sexta-feira, 16 de setembro de 2016

O BICO DA ÁGUIA E O ENCURTAMENTO DA HUMANIDADE BRASILEIRA

Dos animais nada espero além da sua própria animalidade inscrita no âmbito natural. Os animais não são seres políticos e nem éticos e, por isso mesmo, seria grande debilidade mental levar um leão aos tribunais por ter devorado um gnu. Não pode ser classificado como homicídio, porque é da ordem natural da relação presa-predador inscrita na natureza, bem como não se julga a morte de milhões de galinhas, porcos, peixes e bois para alimentação humana. As ordens jurídica e política são da ordem do humano, porque somente os seres humanos, reza a lenda, têm capacidade de decisão, de opção, de escolha e, portanto, somente a eles pode ser imputado a responsabilidade por essa condição.

O único animal que fala é o ser humano, o ser de linguagem. E aí está a sua maior força e a sua maior fraqueza. A linguagem lhe permite simbolizar o mundo, construindo-o permanentemente, nomeando-o e constituindo-se a si próprio. Contudo, a linguagem também lhe cobra um preço pela sua ousadia em ter começado a falar, a decidir e a escolher.
Uso uma expressão trazida por Lacan de que, quando somos colocados na linguagem, pagamos isso como se fosse o pecado original. E carregamos tendo que suportar um pecado que não tem deus que tire. (SOUZA, 2016, p. A6)
Tal como Prometeu, punido por revelar o segredo do fogo aos mortais, com uma águia lhe comendo o fígado todos os dias, assim também o ser humano é punido constantemente pela sua consciência amarrada inevitavelmente à ética, ou não?
Quer dizer, mais que um ser no mundo, o ser humano se tornou uma Presença no mundo, com o mundo e com os outros. Presença que, reconhecendo a outra presença como um “não-eu” se reconhece como “si própria”. Presença que se pensa a si mesma, que se sabe presença, que intervém, que transforma, que fala do que faz mas também do que sonha, que constata, compara, avalia, valora, que decide, que rompe. E é no domínio da decisão, da avaliação, da liberdade, da ruptura, da opção, que se instaura a necessidade da ética e se impõe a responsabilidade. A ética se torna inevitável e sua transgressão possível é um desvalor, jamais uma virtude. (FREIRE, 2002, p.20)
O nosso grande problema de cada dia no Brasil de hoje e de desde sua invasão pelos portugueses, é quando a transgressão da ética não mais provoca reflexão, nem mais produz o sentimento de culpa nem de vergonha nos seres de mau caráter, mas revela um cinismo descarado que enoja os que ainda acreditam e defendam a ética como reguladora dos nossos atos. A “águia” não come mais o “fígado” daqueles/as que roubam, dos/as ardilosos/as que enganam utilizando o nome de Deus para enriquecimento, daqueles/as que matam, daqueles/as que mentem, daqueles que causam sofrimento aos outros.

Mas, acredito eu, um problema maior ainda é quando a maioria se cala diante de tanto cinismo, de tanta usurpação, de tanta impunidade. A ordem jurídica não mais consegue pronunciar sua justiça, ao contrário, ela foi montada para beneficiar os ladrões, os assassinos, corruptos, os estelionatários, os negociantes da morte, entre outros. A ordem política brasileira é visivelmente a expressão institucional dessa situação. Ela própria é erguida sobre o financiamento criminoso de campanhas eleitorais; Essa ordem política é também a expressão da representação manipulada dos grandes empresários e investidores brasileiros e mundiais que aqui garantem a reprodução da miséria geral em função de mesquinhas farturas particulares. Mas, quando a maioria se cala, há um consentimento social da malandragem que impede a águia de bicar o fígado geral de nossa nação. A racionalidade humana carrega a possibilidade de transgressão da ética, carrega uma maldade intencional buscando a concentração de poder e renda, destrói a vida dos seus semelhantes em função do seu desejo mesquinho de ser “o dono do pedaço” não se contentando apenas com o seu pedaço, retira o pedacinho do outro, produzindo uma falsa fartura, a que foi produzida pela penúria do próximo, não pela honestidade de seu trabalho.

Do mesmo modo, somos impedidos, por truculentos e astutos silenciamentos, de falar. Um desses silenciamentos começa na redução de nossa capacidade de compreensão, de avaliação, de escolha, enfim, de opção. Com uma educação sofrível as pessoas vão tendo um “encurtamento simbólico” (SOUZA, 2016) e, portanto, a redução de sua capacidade de fala. A criticidade vai cedendo lugar para a aceitação e legitimação passiva de sua condição de roubado, de explorado, de assaltado por um sistema político e jurídico que o reduz à humanidade precária, ou, em casos piores, à desumanização degradante. Eu soube pela diarista que trabalha aqui em casa, Indaiá, que um candidato a reeleição para prefeito de Salvador, era aguardado pela população local como um deus. Ela revelou com espanto que muitos corriam para tocá-lo, para fazer selfie, para abraçá-lo. Fruto desse encurtamento simbólico, muitos seres humanos vão perdendo sua humanidade, sua capacidade de opção, de reflexão e, como desdobramento disso, erguendo ídolos, produzindo mitos e recriando condições para perpetuação de um mundo cheio de seres cuja humanidade vai sendo encurtada desde o seu nascimento.   

E vivemos a era onde os desvalores campeiam. Estamos em ano de eleições para prefeituras e vereadores no Brasil e, nesse momento de minha fala, muitas falas iguais estão sendo pronunciadas ao vento. Dizem elas que os políticos fizeram muito e ainda vão fazer muito mais. Dizem que eles e elas, candidatos atuais, são as melhores pessoas do mundo, os bons maridos e esposas, os bons filhos e filhas, os bons pais e mães, os bons amigos e as boas amigas, principalmente dos/as amigos/as mais pobres e simples. O encurtamento simbólico aceita essa mentira midiática geral. Mas "o louvor não é belo na boca do pecador.” (Eclesiástico, 15,9). Um modo bastante legal de reduzir o encurtamento simbólico sem precisar frequentar uma escola falida é inserir-se no movimento social, é participar de grupos de pessoas que pronunciam o mundo, que partilham significados e constroem sentidos outros sobre esta coisa desordenada que é nosso mundo contemporâneo.
De maneira completamente diferente será experimentada a fome pelos membros de uma coletividade unida por vínculos materiais objetivos (batalhão de soldados, operários reunidos no interior da usina, trabalhadores numa grande propriedade agrícola de tipo capitalista, enfim toda uma classe social desde que nela tenha amadurecido a noção de “classe para si"). Nesse caso, dominarão na atividade mental as tonalidades do protesto ativo e seguro de si mesmo; é aí que se encontra o terreno mais favorável para um desenvolvimento nítido e ideologicamente bem formado de atividade mental. (BAKHTIN, 2002, p. 116)
A nossa inserção em grupos e movimentos que amadurecem noções fundamentais de nossa especificidade no mundo, movimentos negros, movimentos feministas, movimentos gays, associações de moradores, sindicatos, associação de pais e mestres, pastorais sociais das igrejas, grupos religiosos que refletem eticamente sua religiosidade no mundo, entre tantos outros, são espaços em que o simbólico amplia suas possibilidades interpretativas, tendo reflexos importantes na criticidade da humanidade construída em seus espaços e, reduzindo assim, os efeitos nocivos do encurtamento simbólico, do empobrecimento e da proibição da fala, melhorando nossa capacidade de opção política, de decisão eleitoral, de escolha do nosso destino comum. Quem sabe não seremos as águias comendo o figado dos nossos representantes políticos?  

Joselito do Zé, da Nair, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes falando e de Jesus, o Emanuel.

Com o auxílio de:

BAKHTIN, M. (VOLOCHINOV). Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. M. Lahud, Y. F. Vieira. 9. ed. São Paulo: Hucitec/Annablume, 2002.

BÍBLIA SAGRADA. Eclesiástico 15, 9.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 24. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002

SOUZA, Aurélio. A psicanálise convida o suicida a falar. Biaggio Talento. Jornal A Tarde. Salvador, p. A6 11 set. 2016.