quarta-feira, 28 de maio de 2014

FRUTA FEIA, IDEOLOGIA MEDONHA



De modo muito amplo ideologia é um conjunto de ideias, crenças e valores que intenciona te convencer que você vive num mundo cheio de oportunidades de crescimento e desenvolvimento pessoal e coletivo, e que tudo depende do exercício de sua capacidade de criar, de desenvolver-se com esforço e denodo em busca de um melhor lugar na sociedade. Você começa a pensar que a culpa é sua por não ter sido selecionado (a) pela eficiente máquina econômica e social que separa os (as) melhores (as) e mais esforçados (as) dos (as) demais. É justamente assim que o competente publicitário Nizan Guanaes nos faz pensar em seu artigo intitulado “Fruta Feia”, publicado no jornal A Tarde de ontem, terça-feira, 27/05/2014, utilizando sua ideologia que poderia passar despercebida por quem não presta a devida atenção crítica ao encadeamento de suas ideias.

Quando eu afirmo que Guanaes é competente, disso não tenho dúvida e não é nenhuma ironia, até mesmo porque seria tolo fazê-la em função do seu reconhecimento social por conta do seu trabalho, incluindo o artigo que venho a criticar em sua essência. O autor acima começa a explicar o sucesso de um grupo de empreendedores voluntários de Portugal, liderados por Isabel Soares, que lançou a cooperativa denominada por eles de “Fruta Feia”, que dá nome ao título do seu texto. Guanaes destaca corretamente a criatividade e o senso de oportunidade que Soares e seus colegas utilizam para o sucesso do empreendimento. Segundo ele:

A ideia de Soares é brilhante, e sua marca também. Fruta Feia virou fruta bonita. E ganhou o mundo com propaganda gratuita via reportagem do jornal mais influente do planeta [New York Times]. Isso é comunicação do século 21. Isso é entender as mudanças em sua volta – crise econômica europeia, combate aos desperdícios, valorização do natural – e criar um conceito, um produto, uma marca que possam levar essas mudanças ao próximo patamar. Este é o caminho. (GUANAES, 2014, p. B6).

Até aí tudo bem. Ninguém em sã consciência vai discordar do exercício da criatividade na produção de uma novidade importante para a mudança salutar do comportamento no consumo e na produção, gerando dividendos importantes para os (as) empreendedores (as) e para a sociedade. A iniciativa destacada pelo publicitário brasileiro é importante e apresenta lições preciosas para nós. Contudo, o autor do texto que desencadeou essa discussão, extrapola de sua tarefa de nos apresentar uma iniciativa exitosa e invade o campo ideológico na tentativa de dirigir o sentido e seu efeito para a percepção do fenômeno de modo a nos embotar a consciência dos efeitos perversos que a exclusão econômica contemporânea provoca em nossa sociedade. Guanaes afirma, nesse sentido que:

Como minha querida amiga Arianna Huffington colocou em seu mais recente livro, o sucesso não é mais o acúmulo de dinheiro e de poder. Isso é insustentável. É preciso encontrar a terceira medida: a felicidade. E ela se sustenta em quatro pilares: bem-estar, sabedoria, encantamento e benemerência. Fruta Feia se sustenta nesses quatro pilares. E sua atividade? (GUANAES, 2014, p. B6).

Ora, o que está dito acima pode convencer algum jovem profissional iludido com a possibilidade de rápido crescimento na empresa ou crianças, mas não convence nem mesmo os (as) profissionais da área de comunicação, mulheres e homens experimentados, sagazes, que sabem que o bem-estar é um processo de luta contínua entre as classes sociais; que geralmente a sabedoria é colocada de lado em nosso mundo, que nossos motivos de encantamento estão cada vez mais distantes e que a benemerência quase sempre é desvalorizada em nosso contexto político, cultural e social brasileiro. Dinheiro e poder é insustentável para o sucesso? Em que mundo? Certamente que o da cabeça dele, que tem dinheiro e exerce um poder nada desprezível como intelectual orgânico do campo da comunicação, mantendo o seu sucesso em dia.

Portanto, embora o destaque dado à iniciativa da portuguesa Isabel Soares pelo publicitário Nizan Guanaes seja louvável, exemplo de onde podemos recolher elementos para a nossa ação e reflexão, a conclusão do seu artigo revela uma ideologia rasteira e pouco convincente, que pode contribuir para que muitos (as) jovens cheios de boa vontade e de garra sejam iludidos por uma realidade que não existe, mas que foi colorida artificialmente a fim de dourar a pílula da falsa igualdade de oportunidades para o exercício da criatividade, da iniciativa empreendedora que conduz ao sucesso nesse mundo tão desigual, conforme canta Gilberto Gil em sua “A Novidade”.

Joselito da Nair, do Zé, de Ana Lúcia, de Rafael, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel.   Com o auxílio de 


GUANAES, Nizan. Fruta Feia. A Tarde. Salvador, terça-feira, 27/05/2014. p. B6.

terça-feira, 27 de maio de 2014

INSTITUIÇÕES EM DECLÍNIO NA BAHIA



As greves estão acontecendo independente dos sindicatos, cujos líderes não mais representam os interesses das categorias que dizem representar. As greves dos motoristas de diferentes estados e municípios são mais um indício da falência das instituições, demonstrando, de modo ainda não muito claro, como a representatividade não está mais associada a um sindicato ou associação, mas à capacidade de mobilizar as categorias rumo às lutas pelas conquistas básicas das mesmas.

Rui Oliveira não representa mais ninguém, senão ele mesmo e seus interesses individualistas. Jota Carlos, e seus apaniguados, do mesmo modo, não representa interesse algum dos rodoviários da Bahia. Depois que o tesoureiro, Colombiano e sua esposa, foi assassinado e ninguém do sindicato se pronunciou com veemência, comecei a sentir cheiro de queimado naquela instituição. Não sei se a greve dos rodoviários é justa, mas é justo romper com um sindicalista que se tranca numa sala com representantes do Sindicato Patronal e com a Prefeitura, fechando acordos sem a convocação da assembleia da categoria.



Foi vergonhoso ver Hélio [Ferreira] saindo rodeado de seguranças para dentro do carro, sem dar satisfação. Soubemos do acordo que foi feito sem termos aceito pela imprensa”, conta Carlos Alberto, da Barramar [empresa de transporte coletivo urbano de Salvador]. (CORREIO, 2014, p.31)



Esses falsos representantes traem os interesses de sua categoria em função, claro, de benesses que recebem do poder político institucional. De modo geral há uma crise de credibilidade na justiça, na polícia, no sistema educacional, no sistema de saúde e no governo. É bom lembrar da greve recente da APLB em que professores e professoras, fizeram-na acontecer a contragosto de Rui Oliveira e seus apaniguados. As propagandas mentirosas não conseguem mais enganar tanta gente durante tanto tempo. Mas a esperança não acaba. Ainda bem que essa realidade tosca produz seu antídoto: mulheres e homens sérios, honestos tais como o Desembargador Eserval Rocha, Presidente do Tribunal de Justiça da Bahia; Rita Tourinho, do Ministério Público do Estado da Bahia, entre outros e outras autoridades decentes que atuam no sentido de resgatar a decência e o pudor no trato da coisa pública. A própria Igreja Católica, vendo-se enredada pelo mal crescente em seu seio, produziu o Papa Francisco, que vem mostrando claramente sua bondosa, segura, ativa e firme liderança no enfrentamento de questões difíceis que o poder político e econômico da Igreja não queria enfrentar, ou mesmo se beneficiava do silêncio funesto que alimenta a corrupção e a indecência em seu seio.  



Sinceramente, a polícia também passa uma visão muito negativa, algumas vezes associada ao crime e ao desrespeito às pessoas simples que vivem em favelas e bairros populares. O Governo Wagner tornou-se refém do aparelho repressor do estado. Outra coisa grave são os linchamentos. Significam isso mesmo: faliu a polícia, faliu a justiça, faliu o estado. O caos e a barbárie estão a um passo. Boaventura de Sousa Santos fala na divisão contemporânea entre zonas bárbaras e zonas civilizadas dentro de uma mesma cidade. Mas aqui em Salvador as zonas civilizadas não mais existem. É o setor privado que está atuando mais que o estado. Em minha rua pagamos seguranças que ficam de carro e motos circulando 24 horas. Todos os condomínios pagam. Eu, em relação aos serviços públicos, não preciso do estado. Pago plano de saúde, pago pedágio, pago segurança privada, pago colégio particular, e, mais que tudo isso junto: pago impostos e sustento a burocracia mais burra do planeta. Estamos muito próximos da França do século XVIII. “Antonieta” que se cuide!  Vamos começar a guilhotinar agora em outubro, nas eleições, pois os líderes sindicais começam a perder suas cabeças vendidas a preços módicos contra suas categorias profissionais. "O carro de Jagrená" perdeu o controle ladeira abaixo.


Joselito M. de Jesus

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Filosofia, preconceito e copa do mundo

Vocês, de fato, concordam, em parte, com o que Iglésias nos ensina sobre as características principais do pensamento filosófico, texto disponibilizado no AVA da disciplina que eu sei que vocês ainda não leram. Iglésias (1992) afirma que:

O saber filosófico: 1) é um saber “de todas as coisas”, um saber universal; num certo sentido, nada está fora do campo da filosofia; 2) é um saber pelo saber: um saber livre, e não um saber que se constitui para resolver uma dificuldade de ordem prática; 3) é um saber pelas causas; o que Aristóteles entende por causa não é exatamente o que nós chamamos por esse nome; de qualquer forma, saber pelas causas envolve o exercício da razão, e esta envolve a crítica: o saber filosófico é, pois, um saber crítico. (IGLÉSIAS, 1992, p. 13)
Logo, em relação ao pensamento crítico, vocês concordam com a autora, o que já é meio caminho andando. Mas, o que vem a ser crítico? Qual o sentido filosófico para tal expressão? Crítico, não é, como já falei e escrevi, uma pessoa chata, que vê o mundo e a humanidade apenas como degradação, com ceticismo. Uma pessoa dotada de criticidade desconfia dos arranjos sociais dados, tidos como permanentes e inevitáveis. Desconfia das concepções apressadas de ser humano de determinado lugar, colocando-lhe estereótipos que o identificam socialmente, tal como os judeus – que segundo a ideologia são todos uns mesquinhos -; os baianos – que segundo essas concepções ideológicas são todos uns preguiçosos -, ou que o baiano é lento e preguiçoso por causa de suas raízes africanas, etc. Então, ser crítico é trabalhar na desconstrução dessas ideias esdrúxulas sobre o outro e sobre o mundo, fundamentando a crítica em dados sobre trabalho, emprego, participação do negro no mercado de trabalho, a mulher negra na sociedade contemporânea, enfim, pesquisas realizadas a fim de desconstruir tais falsas ideias sobre um povo, ou sobre qualquer coisa. Vou dar um pequeno exemplo com a música de Chico César, Beradêro:

 Os olhos tristes da fita
rodando no gravador
uma moça cosendo roupa
com a linha do Equador
e a voz da Santa dizendo
O que é que eu tô fazendo
cá em cima desse andor

A tinta pinta o asfalto
Enfeita a alma motorista
É a cor na cor da cidade
Batom no lábio nortista
O olhar vê tons tão sudestes
E o beijo que vós me nordestes
Arranha céu da boca paulista

“É a cor na cor da cidade, batom no lábio nortista. O olhar vê tons tão sudestes e o beijo que vós me nordestes arranha-céu da boca paulista...” Olhem só que criação fantástica da inteligência humana expressa na poesia concreta de Chico César! Que crítica inteligente! Quer dizer: enquanto as pessoas de São Paulo, Rio (sudeste) ficam deslumbradas com os edifícios altos, com as mega construções que se apresentam diante dos seus olhares, como se isso expressasse a condição superior de “lá eles e elas” diante de nós, os “inferiores nordestinos e nortistas”, Chico César chama a atenção para o fato de que quem construiu isso tudo no braço, no cansaço, no suor, foram os nordestinos e os nortistas, muitos deles rejeitados pelos que se denominam “paulistas legítimos”, “sulistas de origem alemã, ou europeia de modo geral”. Tem idiotas que adoram referendar suas origens na Europa, como se isso lhes desse algum status por empréstimo, quando, de fato, só demonstra o quanto são guiados por ideologias superficiais que nos aproximam do neonazismo e nos distanciam da solidariedade. Temos nossas raízes europeias, sim. Que bom. Mas não devemos negar nem submeter nossas raízes africanas e indígenas a tal hierarquia fantasiosa e maléfica para o ser humano brasileiro.

Relendo o texto estava percebendo um erro por mim cometido no mesmo. Refiro-me de modo generalista e superficial aos sudestinos e sulistas. De fato, só refiro-me àqueles e àquelas que nos tratam com escárnio e desprezo, sustentados pelo preconceito irracional. Muitos nordestinos e nortistas são bem recebidos e acolhidos em São Paulo, Rio de Janeiro e no Sul do país. Há muitas pessoas solidárias que reconhecem o valor de nossas culturas e os valores que delas emanam. Nesse sentido, minha reflexão acima é pobre e infeliz, embora não deixe de identificar problemas advindos de preconceitos históricos construídos contra os nossos modos de ser, de falar, de viver, de sentir, de produzir a existência.

Então, Chico César denuncia essa situação, mostrando que nossa nação deve enxergar para além da aparência que os tons sudestes e, acrescento eu, sulistas, oferecem em sua nociva prática discursiva, percebendo a importância histórica dos nordestinos e nortistas na luta pela sobrevivência. Essas visões são “arranhadas” pelo beijo nordestino que vem sendo dado historicamente na construção desse Brasil. Essa foi a bela forma de expressão usada pelo brilhante Chico César para expressar seu pensamento crítico. Logo, o papel da arte é importantíssimo na percepção crítica do mundo. Assim como na poesia e na música tem também no quadros de Salvador Dali, de Pablo Picasso, de Cândido Portinari, no teatro, na fotografia, etc. A arte, pelo menos uma parte de suas expressões, traz a crítica, ou a possibilidade dela, denunciando situações de negação humana e também enaltecendo situações de liberdade plena, de lucidez emancipatória, de criação fértil, do gozo pleno da paz e da alegria.
 
Gente, vocês não podem aceitar ficarem na condição de pessoas que pensam pouco, ao contrário, devem sofisticar o seu pensamento e desenvolver essa capacidade imensa de pensar criticamente o mundo, a religião, os discursos, as propagandas, as concepções sobre o povo, a história, o futuro, tudo, como é da ordem do pensamento filosófico. Eu desejo o conhecimento e a educação como um remédio filosófico para a nossa alma brasileira.

Em tempo
Mas o que quero comentar é sobre o tempo. Ora vocês hipervalorizam o futuro e desvalorizam o presente, ora desvalorizam o futuro e se agarram ao presente “deixando a vida vos levar”. As vezes “o agora”, o imediato, é importante. Embora eu tenha entendido o sentido a que vocês se referem, como as pessoas que querem curtir o mundo adoidado sem planejar o futuro, preparando-se para ele. É a teoria psicanalítica “do homem sem gravidade”. O ser humano sem gravidade é aquele que não é preso a nada, a valores, a obrigações e responsabilidades, a respeito, nada. Aquele que liga o som do seu carro ou de sua casa nas alturas sem se preocupar com seu vizinho, com as demais pessoas; aquele (a) que fuma ou cheira sua droga ou ingere seu álcool e vai dirigir. Ou aquele (a) que transa sem camisinha sem preocupar-se com as consequências do seu ato imprudente. Esse homem sem gravidade é o ser humano do nosso tempo. E não está apenas em Pintadas, Capela do Alto Alegre, Ipirá ou Pé de Serra. Está em todo o mundo. O “homem sem gravidade” é um fenômeno mundial, segundo Charles Melmann, psicanalista, seguidor de Lacan. Nesse sentido entendi a crítica de vocês sobre as pessoas pouco se importarem com o agora.

Contudo, podemos viver o agora de uma forma que não passemos nossa vida e nossa realização pessoal e coletiva projetada num futuro que nunca chega. Tem gente que projeta sua “felicidade” no futuro, quando o Bahêa ou o Vitória for campeão; quando o filho ou a filha nascer; quando ganhar na loteria; quando passar no vestibular ou quando sair da faculdade com o diploma na mão, ou mesmo quando aquela pessoa disser sim para o nosso amor. Ter esperança é bom, ter ilusão é péssimo. Eu penso com Osvaldo Montenegro quando canta alto que “quer ser feliz agora”...

 Se alguém disser pra você não cantar
deixar teu sonho ali pr'uma outra hora
que a segurança exige medo
que quem tem medo Deus adora

Se alguém disser pra você não dançar
que nessa festa você tá de fora
que você volte pro rebanho.

Não acredite, grite, sem demora...
Eu quero ser feliz Agora!

O medo é importante. Ele nos salva de muitas tragédias. Mas existe uma tênue diferença entre medo e covardia. O medo pode nos trazer prudência, mas não pode nos paralisar, como afirmava o mestre Paulo Freire. Nossos políticos brasileiros fizeram uma festa e deixaram seu povo de fora. A Copa do Mundo é de um mundinho bem restrito, esta festa não é nossa. E o que fazer? Fingir que isto não acontece e torcer pela vitória de uma, como o próprio nome diz, “seleção”? Torcer para nossos jogadores multiplicarem suas riquezas através da venda de sua valorizada força de trabalho enquanto o torcedor se contorce para viver? Nããããão! É preciso sair às ruas e gritar: NÓS QUEREMOS SER RESPEITADOS AGORA! NÓS QUEREMOS SAÚDE, EDUCAÇÃO, SEGURANÇA, HABITAÇÃO, TRANSPORTE, PARTICIPAÇÃO DEMOCRÁTICA AGORA!  Nesta “festa pobre que os homens armaram pra nos convencer” só entra quem paga muito caro. Os castelos-fortalezas (estádios) foram erguidos com empréstimos generosos do BNDES para que os homens fortes da FIFA fossem agraciados em seus desejos, caprichos e exigências. Foi transferência de patrimônio público para enriquecimento privado, como foi feito na ditadura. Por isso ninguém está nem aí para o preço desses castelos medievais. Não se trata de uma questão técnica, mas de uma questão mais ampla das determinações do capitalismo mundial para o Brasil. Quem já procurou agradar os brasileiros em suas exigências e necessidades? Trouxeram a Copa, mas não trouxeram o mundo. Não trouxeram o respeito e dignidade ao nosso mundo. O que trouxeram foi a imposição de um modelo imundo de mundo para o nosso mundo. Tal como os portugueses em 1500, trouxeram propagandas, bugigangas, ilusões  para nós comprarmos e torcermos, como índios à beira-mar. Nos espelhos que nos dão, olhamos e, tal como os índios de abril de 1500, talvez nos espantemos com a imagem que é projetada. Devemos decidir ativamente que tipo de povo nós queremos ser, que tipo de povo estamos sendo: uma pátria de chuteiras, ou povos unidos num imenso território a serviço da diversidade, da solidariedade, da produção democrática da nação que respeita e trata dignamente sua gente.  

Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel



IGLÉSIAS, Maura. O que é filosofia e para que serve. In Antonio Rezende (org.).Curso de filosofia. 5. ed. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Editor, 1992.
Encontrado em http://letras.mus.br/chico-cesar/128518/ Acesso em 28/03/2014, 11: 25.

terça-feira, 13 de maio de 2014

PRÁXIS


O filósofo Adolfo Sánchez Vázquez (2007)[1] estabelece a diferença entre atividade, atividade humana e práxis. A formiga faz atividade, embora não pense a ação antes de fazê-la. O fígado, o pulmão, o coração realizam atividades sem as quais o organismo não poderia continuar vivo. Mas, acredito, esses órgãos também não pensam a ação antes de fazê-la. Eles realizam a atividade e pronto. A formiga, a aranha, a abelha realizam atividades que não planejam, pois esses seres cumprem o que está determinado pela filogênese, ou seja, realizam o que sua espécie determina geneticamente ao longo do seu desenvolvimento natural num longo processo de adaptação. Segundo Vázquez (2007, p.219) Por atividade em geral entendemos o ato ou conjunto de atos em virtude dos quais um sujeito (agente) modifica uma matéria-prima dada, [...] produzindo um produto. Assim, nesse entendimento, todo ser vivo, todo órgão, toda máquina, realiza uma atividade. Vázquez esclarece que, para ser atividade, para ter esse conceito de atividade, é preciso que os atos singulares se articulem ou estruturem, como elementos de um todo, ou de um processo total, que desemboca na modificação de uma matéria-prima. Uma teia de aranha é o produto da atividade da aranha que é, por sua vez, um conjunto de atos articulados entre si. A colmeia de uma abelha e o formigueiro das formigas ou um ninho de um pássaro são um todo, produtos de atividades onde há transformação de matéria-prima para esses fins. Porém, são atividades meramente de caráter biológico, natural.
A atividade humana é também um conjunto de atos articulados entre si que transformam uma matéria-prima tendo como resultado um produto. Mas, segundo Vázquez

A atividade propriamente humana apenas se verifica quando os atos dirigidos a um objeto para transformá-lo se iniciam com um resultado ideal, ou fim, e terminam com um resultado ou produto efetivo, real. Nesse caso, os atos não só são determinados causalmente [não confundir com “casualmente”, que vem de “acaso”, “causalmente” vem de “causa”] por um estado anterior que se verificou efetivamente – determinação do passado pelo presente –, como também por algo que ainda não tem uma existência efetiva e que, no entanto, determina e regula os diferentes atos antes de desembocar em um resultado real; ou seja, a determinação não vem do passado, mas sim do futuro. Esse modo de articulação e determinação dos diferentes atos do processo ativo distingue radicalmente a atividade especificamente humana de qualquer outra que se encontre em um nível meramente natural. (VÁZQUEZ, 2007, p.220-221)
Ou seja: a atividade sai do nível biológico e entra no nível social e histórico, tornando-se atividade humana. O ser humano pensa a ação antes de fazê-la, ele planeja, antecipa no presente o futuro que ele deseja em forma de plano, que vai “determinar e regular os diferentes atos antes de desembocar em um resultado real.”
Não entenderam ainda? Pensem então na construção de um prédio. Antes dele existia um terreno cheio de mato e, no caso da Bahia, de lixo. Algum investidor passa e avalia o terreno: o passado do terreno é determinado pela constatação do presente, da avaliação do potencial de construção feita sobre ele. Logo, imagina o futuro: um prédio de tantos andares – que para ele, vai gerar muita grana – com dois, três ou quatro apartamentos por andar de três e quatro quartos etc., etc., etc. Uma empresa de engenharia é contratada, faz o levantamento da resistência do solo, limpa o terreno, elabora o projeto, em forma de plantas – plantas baixas, plantas transversais, plantas das fachadas, plantas elétricas, plantas hidráulicas, entre outras. Embora o prédio ainda não exista de fato, só idealmente, na cabeça das pessoas que o planejam nos projetos. As plantas representam o futuro que ainda não existe, mas que determina e regula as atividades presentes de profissionais diversos como pedreiros, serventes, encanadores, eletricistas, ladrilheiros, ferreiros, engenheiros, marceneiros, entre tantos outros envolvidos naquela obra. Assim, o futuro – o edifício ainda inexistente – determina e regula as atividades humanas, no presente, de todos os envolvidos naquele empreendimento em processo de construção. Entenderam agora? E é assim com a agricultura, a pesca, a pecuária, a educação, enfim com todas as atividades humanas. O trabalho é uma atividade humana privilegiada porque, antes de qualquer outro ato histórico, o ser humano, como dizia Marx na Ideologia Alemã, precisa produzir a sua existência e, para isso, ele pensa a ação antes de executá-la, nenhum animal faz isso, pelo menos até agora.

Essa prefiguração ideal do resultado real diferencia radicalmente a atividade do homem de qualquer outra atividade animal que, externamente, pudesse se assemelhar a ela. “Uma aranha – diz Marx – executa operações que se assemelham às manipulações do tecelão, e a construção das colmeias pelas abelhas poderia envergonhar, por sua perfeição, a mais de um mestre-de-obras. Mas há algo em que o pior mestre-de-obras leva vantagem, de imediato, em relação à melhor abelha, e é o fato de que, antes de executar a construção, projeta-a em seu cérebro. (VÁZQUEZ, 2007, p.223)
Vamos percebendo claramente que não podemos comparar a atividade animal à atividade humana pelo seu resultado, produto (exterior). A consciência humana que produz fins, que adequa e elabora a tecnologia necessária, que elabora conceitos, teorias, objetivos, finalidades, princípios, hipóteses e leis, faz toda a diferença. É preciso que nós entendamos de vez que, no produto, está tanto a transformação objetiva da matéria-prima em produto, quanto à transformação subjetiva do ser humano que o produz. Na atividade humana a exterioridade (produto) e a interioridade (subjetividade humana – inteligência, perspicácia, criatividade, persistência e demais potencialidades pessoais e coletivas) se encontram, num processo permanente de transformação.
Vázquez (2007) afirma que toda práxis é atividade humana, mas nem toda atividade humana é práxis. Práxis, professor? Por que o autor acima ainda faz essa diferenciação entre atividade humana e práxis? Não está complicando demais? Não. Respondo eu.
Muitas atividades humanas não são práxis. Por que Joselito? Porque, segundo Vázquez (2007) a atividade humana tem duas dimensões: uma é a atividade cognoscitiva, a outra é a atividade teleológica. A atividade cognoscitiva se refere a uma realidade passada ou presente, que se pretende conhecer sistematicamente através do metódico exame teórico. A teleológica refere-se a uma realidade futura, ainda inexistente, que se pretende concretizar através da ação prática de transformação da realidade presente que negamos porque nos nega. “Por outro lado, a atividade cognoscitiva em si não implica uma exigência de realização, em virtude da qual se tende a fazer do fim uma causa da ação real.” (p.223). De fato, a consciência de uma situação e o conhecimento de uma realidade e de seus desdobramentos não nos leva a agir. Podemos até rejeitar um futuro que previmos através de nossa atividade teórica, que é também uma atividade humana.

Quer se trate da formulação de fins ou da produção de conhecimentos, a consciência não ultrapassa seu próprio âmbito; isto é, sua atividade não se objetiva ou materializa. Por essa razão, tanto uma como outra são atividades; não são, de modo algum, atividade objetiva, real, isto é práxis. (VÁZQUEZ, 2007, p. 225)
Somente quando a atividade cognoscitiva e a teleológica se encontram na transformação real, prática, de um objeto, de uma realidade é que a práxis acontece. Entenderam? Não é o blábláblá, como diria Paulo Freire no seu Pedagogia do Oprimido. Nem a atividade por si mesma - o ativismo - destituída de reflexão, de atividade cognoscitiva, mas a união dialética entre teoria e prática visando e agindo na transformação da realidade é que constituem a práxis. “Em consequência, [na práxis] as atividades cognoscitiva e teleológica da consciência se encontram em uma unidade indissolúvel.” (VÁZQUEZ, 2007, p. 225)
Portanto, a experiência, destituída de reflexão crítica, não é parâmetro para o conhecimento da realidade, no sentido de seu conhecimento teórico e de sua transformação prática, prática esta dirigida pelos fins que a teoria propiciou. Entenderam gente? Isso não significa que uma pessoa analfabeta, envolvida num grupo, movimento ou instituição social, não seja capaz de transformação da realidade. Olha o caso dos sem terra. Mas fiquem sabendo que os sem-terra estudam em grupo, refletem teoricamente a sua realidade, identificam os princípios e as conexões que os mantêm na condição de “sem-terra” e agem, dirigidos por suas lideranças, no sentido da transformação de tais princípios e conexões que dirigem a realidade política, social, econômica e cultural que os negam enquanto sujeitos de direitos. O objetivo dos sem-terra é maior do que o simples objetivo de passarem a estar "com-terra". Não é um objetivo de poder com restrita finalidade econômica, mas com uma finalidade político-filosófica mais ampla: a de que a terra não tenha dono, que seja de todos e todas. Para isso, não basta "ter a terra", é preciso mudar inteiramente o sistema baseado no princípio geral da propriedade privada.

Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, TENTANDO ESTAR NA PRÁXIS, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel



[1] VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Filosofia da práxis. 1. ed. Buenos Aires: Consejo Latino Americano de Ciencias Sociales – CLACSO; São Paulo: Expresso Popular, Brasil, 2007.