o Dom Magella deu uma dentro. Em seu costumeiro discurso no jornal A Tarde de domingo, página A3, comenta o Sermão da Montanha. Num trecho de seu texto ele afirma o seguinte:
Do ponto de vista humano, a escolha operada por Jesus parece pelo menos estranha. As bem aventuranças do senso comum, com o espírito do mundo, soariam bem diversamente: Não bem-aventurados os pobres, mas bem-aventurados os ricos! Bem-aventurados os que riem. Bem-aventurados os espertos. Bem-aventurados os que pretendem, pedem e obtêm “tudo e de imediato”. Bem-aventurados os operadores de guerras que conquistam. Bem-aventurados os violentos e perseguidores dos inocentes. Essas são as bem-aventuranças do senso comum, e são bem praticadas. Os resultados estão sob os nossos olhos: a deliquência, os subornos, a usura, as guerras etc. Jesus simplesmente inverteu as bem-aventuranças.
É verdade: vivemos um tempo de mal-aventuranças. Desta vez concordo com o Dom. Vivemos num mundo cada vez mais corrompido, cada vez mais decrépito, mais falso, mais carregado de fingimentos, de discursos ocos e vazios e propagandas sobre coisas que deveriam ser feitas no passado, que não começaram a ser feitas no presente e que, provavelmente, serão feitas num futuro incerto, depois de muitos desvios de dinheiro público. O metrô é a vergonha viva que dilacera a alma soteropolitana. Jacques Wagner, João Henrique Carneiro, denominado por Geddel Vieira Lima de “O Menino Maluquinho”, além de ACM Neto, Walter Pinheiro, Paulo Souto e tantos outros políticos baianos estacionaram Salvador e a Bahia na vaga de seus interesses particulares, eleitoreiros e partidários e todos, todos eles, quando cocupam cargos no Executivo, comemoram números fajutos sobre educação, saúde, habitação, saneamento, infraestrutura, economia e outras áreas sociais, culturais e econômicas. Não percebo as tais obras estruturais para a Copa do Mundo de 2014. Samuel Celestino, também no jornal A Tarde de hoje, página B3, divulgou trechos de um discurso do nosso admirável Jorge Portugal contra a iminente destruição do Retiro São Francisco, na rua Waldemar Falcão, aqui bem pertinho de onde moro, em Brotas. Portugal afirma que


(...) Assim (as ‘deformações’ permanecem) ameaçando a vida com seus automóveis, sua poluição, seu abismo social e, sobretudo, com a ganância insaciável dos que se julgam seus donos. Pois são esses ‘pretensos donos da cidade’ que agora afiam suas garras e dirigem seu instinto predador para a Cada de Retiro São Francisco. Como uma fera voraz capaz de rasgar as entranhas e comer os próprios filhos, essa gente insana trama a destruição de um dos últimos refúgios que resistem em uma metrópole terminal.
Deformações, insanidade, instinto predador, ganância... Cada vez mais o limite entre certo e errado está se diluindo em nossa aceitação passiva e doentia de hábitos e atitudes nada salutares para o convívio social, em nome do lucro, do hedonismo, da mesquinhez que contamina a todos e, como um câncer, devora o já combalido tecido social. Hoje também, nossa combativa Malu Fontes trata justamente sobre o impiedoso imperador do mundo contemporâneo e sua ação perversa em busca de mais lucro e riquezas: o Capital. Sob o título “Dinheiro não Tolera Tudo”, Malu Fontes critica a ganância do mercado que não dá nem tempo de sofrer o luto devido às tragédias ocorridas na Região Serrana do Rio de Janeiro. “(...) é preciso reiniciar o bota e tira das tarjetas magnéticas dos cartões de crédito senão uma nova tragédia se abaterá sobre os sobreviventes das cidades serranas.” Afirma Malu Fontes. E continua: “(...) A lógica do dinheiro é o que, de fato, move o mundo. Ela é inexorável e não é dada à perda de tempo chorando sobre a lama derramada.” (Revista da TV, página 9). Essa história de que o Brasil está crescendo esconde uma fatalidade: o brasileiro, embora esteja consumindo mais, está, também, se consumindo mais.

Não é a economia que está nos servindo: somos nós que estamos servindo à economia. Compramos mais carros para ficar estressados em engarrafamentos; compramos mais apartamentos para ficar mais apertados. O banheiro mal cabe uma pessoa na maioria dos novos apartamentos, que custam bem mais do que o que valem; devemos bem mais do que compramos e compramos bem mais do que precisamos. Não contamos mais histórias, assistimos televisão. Estamos atentos às falsas e ininterruptas liquidações e mega liquidações bastante insinuantes e elétricas a ponto de dar choques nos desatentos consumidores que se tornam escravos de tais promoções e liquidações em trocentas prestações mensais. Os consumidores oferecem alegres os seus bolsos às algemas em forma de carnês e boletos e tornam-se escravos de vitrines, de apelos comerciais, de necessidades artificiais criadas pelo deus contemporâneo.

Tudo está à venda: a começar por prefeitos, vereadores, governadores, deputados, senadores, alfinetes, lixo, bosta, armas, drogas, imagens, mentiras públicas, uma nesga de sol em sua janela, um pedaço de mar em sua varanda, deuses, sonhos, entre tantas e tantas coisas demasiadas para a humanidade. Quando adquirimos algo, pensamos que aquilo vai contribuir para nossa felicidade, como deveria ser. Mas nem sempre, ou talvez nunca, o seja. Precisamos nos esvaziar para nos encher de coisas necessárias e fundamentais. Estamos vazios de nós mesmos. Nosso coração está suspenso em um corpo cheio de roupas, perfumes, jóias (imitações e bijouterias baratas), marcas de roupas, relógios, celulares. Tapamos, ou pensamos tapar, nossas marcas do tempo com cirurgias que o dinheiro paga, fingindo que somos mais jovens e mais bonitos do que somos. Fingimos, fugimos, vamos nos escondendo de nós mesmos, adiamos o encontro conosco e vamos criando outro “sermão da montanha”. O sofá, o bar, a tv, o som ensurdecedor das músicas inaudíveis de tão pobres e ensurdecedoras, o futebol, O Bahia, o Vitória, O título desse ano, muitas vezes deixam de ser lazer para se tornarem fugas da realidade que não suportamos mais.

Bem-aventurados os que conseguem se olhar no espelho de si mesmos e dialogar com seus demônios a ponto de exorcizá-los. Bem-aventurados os que ainda lutam por uma causa nobre; bem-aventurados os que dedicam boa parte de seu tempo para estender a mão ao próximo; bem-aventurados os que são sinceros; bem-aventurados os poucos políticos que não roubam, que não se aposentam sem trabalhar, que agem com decência e dignidade.


Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

A morte lhes cai muito bem

Leonardo Boff nos conta que a morte não é algo estático. Morremos desde o dia em que fomos concebidos, com pecado, com muito gosto, com muito prazer, deixando jorrar o sêmen que hidrata nosso riso. A vida e a morte merecem “o gozo supremo dos mortais”. Vivo e morro, e entendo isto de maneira surpreendente. A vida e a morte estão entrelaçadas permanentemente, convivendo/morrendo, fazendo história e glória. Algumas vezes essa relação ganha vida e a abundância, a paz, o amor, o perdão, a misericórdia e a solidariedade prevalecem. Algumas vezes o contrário ganha terreno, e a guerra, a ganância, o terror, a sordidez, a indiferença e a vingança ganham hegemonia. E assim caminha a humanidade desde que surgiu no planeta terra. A vida roda sobre a morte, como o Windows sobre o DOS. Rubem Alves afirma que a morte é nossa grande mestra. Aprendemos a viver porque a morte nos pressiona, nos avisa constantemente que o tempo está fugindo e, portanto, é preciso colher o dia. Alves nos diz que “quem sabe que o tempo está fugindo descobre, subitamente, a beleza única do momento que nunca mais será.” E o que nunca mais será morre em sua própria realização. Enterramos o momento no momento em que o vivemos. E quanto mais é significativo o momento, mais profundo é o sentimento de sua perda, mais tememos seu fim inevitável, mais desejamos repeti-lo. É assim: um paradoxo.

Vi aquele monte de corpos no chão de uma delegacia numa das cidades serranas do Rio de Janeiro onde aconteceu tragédia recente. Aquele monte de corpos, pessoas cheias de sonhos e conquistas para 2011, planejando mil e uma coisas para os próximos 300 e tantos dias desse ano, jaziam sem vida, cheias de morte e desesperança. Cruzaram o umbral aparentemente definitivo da humanidade e agora seus entes queridos vivos esperam contra toda a esperança, para poderem continuar além da dor que pulsa toda poderosa no coração de cada um deles, a partir da relação entre humanidade, sociedade e natureza. Aqueles mortos estão todos pronunciando palavras de vida, nos avisando da situação precária do ser humano. Ensinando-nos a viver cada segundo, a aproveitar cada minuto, pois a vida é um fio tênue que se desfaz na água, no vento, na rocha, na escada, no tempo. Através de seu personagem Guimarães Rosa nos avisa que viver é muito perigoso.

Muitos colegas meus, vizinhos, morreram prematuramente. Muitos. A maioria pela violência que os engoliram, outros poucos por doenças. A vida, para esses colegas, sempre foi mais próxima da morte. A vida, na verdade, para quem mora em bairros da periferia, sempre é mais próxima da morte. Não é uma fatalidade, não precisa ser. É uma realidade. A falta de escolas públicas de qualidade, de serviços aceitáveis de saúde, limpeza urbana, saneamento e lazer vão empurrando desesperanças para cima dos mais pobres. O Estado se apequena de tanto querer abandonar os seres humanos em situação mais precária que a própria vida em seu estado natural. Muitos entraram para o tráfico de drogas, não porque quisessem ou tivessem o “instinto” mais malévolo que o meu. Entraram no caminho da morte para ver se viviam mais um pouco menos morrendo. E terminaram morrendo prematuramente porque, como ratos de laboratório, foram sendo guiados no labirinto que a nossa sociedade e seu Estado desenha meticulosamente. Fica muito difícil para algumas subjetividades forjadas na periferia escaparem dessa armadilha bem preparada que leva muitos jovens pobres para o alçapão da morte. Sem escolas de qualidade que permitam um aprendizado eficaz assegurado por um ensino eficiente não há possibilidade dos jovens que freqüentam tais escolas de adentrarem com dignidade o mercado de trabalho. Sem esperança, sem acesso ao sistema de saúde, educação, serviços públicos essenciais aos jovens negros, na maior parte dos casos, são “guiados” para a saída do crime e vão se aproximando da morte, sendo nela envolvidos, marcados, selados, preparados no ritual do mundo marginal, adquirindo tatuagens, linguagem específica, expressões faciais, atitudes. São educados para matar e para morrer. A morte não lhes ensina vida, pois esta foi-se perdendo nos corredores percorridos do labirinto, forjando aqueles defuntos nas cadeias, nas ruas, nas beiras das cidades. A morte vai acontecendo no analfabetismo, nas doenças, nos barracos, no homem invisível que a sociedade não vê, faz questão de não ver, que o Estado o apaga definitivamente na aparente saída definitiva do labirinto. A morte, portanto, lhes cai muito bem.

Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

CANSAÇO

É. Estou cansado. Cansado de tanto cinismo e tanta mentira dos nossos representantes políticos. Estou cansado de João Henrique e de suas loucuras e indolência. Estou cansado de pagar tantos impostos para ter uma cidade imunda, insegura, mal cheirosa. Estou muito cansado de ouvir baboseiras e, obrigatoriamente, músicas de péssima qualidade, como se a cultura da Bahia fosse apenas isso. Estou cansado de ver um metrô pela metade, que nem inaugurou mas já está em ruínas. Estou cansado da ferrugem que corrói a sinceridade e as palavras apodrecidas dos representantes políticos. Estou cansado do Sindicato das Empresas de Transportes Coletivos de Salvador e de seus ônibus caros e lotados; estou cansado dos super salários dos vereadores, deputados e senadores; estou muito muito cansado do atendimento ruim dos funcionários da Receita Federal e dos demais funcionários públicos que exigem respeito do publico, mas não nos tratam com o mesmo respeito. Estou cansado da conta altíssima que a GVT está cobrando no telefone e da tarifa que somos obrigados a pagar.

Estou cansado de Jaques Wagner e das estratégias de poder do PT, do PSDB, do PMDB e do DEMO. Estou cansado dos engarrafamentos, das multas, do apetite desenfreado da Prefeitura e do Estado por nosso suado dinheirinho. Estou cansado da AGERBA e dos serviços ruins das mesmas empresas de transporte intermunicipal e interestadual. Estou cansado do falso discurso da “livre concorrência” do mercado. Estou cansado de Emiliano José, de Javier Alfaya, de Maurício Trindade, de Walter Pinheiro, de Geddel Vieira Lima, de ACM Neto, de Dom Primaz do Brasil, das propagandas mentirosamente deslavadas da Prefeitura e do Estado, do Centro Histórico, dos traficantes, dos policiais corruptos, das “belezas” de Salvador, de pagar R$ 8,00 reais para sentar numa cadeira de praia, da impunidade, dos filhos de uma puta que dirigem perigosamente.

Estou cansado dos bordões: “A luta continua”; O povo unido jamais será vencido”; “Estudante na rua a luta continua”; “A Bahia de todos nós”; “Prefeitura de um novo tempo”, “Cidade do sol”; “Atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu”, entre tantos outros. Estou cansadão das propagandas da Insinuante e da Ricardo Eletro; das falsas liquidações e ofertas que duram o ano inteiro; cansado dos aniversários da Ricardo Eletro e da Insinuante quando dizem que “quem ganha o presente é você”; Cansado do “Programa do Ratinho”, do “Vídeo Show”, do “Jornal Nacional de Wiliam Bonner e Fátima Bernardes”; dos programas de humor, dos filmes pornô, da propaganda mentirosa do “Bom Preço” e da bicicleta de 5.ª categoria que eles vendem. Estou cansado das religiões e do além que elas descrevem; estou cansado dos sermões de padres e pastores; dos conselhos dos “fiéis” e do deus que eles e elas pregam em suas paredes e em suas palavras. Estou cansado da Universidade do Estado da Bahia e do seu sindicato dos professores. Estou cansado das avaliações de fachada dos programas de formação de professores que a UNEB põe em prática.

É. Estou cansado. Estou de férias e desejaria afastar-me disso tudo por um tempo indeterminado. Algumas coisas não posso, infelizmente. É como dizia Gonzaguinha: “Não dá pra ser feliz.” Mas ando desconfiado, angustiado, com esse silêncio todo, que, para mim, reflete todo esse cansaço em construir um país novo, país que nunca acontecerá aqui, porque o futuro chegou antes mesmo da gente resolver nosso passado. Cansamos de viver que nada de novo acontecerá de fato. Tudo é apenas uma grande ilusão da história mal contada. Não vale consultar os livros didáticos, eles estão cheios de erros intencionalmente errados.


Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

“Todo Risco” da Ontologia Política

Todo Risco

A possibilidade de arriscar é que nos faz homens
Vôo perfeito no espaço que criamos
Ninguém decide sobre os passos
que evitamos
certeza de que não somos pássaros
e que voamos
Tristeza de que não vamos
por medo dos caminhos.  
                                                                           Damário da Cruz

Esta poesia – Todo Risco, de Damário da Cruz – expressa, numa bela síntese, a natureza da dimensão política do ser humano. É na possibilidade de arriscar, de escolher, de optar, de decidir que, segundo Aristóteles (2002), se encontra a origem da política no humano, que o distingue do animal, como destacamos nesta citação abaixo:

De modo muito claro entende-se a razão de ser o homem um animal sociável em grau mais alto do que as abelhas e os outros animais todos que vivem reunidos. A natureza, afirmamos, nenhuma coisa realiza em vão. Somente o homem, entre todos os animais, possui o dom da palavra; a voz indica dor e o prazer, e por essa razão que ela foi outorgada aos outros animais. Eles chegam a sentir sensações de dor e de prazer, e fazerem-se entender entre si. A palavra, contudo, tem a finalidade de fazer entender o que é útil ou prejudicial e, consequentemente, o que é justo e o injusto. O que, especificamente, diferencia o homem é que ele sabe distinguir o bem do mal, o justo do que não o é, e assim todos os sentimentos dessa ordem cuja comunicação forma exatamente a família do Estado. (ARISTÓTELES, 2002, Livro primeiro, Capítulo I, § 10, p. 14).

Tendo capacidade de discernimento, o ser humano não pode escapar da ética, é convidado, desafiado constantemente a fazer sua opção entre o certo e o errado, o bem e o mal. É também neste sentido que Paulo Freire aponta a politicidade intrínseca ao ser humano quando afirma que:
Já não foi possível existir a não ser disponível à tensão radical e profunda entre o bem e o mal, entre a dignidade e a indignidade, entre a decência e o despudor, entre a boniteza e a feiúra do mundo. Quer dizer, já não foi possível existir sem assumir o direito e o dever de optar, de decidir, de lutar, de fazer política. (FREIRE, 2002, p.58)
A existência humana em Paulo Freire nos lança inevitavelmente, à necessidade de tomar decisões acerca dessa existência, que é coletiva, que é social e histórica. Por isso, a existência humana em Paulo Freire não é um fato metafísico, algo dado antes do mundo. Ele mesmo afirma que
Na verdade, falo da ética universal do ser humano da mesma forma como falo de sua vocação ontológica para o ser mais, como falo de sua natureza constituindo-se social e historicamente não como um ‘a priori’ da História. A natureza que a ontologia cuida se gesta socialmente na história.(FREIRE, 2002, p. 20)
Temos a possibilidade, sempre há possibilidade de ruptura em algum ponto, não existe sistema infalível, não existe realidade permanente que a transcendência humana não supere. Mas esta possibilidade envolve riscos e, por isso mesmo, nos exige responsabilidade na opção que fazemos, na decisão que tomamos. O primeiro risco é o desvio da ética. Na opção que tomamos quem é que vai pagar por isso? Quem vai se beneficiar com isso? Quando ensinamos nossos alunos e nossas alunas das classes populares a perceberem as contradições de seu espaço social e político e a intervirem na reestruturação desses espaços, estamos nos posicionando política e ideologicamente contra os privilegiados daquele espaço social e político. Estamos garantindo possibilidades futuras em utopias, em projetos sociais, em projetos pedagógicos, em projetos políticos, e nas pequenas ações do cotidiano, quase invisíveis, quase imperceptíveis, mas que vão transformando o mundo, como uma semente de mostarda no segredo da terra se transforma em árvore imensa. Quando tomamos decisões em outra direção também estamos fazendo uma opção política explícita em favor da manutenção daquela situação de privilégios e marginalização e, portanto, transgredindo a ética, com afirmava o mestre Paulo Freire (2002). Toda decisão envolve aspectos e dimensões políticas e sociais, por isso, ela deve ser guiada pela ética.

Não podemos nos assumir como sujeitos da decisão, da ruptura, da opção, como sujeitos históricos, transformadores, a não ser assumindo-nos como sujeitos éticos. Nesse sentido a transgressão dos princípios éticos é uma possibilidade mas não é uma virtude. Não podemos aceitá-la. (FREIRE, 2002, p. 19)
E ninguém decide sobre os passos que evitamos... A decisão é nossa. Lembro que “já não é possível existir sem assumir” (FREIRE, 2002, p.58). Podemos, nós professores assumir projetos pedagógicos de ruptura com o status quo dominante da minoria privilegiada, ou podemos assumir projetos e ações que legitimem e reproduzam as discriminações sociais, econômicas, políticas e culturais, em favor da minoria privilegiada. São as nossas decisões que dirigem as nossas ações.


E é no domínio da decisão, da avaliação, da liberdade, da ruptura, da opção, que se instaura a necessidade da ética e se impõe a responsabilidade. A ética se torna inevitável e sua transgressão possível é um desvalor, jamais uma virtude." (FREIRE, 2002, p. 20).
Toda decisão exige responsabilidade e ética. E um profissional docente, que foi preparado para assumir com responsabilidade sua tarefa educativa, não pode se refugiar no argumento da ignorância. Ninguém que freqüentou uma formação sistemática de preparação de professores pode afirmar que não sabia das implicações políticas, sociais, e culturais de sua opção ao ensinar. Apesar de todas as regulações, de todas as imposições, ainda nos resta o espaço da decisão. Esta é nossa, mas ela afeta a nós e a outros; exige que seja acompanhada por uma reflexão profunda sobre nossas crenças, nossos valores, nossa percepção de sociedade e de ser humano.

Quando, enquanto sujeitos singulares e enquanto profissionais docentes, nós temos a consciência de que a pobreza não é um dado natural, que ela é “expressão do acesso às vantagens sociais” (DEMO, 2001, p.13), e de que o “atraso intelectual” de nossos alunos e alunas não é culpa de sua “preguiça” em estudar, então somos exigidos pela ética a assumir uma postura de reflexão crítica em torno desses fenômenos sociais e da análise de sua produção econômica, social e cultural, desmistificando as relações de poder que produzem a pobreza e o “atraso intelectual”. Nossa tarefa educativa tem uma exigência ética de caráter emancipatório, numa sociedade tão perversamente desigual como a nossa. Não podemos ficar neutros diante de uma realidade que nos afronta dia a dia. Não podemos legitimar as causas da pobreza e naturalizá-las. Não podemos nos consolar com a precariedade do ensino e assumir a fatalidade de sua ineficiência. Não podemos dizer que os filhos das classes populares não aprendem “porque isto” ou “porque aquilo”. Temos que mergulhar em nossa ação docente e descobrir o segredo do opressor que faz com que aceitemos a negação humana na escola, que destrua as nossas crenças e que esmague as nossas utopias para, dialogando com esse demoníaco, possamos nos emancipar e emancipar. Não há neutralidade política. De qualquer forma decidimos, optamos, pela beleza ou pela feiúra do mundo.


Temos a certeza de que não somos pássaros, isto sabemos. Mas... Voamos? Creio que sim. Voar é o exercício da liberdade, da criatividade, da transcendência. O ser humano não aceita o dado concreto, material. Este dado o desafia, o incita a superá-lo, a transformá-lo, a embelezá-lo, a humanizá-lo enfim, poetizando-o, revolucionando-o, produzindo cultura...
O artista conduz os outros homens e mulheres a um mundo de fantasia, onde seus anseios se libertam, afirmando desse modo a recusa da consciência humana em aceitar o condicionamento do meio. Mobiliza-se assim um potencial de energias submersas que, por sua vez, regressam ao mundo real, para transformar a fantasia em realidade. (THOMPSON, 1993, p.118)
Ângelus Silésius, místico medieval, nos alerta para a importância do sonho, da arte, da utopia quando afirma que “Se em teu centro um paraíso não puderes encontrar não existe chance alguma de, algum dia, nele entrar”. Quando lutamos, nos amparamos na memória pretérita que nos avisa, na esperança inacabável, da possibilidade futura, nos símbolos que fortalecem e dão sentido à nossa luta, oferecendo exemplos históricos, atualizando nossa memória, ressignificando os fatos históricos e seus personagens, nossas decisões e ações, instituindo-as de um conteúdo estético e revolucionário. O teatro, a poesia, o grafite, a dança, o canto, a música, a criatividade popular, em suas diversas manifestações, energizam nossos projetos e potencializam nossas ações, mobilizando “um potencial de energias submersas”, que nos ajudam a enfrentar com tenacidade os obstáculos de nossas lutas políticas pela força da utopia. Isto é voar!

E para voar perfeito temos que dominar metodologias e conteúdos que vamos ensinar; temos que conhecer as circunstâncias de nosso trabalho educativo em determinado local; temos que valorizar e articular as características do grupo discente com a metodologia mais adequada à aprendizagem daquele grupo; temos que conhecer as articulações do mundo do trabalho, da cultura, da política, da economia com o sistema educacional no qual estamos inseridos como profissionais da educação; temos que elaborar o projeto político-pedagógico da escola e seu currículo de forma participativa, levando em consideração as características e necessidades locais e tendo como referencial básico a função social da instituição escolar; etc. E lembramos ainda dos valores que a prática pedagógica deve trazer, a fim de dar significado emancipatório a tão importante intervenção...
Sou professor a favor da decência contra o despudor, a favor da liberdade contra o autoritarismo, da autoridade contra a licenciosidade, da democracia contra a ditadura de direita ou de esquerda [...] Sou professor contra a ordem capitalista vigente que inventou esta aberração: a miséria na fartura [...] [...] Sou professor a favor da boniteza de minha própria prática, boniteza que dela some se não cuido do saber que devo ensinar, se não brigo por este saber, se não luto pelas condições materiais necessárias sem as quais meu corpo descuidado, corre o risco de se amofinar e de já não ser o testemunho que deve ser de lutador pertinaz, que cansa, mas não desiste.(FREIRE, 2002, p. 115-116)
Tristeza de que não vamos por medo dos caminhos... O medo não pode nos paralisar. As vezes é vertiginoso o nosso olhar pelo espelho da nossa experiência social, política e cultural de nosso Estado e de nosso país. Pensamos no desemprego, na prisão, no isolamento, no esquecimento. Pensamos na dor, na morte, na perseguição... Os caminhos da luta política no Brasil e na Bahia são temerosos. Mas também lembramos “daqueles que morreram por outros que viverão”, como afirmou Vinícius de Moraes. Lembramos de Chico Mendes, de Santo Dias, de Irmão Josimo, da Irmã Dorothy e de tantos e tantos outros que lutaram pela vida em plenitude para os mais pobres, para os explorados, para os analfabetos, para os expulsos da terra, do acesso aos bens produzidos coletivamente. E esta lembrança nos anima, convoca nossas forças insuspeitas a construírem um mundo mais justo, mais solidário, democrático. Convoca-nos à humanidade plena que se realiza na luta política calcada na esperança, no sonho profundo de uma humanidade mais solidária, conciliada com sua vocação ontológica para ser mais, como afirmou o educador Paulo Freire. Coisa triste é ver um ser humano reduzido ao silêncio, destituído de esperança e de fé, esperando a morte como solução inevitável das desgraças pessoais e coletivas que sofre. “É triste ver esse homem, guerreiro, menino, com a barra de seu tempo por sobre os seus ombros...” Já cantava, choroso, Gonzaguinha.

A política, portanto, é da ordem do humano, está inscrita em sua gênese social e pessoal, em sua ontologia histórico-social. Arriscar-se, optar, dizer a sua palavra em direção ao mundo, a fim de pronunciá-lo/transformando-o, ensaiando vôos perfeitos nos espaços criados por nossos sonhos, nossa ação e nossa reflexão rumo à construção de uma sociedade solidária e democrática. Podemos também nos negar ao risco, à aventura de assumir nossa existência comprometida com a sociedade acima buscada. Nesse caso, também estaremos agindo a favor do autoritarismo, da competitividade, da corrupção, da violência e da manutenção da situação de marginalização em que se encontram as classes populares. Não nos neguemos enquanto seres políticos, pois, na mesma medida, estaremos nos negando enquanto seres éticos e, desgraçadamente, abrindo mão de nossa humanidade.

REFERÊNCIAS

ALVES Rubem. O Retorno Eterno. 24. ed. Campinas, SP: editora Papirus, 2003
ARISTÓTELES. Política. São Paulo, SP: Martin Claret, 2002.
BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. 8. ed. Brasília, DF: edit. Univers. de Brasília, 1995.
DEMO, Pedro. Pobreza Política. 6. ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2001.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Saberes necessários à prática educativa. 24. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002
RIBEIRO, Maria L. A Formação Política do Professor de 1.º e 2.º Graus. 4. ed. Campinas, SP: Autores Associados, 1995.
THOMPSOM, George. Marxismo e Poesia. Lisboa Editorial, 1993.