Nas
últimas semanas a questão da pedofilia tem sido bastante debatida em âmbito nacional
e internacional. No Brasil, um prefeito da cidade de Coari, Amazonas, Adail
Pinheiro, além de alguns assessores próximos, está sendo acusado de abusar sexualmente
de crianças na cidade acima mencionada. Segundo reportagens
[...]
ele é acusado de chefiar
uma rede de exploração sexual de crianças e adolescentes no município
localizado a 363 km de Manaus. Adail e outros seis foram denunciados pelo
Ministério Público do Estado do Amazonas (MPE-AM) na sexta-feira (7), com
pedido de prisão de seis acusados. (http://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2014/02/no-am-prefeito-preso-por-pedofilia-se-entrega-e-segue-para-batalhao-da-pm.html)
Do mesmo modo, Sérgio Belleza, autor de livros, em publicação no dia 05 de fevereiro de 2014, página 2, do jornal Correio, também denuncia o modo como nossa sociedade brasileira lida com essa monstruosidade. Segundo este autor
A sociedade brasileira está atônica, confusa,
desacreditada, diante talvez do pior dos males, a exploração infantil, muito em
voga, e mais presente ainda em tempo de férias, alegria, festa, de verão e
turistas.
Vivemos entre o bem e o mal, o belo e o feio, e assim
o homem vai exterminando a dignidade do próprio homem. Filhas de famílias
desajustadas, crianças pobres, trocam sexo por dinheiro, por comida [...]
O número de meninas prostituídas é alarmante no
Brasil, fala-se em mais de 120 mil meninas prostituídas. O Norte e Nordeste,
Salvador e Recife ganham facilmente. O “pornoturismo” ou exploração infantil
está presente, aniquilando definitivamente tudo de bom e bonito que uma criança
possa vir a ter [...] (BELLEZA, 2014, p.2)
Turistas mal intencionados - muitos desses pensam que a maioria, senão todas, das mulheres brasileiras são prostitutas - padres pedófilos, leigos doentios, pastores e padrastos igualmente pedófilos, entre outros "lobos maus", formam uma rede maldita de predadores de inocentes, tecida, inclusive, por olhos fechados e ouvidos tapados na
sociedade, que pesca crianças a fim de devorá-las, comprometendo todas as suas
existências e dando-lhes um testemunho concreto de que “o homem é o lobo do
homem”.
Todos nós temos nossas sombras, e o maior erro da humanidade foi não
tê-las admitido. Pensamos, e até hoje, que o ser humano era apenas sapiens, contudo, ignoramos o demens. “Quando o povo não teme o terrível, então vem o grande terror” (Lao
Tzu). Na Bíblia, Jesus só expulsa o demônio quando este diz o seu próprio nome.
Nós temos dificuldade de pronunciar o nome do (s) demônio (s) que nos aflige
(m), ou que também somos, e por isso a grande dificuldade de libertar-se dele (s).
Observo algumas pessoas fingindo que “conheceu Jesus”, que “está com Jesus”,
que “Jesus é a causa do seu sucesso” e que, a partir da data em que disse seu “sim”
ao Senhor, passou da água pro vinho, como um milagre indolor.
Ora, penso que toda verdadeira
conquista exige um desafio decente a ser superado. Exige uma longa travessia na
qual o maior desafio, como diria Buda, não são os outros, nem as circunstâncias
– dificuldades, perigos, obstáculos – mas nós mesmos. A travessia pode até não
ser completada, mas o querer deve ser. Ou a gente faz porque adotamos que deve
ser feito por valores que carregamos, ou fingimos a vida inteira com palavras
que criamos para esconder verdadeiramente quem somos. Infelizmente vivemos numa cultura de fingimento. A travessia não é fácil. Para que a gente renasça de nós mesmos é preciso muita concentração, firmeza de propósitos e enfrentamentos. Eu tenho um poema que fiz e depois
entreguei para a amiga Fátima, a partir do título de um livro de Pablo Neruda: “Para
nascer, nasci.” Neste poema eu digo que estou
renascendo, que as dores do meu parto, só eu que sinto. A travessia é um
processo de gestação, de longa caminhada, de enfrentamentos difíceis com o
nosso ser-sendo. E parir dói. Principalmente quando o nascituro somos nós
mesmos. Principalmente quando o renascimento precisa, concomitantemente, de um
ou mais abortos num processo dialético tenso e intenso.
É
preciso ter muita coragem para encarar quem somos, despindo-nos das mentiras e
ilusões que povoam o nosso ser. Alguns dizem até que as mentiras cumprem uma
função de proteger-nos de nós mesmos, a fim de que possamos seguir com certo
equilíbrio mental. Mas não acredito nas mentiras e na sua capacidade de nos proteger. Creio mesmo que as mentiras
nos atrasam, nos enchem de ilusões, as vezes por toda a vida, nos embala na
hipnose na qual somos "outro (a) mais", como se os demônios vivessem apenas nos (as) "outros (as) menos".
Voltando
ao caso da pedofilia, o Arcebispo de São Salvador da Bahia e primaz do Brasil,
Dom Murilo Krieger, escreveu, no último domingo, 9/2/2014, texto para o jornal
A Tarde, intitulado “A ONU, as crianças e a Igreja”, referindo-se às acusações
do Comitê sobre os Direitos da Criança das Nações Unidas. Krieger reconhece os
casos cometidos por membros do clero, afirmando que tais atos
[...]
são condenáveis e mais ainda quando envolvem menores de idade. Um só caso já
seria suficiente para nos deixar tristes e decepcionados, pois é inimaginável o
mal que um adulto causa a uma criança indefesa, quando a fere no mais profundo
de sua dignidade e sensibilidade. (KRIEGER, 2014, p.A3)
Ainda
segundo Krieger, a Igreja, através do Papa Bento XVI
[...]
criou uma Comissão especial para acompanhar e dar uma resposta às diversas
acusações que chegaram a seu conhecimento. O papa Francisco não só seguiu na
mesma linha como, além disso, reforçou o papel dessa comissão. Quem quiser conhecer
a atuação da Santa Sé sobre esse tema poderá se debruçar sobre os mais de 50
itens que estão no site do Vaticano (www.vatican.va)
na coluna à esquerda: “Abusos de Menores. A resposta da Igreja.” (KRIEGER, 2014, p.A3)
Eu
fiquei curioso e fui ler um dos comunicados, feito pelo Arcebispo de Freiburg im Breisgau, Dom Robert Zollistsch.
Neste comunicado, ele diz que, acerca da igreja na Alemanha:
- ·
O papa Bento XVI tomou conhecimento com
grande tristeza e emoção dos casos de abuso sexual de crianças;
- ·
Os bispos alemães estão profundamente
transtornados pelos abusos que foram possíveis no ambiente eclesial;
- ·
Foi feito um reiterado pedido de desculpas às
vítimas;
- ·
Os casos foram verificados há muitos anos;
- ·
Garantiram às vítimas e seus parentes uma
ajuda humana, terapêutica e pastoral;
- ·
Reforçaram a prevenção, com aumento da vigilância.
Evidentemente
não se pode julgar uma instituição pelo que alguns de seus membros fazem. Mas
podemos avaliar criticamente as respostas que a instituição dá. No caso do documento
acima, eu assisti numa reportagem de tv que o outrora bispo Ratzinger já tinha
tomado conhecimento de casos de abuso, mas preferiu ocultar, “com grande
tristeza e emoção”, suponho. Os bispos alemães profundamente transtornados,
nunca vieram a público para expressar esse “transtorno coletivo" de parte do clero alemão. O pedido de desculpas
às vítimas é só um passo das atitudes que a igreja deve tomar. A garantia às
vítimas e seus parentes de uma ajuda humana, terapêutica e pastoral – a pastoral
eles e elas, creio, devem evitar – soa como uma garantia de que elas fiquem em
silêncio, afinal, a igreja afirma, através do documento de Dom Robert
Zollistsch, que não denunciarão o clérigo acusado às autoridades judiciárias se
a vítima assim o quiser: “Renunciaremos a fazê-lo unicamente em
circunstâncias extraordinárias, por exemplo quando isto corresponder ao desejo
expresso da vítima.” Que garantias teremos de que as vítimas não serão seduzidas a,
“num ato de compaixão e misericórdia” – típico da Igreja Católica – não
denunciar o acusado de pedofilia às autoridades judiciárias?
O
fato dos casos ter sido verificado há muitos anos também é outro dado
importante. O implícito do texto nos diz que podemos respirar aliviados, visto que
não há mais casos de abuso sexual de crianças na Igreja. Foi no passado.
Acabou. Passou. E isto associado às Normas Substanciais elaboradas pela
Congregação para a Doutrina da Fé, que, no artigo 7.º afirma que:
Como a maioria
dos casos denunciados aconteceu há muitos anos, e, segundo eles, não acontece
mais, tais delitos foram prescritos no âmbito eclesial. Pecado sem delito,
crime sem castigo.
Em
todas as leituras e reportagens que tenho assistido percebo que a Igreja saiu
da defensiva e foi para a ofensiva diante das cobranças do Comitê da ONU,
inclusive insinuando que o mesmo Comitê é suspeito, na tentativa de desqualificar
o documento a partir da suspeição dos seus autores. Trechos abaixo do texto de
Krieger (2014) evidenciam isso.
No
relatório apresentado na última quarta-feira (05.02.214), o Comitê sobre os
Direitos da Criança na ONU esqueceu, contudo, daquela advertência popular: “O
sapateiro não deve ir além da sola!” É que, além de não levar em conta a
maioria das recomendações de proteção à criança que já são defendidas pela
Igreja, e de ignorar a maior parte do que está sendo feito pela Igreja, o
Comitê foi além: julgou-se no direito de criticar vários pontos da doutrina
católica, questionando sua visão sobre o aborto, a família, a complementaridade
do homem e da mulher, o casamento homossexual, a contracepção etc. – enfim,
sobre ensinamentos que, para a Igreja, não são negociáveis.
[...]
Que direito tem um comitê, mesmo que da ONU, de querer se imiscuir em questões
doutrinais ou morais de uma religião? Claro: o comitê em questão é formado por
pessoas que têm suas próprias ideias, sua filosofia de vida e, também, suas
ideologias. Quem desconhece a pressão que comitês como esse sofrem de ONGs
internacionais? (KRIEGER, 2014, p. A3)
Krieger
tenta, de fato, desqualificar as denúncias e exigências colocadas pelo Comitê,
a partir da crítica ao contexto de descoberta – ou seja, o modo como seus autores e suas autoras elaboraram o documento e suas filiações políticas e ideológicas – deixando
de lado o contexto da justificação. Krieger apela para a falácia genética, pois, nesta falácia, uma verdade deixa de ser
verdade a partir do autor que a expressa ou elabora. Assim como os nazistas
condenaram a teoria da relatividade porque seu autor era judeu, Krieger tenta
desqualificar as denúncias e exigências contra a pedofilia no âmbito da Igreja
Católica porque seus autores e suas autoras podem ter uma ligação com ONGs
internacionais.
Segundo
uma das reportagens
Um
relatório sem precedentes do Comité para os Direitos da Criança, apresentado em
Genebra, concluiu que os abusos foram “sistemáticos” e pede à Igreja Católica
que entregue os seus arquivos sobre abusos sexuais para que todos os casos
sejam conhecidos, “até os escondidos”.
Mais, é recomendado que a comissão criada no ano passado pelo
Papa Francisco para investigar estes crimes avalie também, com precisão, a
forma com a hierarquia da Igreja Católica lidou com os casos.
“O Comité está preocupado com o facto de a
Santa Sé não reconhecer a extensão dos crimes cometidos, que não tenha dado os
passos necessários para proteger as crianças e que tenha adoptado um
comportamento e tomado decisões que levaram à continuação dos abusos e à
impunidade dos predadores”, diz o documento apresentado em Genebra. (http://www.publico.pt/mundo/noticia/onu-exige-ao-vaticano-prisao-imediata-de-todos-os-padres-pedofilos-1622443)
Para
as crianças e demais menores atingidos ficam o tratamento terapêutico e
pastoral, a “ajuda humana”, o pedido de desculpas, etc. Mas sobre a identificação
e a punição dos culpados, silêncio completo.
A
Igreja recusa-se fazer a grande travessia que ela mesma propõe aos pecadores,
aos outros. Está mais preocupada com a sua imagem ilusória de “santidade” do
que reconhecer e corrigir seu caminho de pecadora. Mas é nesse processo que o
seu demens cresce, ganha força,
veste-se nas aparências de uma igreja que esconde os seus graves pecados
embaixo do tapete, pois eles só apareceram quando não houve mais a
possibilidade de ocultá-los. A preocupação do Comitê sobre os Direitos da
Criança da ONU sobre os passos da Santa Sé têm sentido. Numa sociedade humana
como a nossa que, por trás dos disfarces hipócritas que usa, crianças pagam com
suas existências a impunidade de bestas humanas, estejam elas de bata ou de
gravata. É preciso enfrentar a desumanidade que nasce do crime e de sua
impunidade, é preciso reconhecer sinceramente os demens que coexistem conosco a fim de prevenirmos diante de seus
futuros ataques aos inocentes desprotegidos do mundo, caso contrário, seria melhor admitirmos o nosso instinto de predador diante de presas desprotegidas nas savanas do mundo, pelo menos na selva a presa ainda tem a chance de escapar.
P.S. Sugiro aos fervorosos católicos que participaram da caminhada em homenagem ao Senhor do Bonfim, desafiando uma tradição do povo africano em Salvador, que montem uma vigília, digo, vigilância, neste carnaval, a fim de identificar suspeitas de prostituição infantil, combatendo o "pornoturismo". Seria um pedido de desculpas mais concreto e aceitável.
Joselito
M. de Jesus,
BELLEZA, Sérgio. Salvador, verão, festa, turista e prostituição infantil. Correio. Salvador, p.2, 5/2/2014.
KRIEGER,
D. Murilo S. R. A ONU, as crianças e a Igreja. A Tarde. Salvador, p. A3, 9/2/2014
SALMON, Wesley C. Lógica.
6. ed., Rio de Janeiro, RJ: Editora Guanabara S. A., 1987.
TZU, Lao. Tao-te king:
o livro do sentido e da vida. 13. reimpr. São Paulo: Pensamento, 2006.
http://www.vatican.va/resources/resources_presidente-conf-ep-tedesca_po.html