quarta-feira, 21 de agosto de 2019

CAFÉ, MEMÓRIA E MORTE


Eu estava correndo e a memória de uma tristeza ainda não suficientemente chorada ficou latejando. Apesar dos anos ainda sinto uma tristeza enorme em função da falta de meus pais e de todo aquele universo que nos cercava. Sei que nós, humanos, tendemos a apagar os momentos mais terríveis de nossas memórias, ficando apenas com os momentos mais sublimes ou, pelo menos, aqueles que assim tornamos. Mas não quero saber disso nesta hora que a tristeza reclama da presença da ausência deles. Nair Dórea de Jesus e José Manoel de Jesus, meu pais.

Creio que não guardei o luto como devia, nem chorei como podia e, por isso, a tristeza desta saudade sempre aparece em meu ser. Sou um homem dividido em relação à fé. Mas tenho de crer assim mesmo, para que a morte não elimine definitivamente todas as minhas esperanças. As vezes dá uma vontade de voltar no tempo a fim de abraçá-los mais uma vez e dizer o quanto os amava e que não compreendia isso naquele momento. Algumas pessoas dizem que o saber traz sofrimento. Mas a ignorância traz ainda mais, porque somente considera as outras pessoas, natureza e o mundo a partir de seu ego enfermo. O exercício da alteridade é impossibilitado de acontecer naqueles e naquelas que só percebem a si mesmos/as no mundo, tomando-se como “ponto-de-fuga” na constituição da realidade, realidade mesquinha e tosca.

E nesta noite eu preciso chorar a morte de meus pais. Preciso sentir profundamente o significado de tal evento para mim. Antes eu queria me separar deles e viver a “minha vida”, naquela liberdade que toda juventude anseia e busca. Mas agora, nesta hora da minha existência, na qual eu mesmo estou mais próximo da morte, tive um desejo imenso de ser filho e ter meus pais ao lado. Para pedir todos os perdões que fossem possíveis, para abraçar todos os abraços que pudesse, para amar sem mais, nem menos, só amar, sem porquês, sem senões. Se eu pudesse inventar uma máquina do tempo voltaria mais para abraçar e pedir perdão. Voltaria para olhar nos olhos e, sem dizer uma palavra, dizer tudo o que estou sentindo sobre a importância deles em minha constituição ontológica.

Depois faria um café, pois o café sempre foi a bebida que nos encontrava palavras adentro, formando um feixe dialógico em torno da mesa da cozinha. Neste feixe, todos tecíamos nossas rendas sob a orientação de Nair Dórea de Jesus. À noite o café antecedia a cama e os sonhos. Pela manhã este líquido preto acordava nosso olfato, formando um hábito que nunca nos abandonou. Aprendi a fazer café para produzir aquele cheiro de sempre que compõe minha memória afetiva. Para mim, fazer café tem um significado profundo e fecundo. É sacramento. É a voz que ninguém mais ouve, é a mão que ninguém mais toca, é o abraço que ninguém mais dá, é a oferenda que ninguém pode fazer por mim aos meus pais e, pelas histórias que ela e ele contavam, aos meus avós. De vez em quando o café aparecia nas memórias que meus pais contavam ao redor da cama em noites de candeeiro e de colchas de retalhos. E, de histórias em histórias, de retalhos em retalhos, costurávamos o sentido do mundo e de nós mesmos nele. Fazer café é celebrar a memória fecunda de minha família. É encontrar-se com a própria história singular de quem compartilhou café, afeto e memória, formando subjetividades entrelaçadas naqueles rituais de todos os dias.

Na política nacional do “café com leite” este segundo elemento só ficou conhecido muito tempo depois, por causa de nossa pobreza. Até hoje tenho a sensação de que o leite branco suja o café preto, contaminando sua pureza original, retirando o seu cheiro fundante das manhãs e dos finais de tarde, apagando uma memória que guardo nas profundezas de minha história. Poucas vezes eu vi alguém colocar primeiro o leite na xícara, para depois o café. Geralmente o café sempre vem primeiro, porque talvez, na memória de nossa gente, o café seja primordial. O luto eu também guardo em meu ser. De modo errôneo. Tanto que ainda preciso chorar toda a tristeza que em mim está insepulta, reapresentando a morte que não passou pelo ritual necessário para seguir seu caminho de além. Um além que está aqui, talvez além do meu controle, mas não muito além do meu desejo de novamente celebrar com o café preto a presença dos pais que nunca morreram em mim.

Joselito da Nair Dórea de Jesus e do José Manoel de Jesus.