sábado, 14 de outubro de 2017

SUJEITO-POLÍCIA x SUJEITO-BANDIDO: GUERRA DE UM PARADIGMA FALIDO

No final do século, encontramos-nos perante a desordem tanto da regulação social como da emancipação social. O nosso lugar é em sociedades que são simultaneamente autoritárias e libertárias. (Boaventura de Sousa Santos)

O autor acima citado, discutindo a transição paradigmática, elege duas dimensões privilegiadas para assim o fazer: a dimensão epistemológica e a dimensão societal. Segundo ele
A transição epistemológica ocorre entre o paradigma dominante de ciência moderna e o paradigma emergente que designo por paradigma de um conhecimento prudente para uma vida decente. A transição societal menos visível ocorre do paradigma dominante – sociedade patriarcal; produção capitalista; consumismo individualista e mercadorizado; identidades-fortaleza; democracia autoritária; desenvolvimento global desigual e excludente – para um paradigma ou conjunto de paradigmas de que por enquanto não conhecemos senão as “vibrations ascendentes” de que falava Fourier (SANTOS, 2001, p.16)
Essa transição, com suas dimensões, estão ocorrendo neste momento, gerando um desafio enorme em nossa capacidade de entendimento. Alguns recorrem, com o avanço do evangelismo de resultados, a explicações do fim do mundo na base do maktub, e assim se resignam ao “inevitável” armagedom, apontado os dedos para os pecadores que, segundo eles e elas, perecerão por não aceitar o deus deles/as. Outros fingem não ver o que acontece a sua volta, mesmo porque não entendem e, desse modo, se acomodam em viver nesse “caos” como se não houvesse amanhã. Alguns, porém, recorrem à reflexão sistematizada porque desconfiam que as partes só podem ser apreendidas coerentemente por um todo complexo que lhe dê explicação em seu conjunto de ocorrências, aparentemente sem nexos.
Há uma mudança de paradigmas que está provocando no mundo reações que geram inúmeros acontecimentos que exigem decifração sob pena de sermos devorados pelo sem-sentido que pode nos levar à loucura coletiva. As mudanças começaram antes da segunda guerra mundial e agora estão se acelerando, o que dificulta nossa forma de entender, exigindo outro entendimento para além da luta do “bem contra o mal” que alguns idiotas querem nos impor como discurso “verdadeiro e justificável”. Ou superamos esse maniqueísmo fácil e tolo, ou sucumbiremos em guerras que nos estraçalharão eternamente num inferno terreno. Somos bons e maus e, assim sendo, como posso combater o mau alheio se preciso travar uma grande batalha dentro de mim mesmo? Como eliminar meu/minha inimigo/a se ele/a apresenta dimensões de bondade que me faltam? Quais foram os critérios de escolha dos/as meus/minhas inimigos/as? Quem me ensinou a identificar e a odiar aquele que eu penso que escolhi para inimigo?
Saiu recentemente um estudo do Fundo das Nações Unidas da Infância (Unicef) que mostra que o Brasil bate recorde na morte de adolescentes e jovens negros, principalmente no Nordeste, tendo Fortaleza e a minha cidade de Salvador como as primeiras colocadas nesse holocausto sinistro. Segundo o repórter responsável pela matéria
Os dados mais recentes, de 2014, divulgados ontem [11/10/2017], mostram que o Índice de Homicídios na Adolescência (IHA) brasileiro alcançou a marca de 3,65 pessoas entre 12 e 18 anos assassinadas para cada grupo de mil jovens.
A pesquisa analisou os homicídios de jovens nos 300 municípios com mais de cem mil habitantes e se baseia nos dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade do Ministério da Saúde. (ANTÔNIO JÚNIOR, 2017, p.B5)
E muitos de nós somos levados a pensar, na base ideológica do “bandido bom é bandido morto”, que se eles morreram é porque mereciam, na medida em que é muito difícil morrer um “inocente” nessa guerra urbana, na qual o tráfico se torna o maior responsável, como se o tráfico de drogas fosse uma entidade maligna que explica por si só, a tragédia anunciada e proclamada.
E então se reforçam as condições ideológicas para o fortalecimento do sujeito-polícia como o herói que vai restituir a ordem perdida ou, quando muito, nos proteger da desordem da orda barbaria que invade nosso "território de segurança e bem-estar", o que o mesmo Santos denominou de "zonas civilizadas", em contraposição às "zonas bárbaras". Quando eu era menino ouvia discursos pronunciarem uma frase que me deixava esperançoso: “- polícia é polícia, bandido é bandido. Os dois não se misturam". As linhas de fronteira estavam bem delineadas. A polícia era a ordem e o bandido a desordem. E quando eu me refiro à polícia incluo todas as forças armadas. Mas o sujeito-polícia e o sujeito-ladrão com o tempo foram interpenetrando as fronteiras proibidas, e os bárbaros, desde aquele momento, já estavam invadindo nosso “sagrado” território moral, portando a farda como se da ordem fossem. Já não se contrapõem tanto assim nessa ordem em frangalhos, falida, apodrecida, sobre a qual tentamos nos agarrar. Já se confundem entre tiros e fugas, entre planos e assaltos, entre pontos de drogas e munições. Os filmes de José Padilha, Tropa de Elite e Tropa de Elite, o inimigo agora é outro, retrata isso.
E o estado-regulador entrou em colapso. Não consegue mais responder à “novidade que veio dar à praia” (Gilberto Gil). Os arrastões, feitos por adolescentes, em sua maioria negros, são assustadores sim, mas expressam o grito da barbárie - não dos novos “bárbaros” – esses sujeitos gerados pelas ausências criminosas de um estado burguês que estraçalha tanto o policial pobre que recebe uma merreca para combater o pobre revoltado, e o pobre revoltado que assume a violência e o crime como caminhos únicos desse labirinto mortal no qual, como ratos em um experimento maquiavélico, fazemos atrás da comida e da sobrevivência. Nesse sentido, o sujeito-polícia e o sujeito-ladrão-traficante, fazem parte da mesma desordem, a desordem burguesa e, no caso do Brasil, criminosamente racista.
O sujeito-polícia, deixou de ser o herói, mesmo porque, para grande parte da população, ele não representa mais a ordem, mas compõe a mesma desordem que aflige uma cidadania de papel (Dimenstein), com sua suposta autoridade agressiva e violenta, tentando obter respeito com a arma na mira da cidadania questionadora de seus métodos de capitão-do-mato. Ao lado do sujeito-ladrão, o sujeito-polícia atua, com balas perdidas oferecidas aos cidadãos. Essa "ordem" foi engolida pela desordem burguesa deste momento histórico e não vai ser esta que nos proporcionará esperança. Não vai ser essa democracia autoritária, nem esse neopatriarcalismo na forma humana de um Bolsonaro posando de herói nacional, com sua violência à ponta da arma, que vai nos dar esperança. A nova ordem precisa ser gestada num novo paradigma. Quem sabe não seja um paradigma prudente, desarmado, no qual nossos/as adolescentes tenham escola pública de qualidade, saúde pública, lazer e arte, que caracterizam uma vida decente e dissolvem os sujeitos-morimbundos de uma dimensão societal que insiste em voltar no tempo. Brasil Nunca Mais!

Joselito Manoel de Jesus, Professor, Poeta e insone
Com o auxílio de

JÚNIOR, Marco Antônio. Brasil bate recorde na morte de jovens negros. A Tarde, quinta-feira, 12/10/2017. Salvador, Bahia.

SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. Vol.1 3. ed. São Paulo: Cortez, 2001.