segunda-feira, 28 de maio de 2018

AS VEIAS OBSTRUÍDAS DA AMÉRICA BRASIL

Em torno da greve dos caminhoneiros e seus desdobramentos, a realidade material que dita o ritmo de nossa história é interpretada a partir de diferentes lugares sociais, ideológicos e políticos, gerando tantas interpretações que nos conduzem a um caos no qual a compreensão se perde em seus emaranhados fios, não nos permitindo obter uma visão de totalidade que nos permita identificar os contornos definidores desse processo e, a partir do exercício coerente de nosso entendimento, nos posicionarmos melhor diante dele. As veias e vias de nossa singular América Brasil estão obstruídas, e, o diagnóstico desse fenômeno, embora complexo, nos exige o esforço da reflexão, pois sem esta, nos perderemos em seus circunstanciais desdobramentos, reduzindo nosso potencial político individual e coletivo na condição de passivos telespectadores da realidade capitalista contemporânea que nos pede decifração, sob pena de sermos por ela devorados.
Eu pretendo abordar esta greve a partir dos poucos instrumentos teóricos de que disponho, tais como a relação entre objetividade e subjetividade na definição de um problema que é outra categoria teórica, numa perspectiva filosófica dialética materialista, mesmo reconhecendo as insuficiências de uma abordagem que categoriza a compreensão em função da luta de classes e seus desdobramentos, arrisco-me a entrar nessa ordem do discurso por também reconhecer que a realidade não deixou de ser capitalista, que não estamos numa suposta “sociedade do conhecimento” e que os/as verdadeiros/as produtores/as da riqueza desse país são espoliados por políticas nocivas – como esta praticada pela Petrobrás nesse governo ilegítimo - que visam atender interesses corporativos e financeiros internacionais em detrimento do povo brasileiro.
Adotando as contribuições teóricas de Dermeval Saviani, afirmo que não são condições subjetivas, ou interpretações isoladas de um sindicato, ou de um grupo espontâneo de trabalhadores e trabalhadoras que produzem uma manifestação política consistente e coerente, mas condições objetivas, materiais, verdadeiramente problemáticas para a população. Quando um fenômeno está associado diretamente com a nossa produção da existência – como é o caso da greve dos caminhoneiros desses 2018 anos da civilização ocidental –, gerando desabastecimento de alimentos, combustíveis, materiais hospitalares, este se constitui num verdadeiro problema, no sentido filosófico do termo, pois problema é “uma questão cuja resposta se desconhece e se necessita conhecer”, uma necessidade que deve ser atendida, sem o que, não podemos conviver. (SAVIANI, 1993, p.25). Segundo este autor
Algo que eu não sei não é um problema; mas quando eu ignoro alguma coisa que eu preciso saber, eis-me, então, diante de um problema. Da mesma forma, um obstáculo que é necessário transpor, uma dificuldade a ser superada, uma dúvida que não pode deixar de ser dissipada são situações que se nos configuram como verdadeiramente problemáticas. (SAVIANI, 1993, p.26)
Nesse sentido, problematizar a realidade, é uma atitude filosófica, que procura estranhar o que nos parece natural, correto, inquestionável. A filosofia tem sua importância social na medida em que nos leva a nos assustar com a realidade, a desconfiar das verdades que a justificam, das ordens institucionais que a legitimam, identificar as contradições que a configuram, observando a relação entre subjetividade e objetividade e entre outras, entre as partes e o todo e nos exigindo uma práxis política revolucionária contra o fluxo sistemático de submissão e exploração do ser humano, tendo a emancipação política como horizonte. Desse modo, a greve dos caminhoneiros no Brasil neste ano de 2018 é um problema, porque é um desdobramento político de uma totalidade mais ampla que atinge a sobrevivência desta e de toda cadeia produtiva que afeta diretamente e indiretamente a população brasileira, principalmente a mais pobre, exigindo o desvendamento das tramas estruturais de sua condição, sob pena de repetir a história, “como os nossos pais”.

Subjetividade e Objetividade na Greve dos Caminhoneiros

Diante das inúmeras interpretações sobre o mesmo fenômeno, gerando também inúmeros entendimentos, cabe aqui a discussão breve sobre a relação entre objetividade e subjetividade na determinação do problema pois, segundo o já citado Saviani (1993) “Diríamos, pois, que o conceito de problema implica tanto a conscientização de uma situação de necessidade (aspecto subjetivo) como uma situação conscientizadora da necessidade (aspecto objetivo). Se o problema fosse definido por necessidades de caráter meramente subjetivas não haveria PROBLEMA, ou seja: tudo seria problema, desde o estacionamento dos caminhoneiros no acostamento das rodovias até o desabastecimento geral do país. Para recuperar a objetividade do problema é preciso a reflexão, para “interrogar o real, pensar a experiência, elevá-la à condição de experiência compreendida, para buscar sua gênese e sentido.” (BRZEZINSKI, 2002, p.7). Para Saviani (1993) seria sair da pseudo concreticidade para a concreticidade, do concreto sentido para o concreto pensado. Ou seja, se caímos no subjetivismo espontaneista e imediatista nossa interpretação do fenômeno é alienante, porque confunde a aparência do fenômeno com sua essência, não conseguindo perceber as contradições econômicas, políticas, sociais e culturais que o determinam, aceitando-o enquanto inevitabilidade do acaso e pondo um ponto final à história.
As condições criadas pela divisão do trabalho e pela propriedade privada introduziram um “estranhamento” entre o trabalhador e o trabalho, na medida em que o produto do trabalho, antes mesmo de o trabalho se realizar, pertence a outra pessoa que não o trabalhador. Por isso, ao invés de realizar-se no seu trabalho, o ser humano se aliena nele; em lugar de reconhecer-se em suas próprias criações, o ser humano se sente ameaçado por elas; em lugar de libertar-se, acaba enrolado em novas opressões. (KONDER, 1995, p.30)
A greve dos caminhoneiros nos mostra que a história não acabou e que a realidade objetiva, mesmo diante de tantos subjetivismos, se impõe quando a contradição entre capital e trabalho se exacerba de tal modo que não há outra saída senão a luta política, expressa inicialmente neste movimento grevista. Há, dentro desta mesma greve, uma luta de classes, de caráter setorial, entre os caminhoneiros autônomos e as empresas de transporte de caminhões. Os primeiros sofrem diretamente o aumento constante e abusivo do diesel, sentido na pele a piora de suas condições de existência, ameaçado pelo trabalho que faz em função do contexto cada vez mais precário de seu trabalho. Os segundos vêm suas margens de lucro caírem, reduzindo seu processo de acumulação e, por isso, agindo sorrateiramente, na provocação do denominado “locaute”.
Em função da nova política de preços da maior estatal do Petróleo no Brasil, acionada por um governo obediente aos ditames internacionais de acumulação, cujos desdobramentos atingem o setor de transportes de cargas rodoviárias no país, estão dadas as condições materiais para a greve dos caminhoneiros, que por agora se desenrola. A contradição produzida pelo acúmulo de capital internacional via o setor energético dos combustíveis fósseis, na América Brasil e em toda a América do Sul, provoca o conflito inevitável com aqueles e aquelas que transportam a riqueza e utilizam desse combustível como elemento fundamental do seu trabalho específico. É nessa perspectiva que podemos interrogar o real a fim de buscar sua gênese e sentido.
Desse modo, só podemos compreender os atuais movimentos políticos se identificamos as condições objetivas que asseguram a possibilidade da greve dos caminhoneiros e da certa "aprovação social" que se segue, independente das inúmeras interpretações subjetivas que são elaboradas. É identificando a contradição elementar entre capital e trabalho que vamos percebendo e analisando os movimentos do Estado, neste governo profundamente neoliberal, com paliativos que, logo logo, apesar das mentiras da rede Globo e demais emissoras, mostrarão sua ineficácia, porque protege o acúmulo do capital como um sagrado mantra, provocando ainda mais exclusão quando articulada a outras políticas nefastas como a reforma trabalhista e a reforma da previdência, condições materiais que desencadearão novas greves, não apenas dos caminhoneiros, ainda este ano. Este tempo que este governo ilegítimo acha que ganhou, para tentar consolidar suas posições neoliberais com outros setores da burguesia brasileira, não vai dar tempo para que ele governe essa contradição capital. Nos preparemos, pois.

Joselito Manoel de Jesus, Professor.
Com o auxílio de:
BRZEZINSKI. Iria. Profissão professor: identidade e profissionalização docente. In Iria Brzezinski (org.). Profissão professor: identidade e profissionalização docente. Brasília: Plano Editora, 2002.
KONDER, Leandro. O que é dialética. São Paulo: editora Brasiliense, 1995.
SAVIANI, Demerval. Educação: do senso comum à consciência filosófica. São Paulo: edit. Aut. Associados, 1993.

sábado, 5 de maio de 2018

CRIATIVIDADE DO GROTESCO FANTÁSTICO DO NORDESTE BRASILEIRO


Antes eu, em minha ignorância, não percebia que a expressão artística presente neste clipe representava um estilo cultural da rica e, algumas vezes grotesca, musicalidade nordestina brasileira. Só via graça no grotesco. Mas deixava de ver esse "grotesco" como expressão inteligente dentro das condições contextuais nas quais a criação artística se insere, num Nordeste construído por olhares de "tons tão sudestes" (alô, Chico César) no qual a seca da natureza e a frieza perversa das elites rurais produzem e naturalizam a "morte severina" que é a morte de que se morre
  de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).

(Alô João Cabral de Melo Neto! In memoriam)  
A morte é um fenômeno muito próximo e o cemitério um cenário de despedida e de profundo significado da existência neste contexto de ser humano, onde a resignação e a revolta se encontram dialeticamente unidas, no qual o fim da espera vã e o início da esperança ativa lutam contra o desespero, que é a esperança sem endereço (alô saudoso Mestre Paulo Freire). No horizonte de produção e reprodução social da pobreza política e econômica (alô Pedro Demo), que tem como consequência desigualdades nefastas, uma das causas da "morte severina", o cemitério pode ser a abertura de novas possibilidades de luta, de criação artística e de organização social e produção cultural que, tendo a morte como ponto de partida, conceba a vida como ponto de chegada, invertendo os pólos lineares da história e reinventando a participação, a própria luta na direção da transformação social oposta à morte e ao fim da esperança.
O Homem que canta

O cigarro, o modelo de óculos, os braceletes nos punhos, a corrente no pescoço, o corte de cabelo, a calça de feira, a blusa com o escrito em inglês, remetendo a um sujeito elaborado numa cultura de uma década machista - 1970 do século XX - reiterando um discurso que se consolidou naquela época sobre esse sujeito social que tem de "manter sua fama de mau" - seu jeito de andar e até sua voz, entre outros, são elementos que encontram perfeita harmonia com a letra, a melodia e o arranjo que compõem a música e que, por sua vez, expressam seu trajeto-mundo que o pariu.

Contudo, a criatura nascida daquele processo também cria e recria o seu mundo que o desafia à expressão artística, que é uma forma singular de luta. O que eu via apenas como sintoma de pobreza, vejo agora, na dialética da minha percepção, a contradição entre a pobreza econômica, fruto da injustiça social, e a riqueza do resistente povo de minha terra, o Nordeste. Riqueza que, embora transcenda a pobreza, é a expressão mais profunda e fecunda de seus condicionamentos, mostrando, ao mesmo tempo, que nossas mulheres e nossos homens têm uma força ancestral tão poderosa que, se não tivesse esses condicionamentos impostos pela desigualdade econômica e social que as elites burguesas impõem, voariam tão alto que nenhum preconceito - como eu já muito tive - poderia alcançá-los. Nesse sentido, o homem que canta, pode ser o homem que, também, encanta.

Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel.