sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

ERA DOS CAPITÃES

No Brasil, de longa tradição escravocrata, que ficou em relativo silêncio por um relativo tempo, país no qual diferentes tempos históricos se renovam na mesma contemporaneidade, a principal luta não é a de classes: é a de raças. Aqui o pobre de pele branca, mesmo não sendo branco, não sofre preconceito direto, como as pessoas de pele negra. As instituições se estruturaram e se consolidaram ao longo do tempo contra a entrada da negritude nelas, principalmente na direção de tais instituições. As pessoas negras com talentos distintos ficavam e ficam à sombra de um “macho adulto branco no comando” (O Estrangeiro – Caetano Veloso). Um/a ou outro/a acostumou-se a ficar atrás, sorrindo um sorriso carregado de “não sei o que”, não sei se de cinismo, não sei se de tristeza, não sei se de aprovação. Um ou outro acostumou-se a pensar como os brancos, como se isso lhes desse um passaporte pessoal e intransferível para a entrada no salão de festas dos brancos que se alimentam do sangue e da dor do povo negro e do povo índio e da pobreza que pagam os impostos que os mantêm bem nutridos e cheios de luxo.
Nesse país dos bolsonaros o conteúdo mais fácil de se aprender é a ignorância preconceituosa. A atitude mais rápida a se tomar é a ofensa e a agressão. O racismo, o machismo, a homofobia e todas as violências contra as pessoas com deficiência refletem um humano desumanizado, porque não se precisa reflexão, nem crítica - aliás as repudia - mas a obediência cega às ordens de um “capitão”, patente que, ao longo da história, tanto mal tem feito para o povo deste país. As maldades e perversidades estruturadas e postas em prática ao longo de nossa história, passando pelo massacre que o exército republicano, cheio de coronéis e capitães, causou nas famílias de Canudos, que ergueram naquele lugar a esperança de libertação contra as formas de escravidão que naquele lugar imperava, inclusive com aprovação da poderosa Igreja Católica.
Ao longo de nossa história brasileira, os coronéis e capitães – tanto é que os generais, com exceção do Duque de Caxias, nunca foram populares e conhecidos como os de mais baixa patente – mais atacaram o seu próprio povo que procurava vida digna, do que ameaças externas. Pelo que me lembro nossa última guerra foi a do Paraguai, no qual o General Caxias se destacou. De lá pra cá, sustentamos um poder militar com privilégios, sempre ameaçados pelo terror da tortura que a ditadura promove, utilizando seus psicopatas de plantão. Sempre tem uma vaga de “capitão” esperando para o exercício do assassinato a mando do “sistema” macabro de ordens e patentes.
Nessa história maldita de capitães o povo sofre sob o poder de suas perversidades, que buscam sempre mantê-lo sob correntes, diante de fuzis, de armas, da sentença de morte. Todos os dias nós morremos. Ao milhares somos assassinados todos os anos sob a ordem de capitães. Capitães-do-mato, que perseguiam, aprisionam, torturavam e matavam os negros que se recusavam à escravidão; capitães-do-lar que agridem e assassinam mulheres que se recusam a serem escravas de seus desejos de apropriação da mulher como um objeto de pertencimento pessoal; capitães-do-ar que ocupam ministérios viajando em suas nuvens ideológicas a perseguir universidades públicas, as feministas, os homossexuais, os movimentos sociais de modo geral, o meio ambiente, os indígenas; capitães-das-águas que privatizam nossas águas, nosso bem essencial, entregando-as ao domínio do capital privado, que perseguem quilombos com seu poderio, "todo de branco, marinheiro só, com seu bonezinho" ou que fecham os olhos diante de tragédias anunciadas como as da Vale; capitães-do-asfalto, que em suas viaturas agridem, ofendem e assassinam crianças, homens e mulheres no interior de veículos, protegidos sob o “excludente de licitude” bem antes do soldado mandado do capitão-presidente, que atualmente ocupa o Ministério da “Justiça” tentar legalizar; capitães-do-desmato, que ocupam o Ministério do Meio Ambiente para acabar com o meio ambiente, favorecendo queimadas criminosas na floresta amazônica e em outras regiões do Brasil, para promover o garimpo, o agronegócio e outros negócios escusos.
Há sempre candidatos querendo ocupar esse lugar de poder da perversidade, legitimando a exclusão, a marginalização e legitimando o consequente assassinato de todos aqueles e todas aquelas que não ficam atrás do homem branco, sorrindo como manequim de loja, com o ferro entrando em sua “coluna”. Toda essa “capitania hereditária” que infesta nosso país, composta pelo "macho adulto branco" é um mal histórico, um vírus que ficou encubado em nosso corpo social e volta a manifestar e em infestar nossa contemporaneidade, como uma gripe, um sarampo produzido pela ignorância disseminada na sociedade, atingindo até membros de nossas famílias, como se quisesse capitanear, em nome de deus, da pátria e da família deles, a mais novíssima propriedade privada, o controle da história sob a mira das armas e do exercício da violência dirigida sistematicamente contra a negritude, os indígenas, as mulheres, as pessoas com deficiência e as pessoas que se recusam a deixar de pensar, estudar, pesquisar e de defender a justiça.

Joselito da Nair, do Zé e de quem não quiser entrar nessa maldita corrente de “capitania hereditária”.

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

NÓS, OS MACACOS DE BACURAU


No filme "Planeta dos Macacos: a guerra", César e o Coronel [poderia ser um “capitão”] travam uma dura batalha pela vida. O Capitão, digo, Coronel, líder de uma sociedade militarizada e miliciana, apresenta traços de insanidade, fomentando a violência e a crueldade contra todos/as aqueles/as considerados inimigos/as, principalmente os macacos, cuja existência ameaça sua ideia de “civilização”. Os macacos precisam se unir para sobreviver na base do “ninguém solta a mão de ninguém”. Liderados/as por César, os macacos desenvolvem estratégias de sobrevivência, num mundo que os ameaça por toda parte.
Num Brasil no qual vozes das catacumbas, divulgadas por uma mídia a serviço dos “poderosos”, defendem a “família”, a propriedade privada e a “ordem” dos homens brancos, que idolatram os Estados Unidos da América, ditos machos, homens grosseiros, violentos, imbecis e pouco afeitos às letras, às mulheres empoderadas, aos poemas, à arte cinematográfica e à cultura de modo geral, liderados por um suposto “capitão”, nós, as minorias – nordestinos, nortistas, negros, mulheres, mulheres negras, lésbicas, gays, travestis, indígenas, intelectuais de modo geral, entre outros e outras - somos os macacos de sempre, cuja simples existência ameaça o mundo ideal dos homens brancos que apontam sua alma armada para nosso desassossego.
Em Bacurau, o prefeito corrupto Tony Júnior – personagem que bem representa os mentirosos, cínicos e caricatos prefeitos que se reproduzem nos currais eleitorais afora, feitos jumentos batizados (perdão aos jumentos) – que tem ambições políticas, mas enfrenta a resistência do povoado de Bacurau (que bem poderia ser classificado pelo Conselho Nacional de Informação dos homens brancos como “perigoso núcleo comunista”) – que seria qualquer distrito de qualquer cidade nordestina, tal como Junco, Paraíso, Ibó etc. –, se associa aos supremacistas brancos americanos que desfrutam do prazer de matar pessoas consideradas inferiores, chegando ao orgasmo com tal ato de crueldade gratuita, compartilhada com os interesses eleitoreiros nefastos do prefeito. As pessoas de Bacurau são os macacos, tanto para o prefeito, que apagaria toda cidadania crítica do lugar, quanto para os supremacistas brancos americanos que destituem de humanidade quem está para além de suas fronteiras raciais, especialistas em tiro ao "não-alvo".
E a polícia, principalmente a do Rio de Janeiro, sob a liderança de um homem nem tão branco assim, mas “terrivelmente evangélico” e possivelmente demente e copiador de dissertações e teses, está matando os “macacos” e seus filhos, atirando em todas as direções com aquele gosto nazista de limpeza étnico-racial, para que o Rio de Janeiro volte a ser “lindo” ou "limpo", sabe-se lá. O feminicídio cresceu bastante sob a égide do “capitão-queima-mato", num desdobramento político social de homens, como ele, que odeiam mulheres que não se submetem aos seus caprichos e, desse modo, se tornam “macacas”, ameaçando o paraíso machista no qual esses homens desumanos dominam, silenciam e, quando não podem obter obediência, matam.
Nós, os macacos da vida real, estamos sendo perseguidos nas universidades públicas, nos hospitais, nas escolas públicas, nas instituições de pesquisa, fiscalização, monitoramento e controle do meio ambiente, de investigação e vigilância, nas favelas, nas ruas e mesmo nas residências, onde a masculinidade tóxica é incentivada, sob essa “ordem bélica”, a violentar e matar, a fim de manter a família e a propriedade privada sobre o pensamento e a liberdade humana sob os desígnios de um deus imposto e impostor, criado por pastores espertalhões, mentes doentias e uma mídia manipuladora. Essa ameaça cotidiana do Estado, através de um governo violento e débil à nossa vida, precisa ser enfrentada. E, embora haja medo, o medo não pode nos paralisar, como diria o mestre Paulo Freire. O medo deve ser encarado de frente, porque como canta “O Rappa”:
A minha alma 'tá armada
E apontada para a cara do sossego
Pois paz sem voz paz sem voz
Não é paz é medo
As vezes eu falo com a vida
As vezes é ela quem diz
Qual a paz que eu não quero
Conservar para tentar ser feliz

Quem sabe não somos quase todos e todas de “Bacurau” e precisemos lutar para que todo o planeta seja, pela primeira vez, o planeta dos macacos?

Joselito da Nair, do Zé, de Ana Lúcia, de Joelmo Dórea, de José Jorge Dórea, de Itajacira Dórea, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel.

quarta-feira, 21 de agosto de 2019

CAFÉ, MEMÓRIA E MORTE


Eu estava correndo e a memória de uma tristeza ainda não suficientemente chorada ficou latejando. Apesar dos anos ainda sinto uma tristeza enorme em função da falta de meus pais e de todo aquele universo que nos cercava. Sei que nós, humanos, tendemos a apagar os momentos mais terríveis de nossas memórias, ficando apenas com os momentos mais sublimes ou, pelo menos, aqueles que assim tornamos. Mas não quero saber disso nesta hora que a tristeza reclama da presença da ausência deles. Nair Dórea de Jesus e José Manoel de Jesus, meu pais.

Creio que não guardei o luto como devia, nem chorei como podia e, por isso, a tristeza desta saudade sempre aparece em meu ser. Sou um homem dividido em relação à fé. Mas tenho de crer assim mesmo, para que a morte não elimine definitivamente todas as minhas esperanças. As vezes dá uma vontade de voltar no tempo a fim de abraçá-los mais uma vez e dizer o quanto os amava e que não compreendia isso naquele momento. Algumas pessoas dizem que o saber traz sofrimento. Mas a ignorância traz ainda mais, porque somente considera as outras pessoas, natureza e o mundo a partir de seu ego enfermo. O exercício da alteridade é impossibilitado de acontecer naqueles e naquelas que só percebem a si mesmos/as no mundo, tomando-se como “ponto-de-fuga” na constituição da realidade, realidade mesquinha e tosca.

E nesta noite eu preciso chorar a morte de meus pais. Preciso sentir profundamente o significado de tal evento para mim. Antes eu queria me separar deles e viver a “minha vida”, naquela liberdade que toda juventude anseia e busca. Mas agora, nesta hora da minha existência, na qual eu mesmo estou mais próximo da morte, tive um desejo imenso de ser filho e ter meus pais ao lado. Para pedir todos os perdões que fossem possíveis, para abraçar todos os abraços que pudesse, para amar sem mais, nem menos, só amar, sem porquês, sem senões. Se eu pudesse inventar uma máquina do tempo voltaria mais para abraçar e pedir perdão. Voltaria para olhar nos olhos e, sem dizer uma palavra, dizer tudo o que estou sentindo sobre a importância deles em minha constituição ontológica.

Depois faria um café, pois o café sempre foi a bebida que nos encontrava palavras adentro, formando um feixe dialógico em torno da mesa da cozinha. Neste feixe, todos tecíamos nossas rendas sob a orientação de Nair Dórea de Jesus. À noite o café antecedia a cama e os sonhos. Pela manhã este líquido preto acordava nosso olfato, formando um hábito que nunca nos abandonou. Aprendi a fazer café para produzir aquele cheiro de sempre que compõe minha memória afetiva. Para mim, fazer café tem um significado profundo e fecundo. É sacramento. É a voz que ninguém mais ouve, é a mão que ninguém mais toca, é o abraço que ninguém mais dá, é a oferenda que ninguém pode fazer por mim aos meus pais e, pelas histórias que ela e ele contavam, aos meus avós. De vez em quando o café aparecia nas memórias que meus pais contavam ao redor da cama em noites de candeeiro e de colchas de retalhos. E, de histórias em histórias, de retalhos em retalhos, costurávamos o sentido do mundo e de nós mesmos nele. Fazer café é celebrar a memória fecunda de minha família. É encontrar-se com a própria história singular de quem compartilhou café, afeto e memória, formando subjetividades entrelaçadas naqueles rituais de todos os dias.

Na política nacional do “café com leite” este segundo elemento só ficou conhecido muito tempo depois, por causa de nossa pobreza. Até hoje tenho a sensação de que o leite branco suja o café preto, contaminando sua pureza original, retirando o seu cheiro fundante das manhãs e dos finais de tarde, apagando uma memória que guardo nas profundezas de minha história. Poucas vezes eu vi alguém colocar primeiro o leite na xícara, para depois o café. Geralmente o café sempre vem primeiro, porque talvez, na memória de nossa gente, o café seja primordial. O luto eu também guardo em meu ser. De modo errôneo. Tanto que ainda preciso chorar toda a tristeza que em mim está insepulta, reapresentando a morte que não passou pelo ritual necessário para seguir seu caminho de além. Um além que está aqui, talvez além do meu controle, mas não muito além do meu desejo de novamente celebrar com o café preto a presença dos pais que nunca morreram em mim.

Joselito da Nair Dórea de Jesus e do José Manoel de Jesus.

terça-feira, 16 de julho de 2019

Domínio Evangélico

Ando triste. Sorrio, mas é apenas disfarce. Os dias se vão sombrios porque a mentira, o cinismo e a perversidade dos poucos ricos deste país encontra terreno para se expandir na apatia, ou na própria concordância dos pobres, manipulados por ideologias rasteiras. Isso é triste. Muito triste. Um povo inteiro vai voltar a passar fome, vai voltar a pedir nos sinais de trânsito, alguns vão, na hora mais dolorosa da fome, arriscar-se nas ruas da cidade em busca de sobrevivência. E ainda agradecerão as esmolas que lhes amenizem a fome e a fraqueza, que os aproximam velozmente da morte precoce. É triste.
Imaginava eu, que apenas as elites de nosso país eram perversas. Mas hoje vejo com tristeza que a classe média carrega tantos preconceitos que se transformam em exclusões. Um sujeito da classe média não admite que alguém da classe pobre divida a mesma viagem de avião, que frequente os mesmos espaços sociais, que vista a mesma roupa, que coma a mesma refeição, que tenha sonhos parecidos. Que tristeza toma conta de mim nesta hora! Como eu posso ser bem sucedido se quem está ao meu lado, na mesma construção de nação e de mundo, passa necessidades básicas e é impedido de ser bem sucedido? Como posso ser feliz se o porteiro do prédio está infeliz? Se a diarista está desesperada pensando em como pagar um dentista para sua filha? Como? Como posso pensar num deus que divide o mundo em bons e maus e legitima toda essa covardia contra os mais pobres do meu país? E todas essas pessoas rezam e creem num deus, um deus feito sob medida para as necessidades materiais de cada um, num ateísmo cínico que projeta deus como um banco, uma imobiliária, uma concessionária, um hospital, como um seguro de vida e de pós-morte.
Deus me foi apresentado pela minha mãe. E esse deus lhe foi apresentado pelos seus pais, vindo de uma longa tradição colonial de um deus branco, ocidental, homem, hetero, sem feminilidade e com uma vigilância extrema sobre seus filhos e suas filhas, “pecadores originais”. Depois esse deus tomou uma face mais amorosa, misericordiosa e justa com a Teologia da Libertação. E aí eu comecei a enxergar Deus, Aquele que anda no meio do povo, Emanuel: O Deus-Conosco. Mas Deus foi perseguido pela própria Igreja Católica, através de João Paulo II e de Ratzinger, o cardeal alemão que fingia não ver nem ouvir os clamores das crianças abusadas por padres e bispos católicos. E aí deus entrou em declínio. E foi reapropriado por forças ainda mais obscuras de nosso país: os neopentecostais.
Surgiram e se fortaleceram falsos pastores: Edir Macedo, Silas Malafaia, Bispa Sônia, Valdemiro Santiago, R. R. Soares, Marco Feliciano, David Miranda e uma série de outros menos conhecidos que começaram a lucrar alto com o abuso da fé das pessoas simples. E uma onda evangélica, como um tsunami, assolou o país de norte a sul, como uma epidemia altamente contagiosa, atingindo milhões de seres humanos e tornando-as soldados a postos para as “ordens divinas” de seus falsos pastores guias, que se tornaram donos de invejável poder econômico.
E esses falsos “pastores” deram o passo seguinte: o poder ideológico. Começaram a comprar bens materiais de alta incidência na sociedade, como redes de televisão e rádio. A fé rendeu-se ao materialismo tão criticado nos discursos desses abastados pastores, que acumulam bens em cima da ignorância, da ingenuidade e, também, da perversidade de um povo. Esse poder ideológico alimenta o racismo, o fascismo, a ignorância, o negacionismo científico e a hipocrisia de modo geral. E deram mais um passo importante: o do poder político. Começaram a eleger pastores como Marco Feliciano, Márcio Marinho, "Irmão Lázaro", "Flor de Lis" e indivíduos a eles associados intimamente, como Magno Malta, entre tantos/as outros/as. E esse poder está sendo acumulado, eleição após eleição, intimidando governos, ameaçando as decisões cruciais das autoridades que atrapalham os seus negócios e caracterizando um domínio teocêntrico perigoso para as liberdades individuais, para a arte, a cultura, a educação e o desenvolvimento social de nosso país.
Com a eleição de Bolsonaro, o mais obscuro presidente de nosso tempo, essa rede de poder se fortaleceu e um obscurantismo perigoso toma conta do país. O apelo à violência através do uso de armas, a destruição da natureza, a perseguição às universidades públicas, a entrega do país ao capital privado norte americano, a extinção de direitos fundamentais dos trabalhadores e a violência contra mulheres e homossexuais são desdobramentos de um sistema de governo aberrante, montado sob a égide de um evangelismo miliciano e militar que conduz esse Brasil a um colapso que em breve vai mostrar-se concreto para aqueles que acreditam em palavras fáceis e enganosas de pastores, políticos, grandes empresários e milicos.
E agora, nesta encruzilhada da existência, eu, mesmo sendo dito por alguns como “bem sucedido”, me encontro mal, porque meu país sucumbe sob o silêncio daqueles e daquelas que pagarão o preço mais caro de nossa história: a da exclusão a níveis desumanos. Não se passarão dois anos e veremos grande parte de nossa gente vagando nas ruas à procura de sobrevivência. Já ocorre, mas ainda em níveis que não incomodam. Mas vai aumentar. Quem não quis compartilhar um assento de avião e bateu panelas em suas varandas, vai ter de dividir o medo de viver entre os que têm fome e os que vão ser alimentos para estes, como num walking dead surrealista. E deus sairá ainda mais fortalecido, porque os pastores que causaram esta situação, vão orar pelos fiéis sem pão e sem lar, afirmando que se trata das palavras da escritura que "deverão se cumprir". No lombo dos outros, claro.
Eu ainda rezo, para ver se alcanço um lugar, uma montanha, um beco, um deserto, uma avenida, uma viela da periferia, onde Deus possa ouvir a minha tristeza. Não mais um deus católico. Não um deus pentecostal. Não mais. Mas Deus, inclusive o Deus Africano, o Asiático, o de todas e de todos, o Deus da Justiça contra mentirosos, hipócritas e gananciosos, do Amor à diversidade que a própria natureza expressa. É para esse Deus que eu ainda rezo e para Ele que entrego minha tristeza e minha ira.
 Joselito Manoel de Jesus, Professor     

terça-feira, 11 de junho de 2019

MINHA ESCRAVA PARTICULAR E O REINO DE ALGUNS

A pouco me dei conta de estar a contemplar os tênis e as meias de corrida que lavei. Na verdade não contemplava os tênis e as meias, mas o resultado do meu trabalho. Parece coisa de besta, eu ali, olhando algo aparentemente banal. Mas não é! Transformei sujeira e fedor em limpeza e cheiro bom. Coisa simples, e, profunda. As lavadeiras de roupa também são assim: transformam a sujeira e o mau cheiro das roupas em limpeza, cheiro bom, organização. Quantas pessoas passam por nós cheirando, roupas impecavelmente limpas, atraindo nossa atenção, mesmo que fugaz. Há alguém que lavou, que passou, que organizou no guarda-roupa. Esse alguém, que a gente muitas vezes invisibiliza, é uma lavadeira de roupas, que está na base da limpeza vestida que cruza nosso caminho.
Os garis, as lavadeiras de roupa, as varredeiras de ruas, todas essas pessoas são agentes de limpeza e sem elas a sociedade desmoronaria. O filme Ensaio sobre a Cegueira, adaptado do livro de Saramago de mesmo título, mostra que se perdêssemos a visão coletivamente a sujeira tomaria conta das ruas, das residências, de todos os espaços enfim. Se perdêssemos nossos garis, nossas empregadas domésticas e nossas lavadeiras teríamos que aprender a limpar nossa sujeira, e isso mudaria toda uma cultura escravagista que está na base da negação e invisibilização de pessoas que fazem esse trabalho. Assisto filmes europeus e americanos e percebo que, ao final de um jantar, quando todos e todas já foram, as pessoas que residem na casa é que vão para cozinha lavar os pratos, depois de terem limpado a mesa e varrido a casa. Aqui percebo que a sujeira fica acumulada, não por preguiça, mas por uma cultura Lady Kate: do "tô pagando" e se "tô pagando", deixa a sujeira para a nossa "escrava particular" limpar no dia seguinte, sob minha atenta e atentada supervisão. O problema de uma sociedade capitalista, racista e hedonista é que essas pessoas são invisíveis, tidas como inferiores na hierarquia de valores que a sociedade tece todos os dias, reproduzindo um status quo falido de um escravagismo muito presente nas corriqueiras atitudes que nos definem.
Percebo que muita gente quer o tal Reino de Deus. Mas esse desejo me parece contaminado pelo egoísmo e pelo racismo. Um reino só pra mim e no máximo minha família nuclear, idealizadamente branca e cristã. Desse modo, jamais alcançaremos esse Reino Universal, ou, atualizando, essa comunidade solidária de mulheres e homens, sem modificarmos nossos valores que se dizem cristãos, mas que são baseados no darwinismo social excludente aliado ao escravagismo cotidiano dos nosso lares, que tem como resultado a pobreza, a exclusão e a morte prematura dos que são considerados inferiores na hierarquia do reino do cão. É bom lembrar que Jesus Cristo não era cristão. Ele foi apropriado por uma instituição denominada Igreja Católica, que limitou a ação de Deus, Deus universal, num cristo particular, que se tornou símbolo poderoso a serviço dos interesses dessa instituição de poder autoritário e, como todo símbolo, deslocou-se agora a servir às igrejas neopentecostais de pastores de mau caráter como Edir Macedo, Silas Malafaia, R. R. Soares e Valdemiro Santiago. Quem tornou Jesus particular, aprisionando-o nos estreitos limites de uma instituição humana, que se intitulava "a religião verdadeira" em detrimento das outras formas de manifestação religiosa, afastando-o e afastando-as de Deus, não foi Jesus, foi a Igreja Católica.
Sou professor e, sem o trabalho das pessoas que limpam o espaço no qual trabalho, não há possibilidade da aula acontecer. Sou lavadeira, sou gari, sou varredeira e sou assim. Eu acredito no Reino no qual eu também sou gari, lavadeira, varredeira, empregada doméstica. Com eles e com elas eu limpo a minha própria alma, cheia de sujeira acumulada por essa história maldita que insiste em ser recontada, dentro do meu próprio lar.
Joselito Manoel de Jesus, Filho da Nair, que já lavou muita roupa para que eu chegasse até aqui.

sábado, 8 de junho de 2019

RUI COSTA DO PT DA BAHIA: O BOLSONARO DO NOSSO ESTADO

A Greve dos/as professores/as das Universidades Estaduais Baianas teve como êxito o desmascaramento da posição política do governador da Bahia, Rui Costa, e de seu partido, o que se diz "dos trabalhadores". A máscara de governante de um partido democrático caiu, mostrando a verdadeira face autoritária deste governo que, por isso mesmo, foi comparado ao déspota do Bolsonaro. Nem Rui Costa é um democrata, nem o PT é um partido de esquerda. Isso ficou claro para nós, professoras e professores das universidades públicas estaduais, que tivemos nossos salários cortados e vemos nossas instituições de ensino superior públicas, que atende milhares de jovens pobres do interior da Bahia e de suas periferias, serem desmanteladas por este governo e seu partido.
O PT deixou de ser, faz tempo, um partido de esquerda. Ele embarcou na onda neoliberalizante que corta conquistas dos trabalhadores, que asfixia as universidades públicas estaduais, que abandona bibliotecas públicas ao deus-dará, que corta salários de grevistas, que faz conchavos com deus e o diabo para continuar no domínio do Estado. Nenhum deputado ou senador - com exceção de Hilton Coelho e de Marcos Mendes - veio a nosso favor para mediar um diálogo com o autoritário governa a dor, Rui Costa. A "negona da Bahia", deputada estadual Olívia Santana, mostrou que só é "negona de Salvador", pois esqueceu dos negros e das negras da Bahia que frequentam as universidades estaduais na condição de estudantes e na de professores/as. Vocês deputados, não podem esquecer de um detalhe: o da diversidade. Antes de sermos estudantes e professores/as somos negros/as, somos mulheres, somos ciganos, somos indígenas, somos homossexuais, somos Uneb. Só nos recusaremos a ser votos e palmas de discursos fáceis que desejam se manter nos privilégios dos cargos de deputados e deputadas, com seus ternos e seus tailleur's. Acreditar que o PT é um partido de esquerda é se deixar enganar por uma esperança que venceu o medo, quando o medo ameaça todas as esperanças conquistadas pelos trabalhadores e pelas classes populares. Medo e insegurança que Rui Costa fez questão de ampliar entre nós, inclusive em relação à nossa aposentadoria.
Rui Costa, seu governador, adota uma postura autoritária contra o legítimo direito de greve dos trabalhadores, base na qual seu líder maior, Lula, foi proclamado como grande líder brasileiro. Rui opta por uma gestão dirigida por princípios neoliberais que atingem em cheio os trabalhadores do Estado, enquanto silencia em relação aos gastos da instituição mais improdutiva e mais cheia de privilégios e regalias do Estado: a Assembleia Legislativa, que agora vai pagar quase R$1,2 milhão pelo aluguel de aparelhos de ar condicionado para equipara a casa. "aluguel", é bom frisar. Sua concepção política não contempla o contraditório como elemento essencial para a manutenção e o fortalecimento da democracia. A transparência é outro item que inexiste neste governo da "Correria".
Sairemos da greve por inanição causada pelo corte de nossos salários, Rui Costa. Mas sairemos com a indignação a nos lembrar quem você se mostrou nesse processo: um autoritário, um governante déspota, que recusa o diálogo e a negociação com as nossas representações sindicais reunidas no FAD (Fórum das Associações Sindicais Docentes das Universidades Estaduais Baianas) e, além de cortar nossos direitos, ferindo nosso Estatuto do Magistério, nos negou o diálogo, nada nos apresentando como proposta, oferendo uma mesa de negociação sem direito a absolutamente nada!
Mas não nos renderemos Rui Costa! Manteremos nossa vigilância na dignidade daqueles e daquelas que contribuem para a educação pública e gratuita, que você ameaça acabar, neste Estado baiano de coisas. Dizem que você pode ser o candidato a presidente deste país. Deus livre os outros Estados desta Federação de ter uma continuidade de Bolsonaro a nos desgovernar. Eles e elas vão aprender o que acontece com uma democracia conveniente, sustentada por princípios neoliberais, que você e seu partido de centro direita imprimem à dinâmica da gestão do Estado.
Deus nos livre de você Rui Costa! "Nunca antes na história" deste estado, a lembrar de como Wagner tratou os professores e as professoras da Rede Estadual de Ensino Público, os servidores públicos e as servidoras públicas foram tratados assim com tanto desdém. Meus sinceros votos nas próximas eleições serão destinadas à esquerda, não a um partido falido que atropela servidores/as públicos/as tratando-os como inimigos e criminosos. Corte seu helicóptero e os privilégios da Assembleia Legislativa que vai sobrar muito dinheiro para fazer sua ponte de aço e cimento, por onde transitará, sobre as águas da Bahia de Todos os Santos, o progresso excludente do capitalismo que multiplica seus ganhos enquanto nós, trabalhadores que produzem a verdadeira riqueza deste Estado e deste país, somos atirados ao mar para nos afogarmos em suas miragens ambiciosas. Você venceu! Demonstrou como se trata trabalhadores/as em greve, enquanto seu partido ficou calado, observando nossa luta, esquecido do São Bernardo do Campo de onde ele saiu.

Atenciosamente, Joselito Manoel de Jesus, Professor da Universidade do Estado da Bahia, Uneb

sábado, 20 de abril de 2019

RESSURREIÇÃO: TRAVESSIA DA MORTE PARA A VIDA EM PLENITUDE

Nesses tempos sombrios que o nosso país passa, como se fosse uma travessia difícil que exige coragem para ser feita, tempos nos quais a mentira em forma de fake news, a truculência em forma de perseguição, a crueldade racista em forma de 80 tiros dados sobre um automóvel branco no qual a pele preta estava ao volante, como uma terrível ironia. Neste país um Ministro da Educação num gesto profundamente discriminatório e desrespeito aos/às nordestinos/as, fala que as universidades da nossa região não devem ensinar filosofia e sociologia. Neste país no qual uma ministra afirma que lugar de mulher é dentro de casa, submissa ao marido, que meninas devem vestir rosa e meninos devem vestir azul, e no qual uma igreja neopentecostal começa a exercer desmedido poder em conluio com o Presidente da República, um misógino, racista e violento, pouco afeito à leitura e à reflexão, que entrega nossa nação de mãos beijadas para os norteamericanos. Um país no qual dois ministros do STF utilizam de dispositivos autoritários, instaurando inquéritos à revelia do Ministério Público, característicos de períodos de exceção democrática, para silenciar e perseguir as revistas jornalísticas “O Antagonista” e “Crusoé”, tentando blindar um deles de suas ligações perigosas com o capital sempre corrupto. Tempos sombrios estes. Que precisamos atravessar.
Por isso, nesse tempo entre a morte e a ressurreição eu rezo pela ressurreição da verdade! Eu alimento a esperança na ressurreição do movimento negro! Eu espero ativamente a ressurreição do nosso povo, ferido em seus direitos fundamentais, com acesso reduzido à saúde, com a educação pública sendo ameaçada, com possibilidade de não mais obter a aposentadoria. Eu torço pela ressurreição dos movimentos populares, dos sindicatos e associações profissionais na luta contra o desmonte pavoroso do Estado a serviço da população e dos direitos fundamentais do ser humano. Eu torço pela ressurreição do sujeito político na arena do debate, defendendo a vida acima de qualquer lucro do grande capital nacional e internacional.
O Jesus Cristo no qual eu acredito é aquele que veio para que todos/as tenham vida, vida em abundância! Jesus Cristo que foi às ruas, pregou a divisão do pão e não o acúmulo ganancioso do capital; Aquele que chutou a barraca dos vendedores da fé e hoje chutaria os falsos pastores que enriquecem vendendo a palavra de Deus; Jesus Cristo que pregou a paz, colocando a orelha do soldado de volta, e não o porte de arma, no caso a espada. Eu acredito na Ressurreição de Cristo e de todos/as aqueles que com Ele se pareceram: creio na ressurreição de Paulo Freire, de Irmã Dulce e de Madre Teresa de Calcutá e de todos/as aqueles/as que lutaram para que os pobres da terra tenham maiores chances de viver e de pensar coerentemente e solidariamente sua existência; creio na ressurreição de Chico Mendes, de Irmã Dorothy Stang e de todos/as aqueles/as que morreram em defesa da natureza; creio na ressurreição de Martin Luther King, de Septima Clark, de Nine Simone, Zumbi e Dandara dos Palmares, de Malcon X e de todas as pessoas que lutaram em defesa dos direitos da negritude; creio na ressurreição de Milton Santos, de Oscar Wilde, de Charles Chaplin, do negro Machado de Assis, de Einstein, de Lima Barreto, de Carolina de Jesus e de tantos/as intelectuais que pensaram a justiça, a igualdade e um mundo melhor para todos e todas, mesmo com suas contradições humanas.
Creio, enfim, na Ressurreição do mundo no qual a utopia seja o nosso horizonte permanente de ação. São em todas essas ressurreições nas quais acredito e celebro, porque nelas e por elas, a Ressurreição que se celebra ganha todo o sentido. Creio na Ressurreição da esperança, do amor, da verdade, da justiça e da liberdade. Eu não posso celebrar uma ressurreição fora de mim, se ela não se fizer presente em mim, em minha história, em meu espaço geográfico, em minha memória, em minha luta pelo mundo que Jesus Cristo pregou, no qual o critério de sucesso e de renovação é daquele e daquela que abandona toda a arrogância, todo o preconceito, toda a discriminação, todas as armas e todas as amarras e, curvando-se, lava os pés dos seus semelhantes mais humildes. É nessa travessia do ódio para o amor, da tristeza para a alegria, da submissão para o diálogo verdadeiro que Paulo Freire propôs, da morte para a vida que eu celebro e atuo com minha existência humilde, mas persistente, porque, como o poeta Gonzaguinha, tenho fé na Vida, fé no homem [e principalmente na mulher], fé no que virá, nós podemos muito, nós podemos mais..." Feliz domingo de Páscoa para todos e para todas!

Joselito da Nair e do Zé (a quem espero reencontrar em breve), do Rafael, da Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel.  

segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

BRUMADINHO: VALE DE LÁGRIMAS, VALE DE LAMA


O mais recente crime ambiental ocorrido em Minas Gerais é a expressão mais clara de como o capital submete a natureza e a vida aos seus propósitos desenfreados de acumulação, fazendo cada vez mais ricos os ricos americanos, europeus, sejam lá quem forem seus investidores principais. O capital, ao contrário do que pensei anteriormente, administra muito bem a sua enorme onda de lama. Aqui, e em todo lugar do mundo. Aonde ele chega produz fome, exclusão, guerras e mortes! Mata anciãos, crianças, mulheres, indígenas, negros, pobres e demais indesejáveis. Mas, paga muito bem para que seus efeitos maléficos sejam ocultados embaixo do mar de lama que ele mesmo produz.

·     O Capital compra e paga a mídia muito bem para ela dar a notícia errada. O que é crime, transforma-se em “desastre”, “fatalidade”; A mídia sabe muito bem produzir silenciamentos com outras “distrações”, tais como campeonatos com seus golaços, novelas e seus embaraços, escândalos pessoais, guerras internacionais, propagandas geniais que ela cria para que a sociedade esqueça o crime doloso, e volte, como os pássaros, os gnus, os búfalos africanos, a continuar sobrevivendo como se a ordem natural da lama encobrisse todas as dores que continuam a latejar-se em gritos e clamores por justiça.
·         O Capital compra e paga juízes, promotores públicos, policiais, funcionários públicos, para que as investigações parem em determinado ponto do rio e nunca desaguem no mar que os implicaria definitivamente com o crime da acumulação sem freios, sem ética, sem dó.
·         O Capital compra e paga seus/suas deputados/as no Congresso Nacional e na Assembleia Legislativa de Minas e de todos os estados aonde têm interesse, para que esses/as deputados/as defendam esses interesses. Esses/as deputados/as são tão assassinos quanto os demais.
Para além de ser uma quadrilha, as grandes mineradoras constituem uma rede criminosa que tem na lama seu mais forte símbolo de extermínio. Há “rejeitos” por toda parte: rejeitos no sistema judiciário; rejeitos na Câmara e no Senado Federal; rejeitos na Rede Globo, na Record, no SBT e na Bandeirantes; rejeitos nos principais jornais escritos do país e nas emissoras de rádio; rejeitos na internet que jogam ainda mais lama sobre a verdade que afundou sob tantos “rejeitos”, do Capital sem jeito.
A Guerra do Vietnã foi um desses rejeitos. A divisão da Coréia em Norte e Sul; de Berlim em Ocidental e Oriental; a bomba de Hiroshima; a situação deprimente da Venezuela; a imensa miserabilidade na Nicarágua, Honduras, Congo, Etiópia, entre outros, são rejeitos produzidos pelo Capital. A riqueza da Inglaterra, dos Estados Unidos, da França, e de outros países considerados bem sucedidos sob a égide do Capital, nada mais é que resultado da exploração do ouro, pedras preciosas, petróleo e demais riquezas naturais dos países explorados. A escravidão foi um desses mecanismos de acumulação de um capital maldito, que deveria devolver aos descendentes dos holocaustos e dos mares de lama, o trabalho não pago, o ouro e as demais riquezas minerais surrupiadas pelo colonialismo perverso que naturalizou a morte como efeito colateral esperado do acúmulo ganancioso de riquezas que não lhes pertencem.   
Disse [o patrão], e fitou o operário
que olhava e que refletia
Mas o que via o operário
o patrão nunca veria.
O operário via as casas
e dentro das estruturas
via coisas, objetos
produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
o lucro do seu patrão
e em cada coisa que via
misteriosamente havia
a marca de sua mão.
E o operário disse: Não!
- Loucura! - gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
- Mentira! - disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.
                                                              (Vinícius de Morares)
Enquanto o operário não perceber que o que ele produz é dele e é de todos/as, jamais saberá o valor do seu trabalho. Quem sabe muito bem o valor do trabalho é o Capital. É este último que acumula riquezas com o trabalho alheio, e o abandona sob a lama de uma aposentadoria duvidosa, de um sistema de saúde precário, de sistema de segurança que protege o capital e trata o cidadão como suspeito permanente que, submetido ao peso de tantos escombros, sucumbe antes mesmo de receber sua aposentadoria de fome.
Mas o verdadeiro criminoso é o Capital, que transforma o roubo – mais-valia – em transação legal aprovada por um Estado, igualmente criminoso, que chancela e legaliza o mar de lama que nos sufoca a existência, nos submetendo a residir por toda a história, nesse “vale de lágrimas” e, sobretudo, de lama.
E um grande silêncio fez-se 

Dentro do seu coração 
Um silêncio de martírios 
Um silêncio de prisão. 
Um silêncio povoado 
De pedidos de perdão 
Um silêncio apavorado 
Com o medo em solidão. 



Um silêncio de torturas 
E gritos de maldição 
Um silêncio de fraturas 
A se arrastarem no chão. 
E o operário ouviu a voz 
De todos os seus irmãos 
Os seus irmãos que morreram 
Por outros que viverão. 
Uma esperança sincera 
Cresceu no seu coração 
E dentro da tarde mansa 
Agigantou-se a razão 
De um homem pobre e esquecido 
Razão porém que fizera 
Em operário construído 
O operário em construção.
                                                                        (Vinícius de Moraes)

Joselito Manoel de Jesus, professor