quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

A POSSE

Estava fazendo algo completamente alheio ao que escrevo agora. Acontece que a maioria dos textos que escrevo não são pensados antecipadamente. Eles vêm. Como que amalgamados em meu ser, lá no profundo silêncio que recolhe as percepções indizíveis, os sentidos vão viajando em fluxos socioculturais que os direcionam para a expressão verbal. Os fluxos socioculturais são dinâmicas constituídas no estoque social de signos disponível e na competência linguística, que é também extralinguística, que caracteriza minhas expressões verbais. E é dessa complexidade que os sentidos se expressam em pensamentos que, por sua vez, expressam sentidos outros que se filiam nessa corrente discursiva, colocando em discussão o alcance da autoria dos “meus” textos.
Eu não sou o primeiro ser humano dizendo as primeiras palavras, embora ache isso quando falo. Nem os sentidos partem de mim, embora também eu acredite nisso quando me expresso. Ao aceitar essas duas ilusões, penso que produzo as ideias. Mas, na verdade, as ideias me produzem. Ou seja: eu não sou o sujeito de minha expressão verbal, pois os sentidos não partem de mim, eu apenas os retomo em minha prática discursiva. Eu entro na discursividade e, nesse movimento, não sou o sujeito de onde parte o sentido. Há, como diria Althusser, um assujeitamento, pois, ao retomar sentidos já ditos e esquecidos que se encontram na memória discursiva, sou atingido pela ideologia que foi se sedimentando no processo histórico, independente se no plano racional concordo ou discordo da ideologia que produz seus efeitos de sentido e, por isso, não interessa o sentido real do que digo, mas o real do sentido, onde seus efeitos tomam forma.
E foi o tema da posse que veio no fluxo que me atingiu há pouco. Eu percebo o quanto gostamos de ser “donos” de algo. Ter a posse parece nos proporcionar uma satisfação momentânea significativa. Quando temos, geralmente queremos mostrar, exibir. A posse parece induzir um significado que a cola a algo ou a alguém à nossa pessoa, nos dando prestígio. Ao tirarmos fotografia com uma pessoa “famosa” acreditamos, muitas vezes através do inconsciente coletivo, que compartilhamos um pouco do prestígio dessa pessoa, mesmo que de modo muito fugaz. Ao brincarmos tirando fotografia ao lado de um carro sofisticado, como se o tivéssemos abrindo sua porta para dirigi-lo, também expressamos através desse gesto, essa ideia coletiva. Da mesma forma, ao passearmos com uma mulher considerada bonita e gostosa, ou com um homem assim concebido em nosso contexto estético, exibindo-os discretamente ou não, também gozamos dessa admiração pelo olhar e avaliação alheias. Este que vos escreve, quantas e tantas vezes não caiu nessa armadilha da posse? Várias! Várias vezes e ainda caio.
Não somos donos de nada, nem mesmo de nossa existência. Vivemos míseros anos. A maioria esmagadora de nós nem consegue chegar ao centenário. E não somos donos nem das palavras que pensamos escolher ao falar? Se levamos em consideração que somente a razão é que impera, então não. Mas se o inconsciente é reconhecido como constituinte dos sentidos ideológicos que se materializam na ligação entre a língua e o inconsciente, então sim, podemos reivindicar autoria, ainda que precária do ponto de vista de sua posse individual, ou de sua elaboração primordial. A tentativa de colar o suposto prestígio à nossa pessoa denota o quanto ainda carecemos da compreensão de que a posse é um fluxo ideológico que afeta a nossa existência de modo prejudicial à nossa emancipação individual e coletiva. Indica também o quanto necessitamos nos apossar de algo ou de alguém para poder ser alguém. O quanto vazio estamos de nós mesmos, em nossa decadência espiritual. 

Quando não tiver mais nada
nem chão, nem escada
escudo ou espada
O seu coração… Acordará

Quando estiver com tudo
lã, cetim, veludo
espada e escudo
Sua consciência… Adormecerá

E acordará no mesmo lugar
do ar até o arterial
no mesmo lar, no mesmo quintal
da alma ao corpo material
Não ter a mim, como senhor, como dono, pode abrir a possibilidade do reconhecimento de que temos a nós mesmos. Podemos ter a comunidade em seus gestos de solidariedade, reterritorializando espaços fechados por dinâmicas individualistas e reconstruindo possibilidades emancipatórias em nosso cotidiano. Tenho a mim porque muitos me têm. É pelo outro que me constituo enquanto eu. Parece grande novidade. E é! Alguns/mas já disseram isso, mas poucos de nós vivenciamos.
O porquê eu preciso ser dono num mundo capitalista reducionista até se explica. Mas o sentimento de poder e realização de “ser dono” se expande das coisas às pessoas, porque muitos/as de nós acreditamos que podemos comprar tudo à nossa volta: fidelidade, admiração, respeito, submissão, e até amor! Que se compra juízes, deputados, senadores, prefeitos, governadores e até presidentes, disso não tenho dúvida, principalmente nesse Brasil decadente de agora. Mas, comprar amor? Ser dono exclusivo do coração de alguém? Huuum. Tenho certeza que não é possível essa aquisição no mercado. Lerei nestas férias um livro de Jacques Cazotte, O diabo enamorado, no qual este, para ter a posse da alma de um homem, transforma-se numa mulher - Biondetta - para seduzi-lo e, surpreendentemente, termina se apaixonando por este. Nessa bela ficção o amor vence as artimanhas do diabo, traindo-o a si próprio. Bela ficção. O "Cão" queria a posse da alma do outro, mas terminou sendo traindo pelo sentimento que tinha certeza de não possuir. Réréré.  
Eu não quero ser dono da alegria, nem do prazer, nem perdão. Não quero ser senhor da emoção que brota nos momentos mais sublimes, quando as pessoas esquecem de suas posses e vaidades e se entregam à vivência feliz do compartilhamento de um grande momento comum.  A posse não me faz feliz. A posse não me torna melhor. Algumas vezes a posse me torna mais triste e vazio. Se tudo isso passar por mim, a alegria, a sabedoria, o prazer, o perdão, as emoções, a posse da terra, dos rios, dos dinheiros, das fábricas, das universidades e escolas e penetrarem os/as outros/as, num ciclo vivo de humanidade que se compraz na alegria alheia, aí sim, eu realizarei todos os meus sonhos abrindo mão de controlar, sob o meu domínio exclusivo, o que foi permitido a qualquer um/a. Quem sabe assim meu coração e minha consciência não acordarão? 


Joselito da Nair, do Zé, de Ana Lúcia, do Rafael, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel 

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

CORRUPÇÃO EM TODOS OS DESENCANTOS

Ao nascer de forma muito simples, Jesus nos deu o exemplo de cuidar desse valor. Jesus não quis a riqueza, pois a riqueza, como nos ensinou Karl Marx, só existe pela pobreza que ela provoca. A riqueza é expressão legalizada do seu contrário, a pobreza. Jesus, como filho da cultura judaica, via abundância, e não a riqueza, como sinal de benção. E como é bom quando a abundância nos chega! Usufruímos alegremente. Mas não é disso que desejo falar.

Eu sou contra essa institucionalização de Jesus através, inicialmente durante muito tempo, da igreja católica e, atualmente, desta e das igrejas neopentecostais. Toda religião que ganha muito poder, no afã de fazer com que todos e todas sigam suas interpretações particulares de Jesus, termina se corrompendo, inevitavelmente. Nós, brasileiros e brasileiras, estamos sendo bombardeados/as pelas cargas nocivas da corrupção alastrada em nosso país. Contudo, ao se olhar para a Igreja Católica percebemos que não há muita diferença em relação a isso. A misteriosa e suspeita morte do Papa Paulo I, que estava investigando os negócios escusos entre o Banco Ambrosiano e o Banco do Vaticano, é apenas um exemplo, além dos casos antigos e recentes de pedofilia. Papas tinham mulheres e filhos, lutavam para permanecer no poder e viviam no luxo que aquele poder proporcionava. Como a gente viu nas últimas notícias relacionadas a isso, cardeais do alto escalão também tinham, ou têm, mansões e nelas faziam reformas milionárias com o dinheiro da igreja. A chegada do Papa Francisco tenta colocar um freio nisso, investigando também a corrupção no Banco do Vaticano.

Da mesma forma, as religiões neopentecostais também estão envolvidas com corrupção. Ninguém conduz coercitivamente um homem poderoso como Silas Malafaia sem algum indício sério de seu envolvimento em lavagem de dinheiro sujo. Da mesma forma, os líderes dessas religiões enriquecem a olhos vistos com o dinheiro de milhões de tolos/as que pensam que podem pagar Deus para obter benefícios pessoais. Malafaia, R. R. Soares, Edir Macedo, Valdemiro Santiago, “Bispa” Sônia, entre outros e outras, são todos/as hipócritas e envolvidos com dinheiro alheio. Não são “abençoados/as”, são canalhas! Eu sempre fiquei incomodado quando melhorei minha vida econômica e meus colegas de infância, agora evangélicos, começaram a me chamar de “abençoado”. Se essa era a principal associação para assim me denominarem, então essas pessoas pensam errado. Eu sou “abençoado” como você que lê este texto agora também o é. Não acredito que Deus me abençoou e deixou de abençoar outra pessoa até melhor que eu do ponto de vista espiritual.

Acho essa ideia ridícula a de tentar converter o mundo inteiro para sua religião. Não quero que ninguém venha tentar me converter. Por trás de quase todo processo de tentativa de conversão há geralmente a imposição de interpretações que legitimam a injustiça social, o controle político das elites e a resignação dos pobres diante das injustiças. Ao tentar pregar a verdade para o outro, na tentativa de aumentar o número de fiéis a serem “salvos”, estamos apenas contribuindo para o massacre de culturas, o silenciamento da crítica e a impossibilidade da denúncia de nossos crimes, ou melhor, “pecados”. Malafaia foi recebido pelos “seus fiéis” como um injustiçado, não como um possível criminoso ralé que participa de esquemas ilícitos de desvio e lavagem do dinheiro público.

Diante disso tudo, eu vejo o caminho da diversidade religiosa como princípio fundamental de convivência salutar entre nós. Embora não seja de nenhuma delas, eu sou do candomblé, sou do espiritismo, sou budista e sou cristão, não sou e sou de todas as religiões. Não desejo converter nem salvar a ninguém, senão a mim mesmo, não como uma busca por uma recompensa pós-morte, mas como uma vivência de fé, resguardando os valores que acredito com convicção, assegurando-me na força divina que a todos/a acolhe em sua misericórdia. Assim como a riqueza é a consequência da pobreza e vice-versa, assim também uma religião única é sinal de repressão a outras formas de crer e de manifestar suas relações com Deus. Uma só religião é a denúncia de que seus/as líderes massacraram outros povos em nome de Deus, afinal Josué e Moisés “passaram ao fio da espada” muitos povos que se encontravam em seu caminho rumo à terra de onde emana “leite e mel”, sem discriminação de mulheres e crianças. Muitos/as sofreram naquela passagem. Hebreus e, principalmente, não-hebreus. Os judeus até hoje ressentem do fato de que Jesus não veio exclusivamente para eles, como esperavam. Jesus não veio numa carruagem ornada a ouro, acompanhado de um imenso exército que destruiria os "infiéis" e daria a "salvação" somente para eles. Veio pobre no meio dos pobres, simples, humilde e amoroso. O perdão e a misericórdia em Jesus, valem mais que a vingança e o castigo. E por isso é Natal para todos e todas!   

A fé que não se pensa gera o fundamentalismo que produz a corrupção, o sofrimento e a morte.

Joselito (Zé Pequeno) Manoel de Jesus

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

AMOR-NATAL

O amor é a coisa mais alegre
O amor é a coisa mais triste
O amor é a coisa que eu mais quero.
Adélia Prado

Fiquei imaginando que o amor é como um círculo. Cada vez mais minha ignorância me ensina que o amor é a realização plena do nosso ser, num retorno eterno aos mesmos lugares. É porque, depois de tantos erros causados pela própria ignorância cega de minha tola vaidade, a gente vai entendendo o quanto faltou de amor e o quanto nos desviamos de nossa realização plena rumo a Deus.

No amor, sempre passamos pelos mesmos pontos, mas, de forma inexplicável, parece que estamos chegando pela primeira vez àquele lugar. Não há saída fora do amor. Somente a maldade, a corrupção e a guerra respondem aos desvios de nossa humanidade pra longe de Deus e, desse modo, perecemos distantes do caminho maravilhoso que nos conduziria à plenitude de nosso ser no encontro com Aquele Que É.

Mas o amor é tão difícil! É tão difícil apaziguar o nosso ser diante de um contexto que nos convida à violência, ao consumo, à falsa realização baseada na obtenção de tantas coisas inúteis, ao apego desesperado a um ego mal tecido na alienação de nossa realização legítima em Deus. É tão complicado agir com a sabedoria que nos leva à superação do conflito rumo ao perdão e à reconciliação. É preciso um exercício permanente através de atitudes firmes, baseadas em convicções fortalecidas por nossa fé. E constantemente nos pegamos nos desviando do caminho do amor. Porque não é fácil amar. Porque somos crianças birrentas ainda, com atitudes tolas que não conseguem mergulhar profundo em si, porque, caso assim o fizéssemos, descobriríamos a originalidade insubstituível de nossa existência a serviço do amor, amando a cada gesto, tornando-nos  “deuses” com Deus, por causa do amor vivido.

E eu, que aqui escrevo, ainda tolo sem saber amar, talvez somente em fugidios momentos de milagre, em que abro mão de “ser mais-não-sei-o-quê” para servir a mais o ser outro que me aponta o destino da humanidade no seu ciclo espiritual no planeta terra.

E somente amando é que eu me encontro. Não um amor piegas, instituído por uma ideologia rasteira. Mas o amor profundo que me faz encontrar no outro a mim mesmo e a Deus.

Feliz Natal, Feliz Amor Nascendo no coração de Todas e de Todos. O Amor Menino em sua plenitude divina.


Joselito Manoel de Jesus, O Emanuel. 

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

DEDADA DE LAVADA

Moro sem moral
Mora em justiça seletiva, pessoal.
Moro demora quando a corrupção é tucana
não tem nada de bacana
como passa no jornal

Quando a corja é tucana
não há prisão coercitiva,
nem delação premiada
na loteria sorteada dessa triste comitiva.

As perguntas são selecionadas
a dedo,
dedos de mãos lavando a outra
de mãos lavando a jato
de Curitiba em seu Olimpo
pra não dar tempo histórico
de passar o Brasil a limpo.

Dedo dedura 
e não sei se perdura
quando começa a apontar
do PSDB para lá.

Tem dedo-duro sendo escolhido 
a dedo
naquela moral morosa,
moral manhosa e, digamos,
que pra um lado da lavagem,
a moral é complacente e “amorosa”.

Se nesse mato tem cachorro
e se nesse angu tem carne
Nessa justiça, lá pras bandas de Curitiba,
nesses processos, lá pras ondas da Rede Globo
nesse clima de medo
nessa onda de denúncias seletivas
Sim: aí tem dedo!

Dedo-mole como um fole 
Dedo-duro como um furo
pra olhar pelo buraco
pra fazer uma abertura
pra lavar só para um lado
a “lava jato” de atadura, 
na boca do povo pato.


Joselito M. de Jesus, professor, poeta, amante

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

QUANDO SOMOS ESTUDANTES E PROFESSORES NÃO PODEMOS NOS ESQUECER/ OU/ SOBRE A AVALIAÇÃO

Como falei para vocês em sala de aula, avaliação, para mim, não é um instrumento árido, classificatório, seletivo e excludente. Se assim o fosse eu não estaria educando, mas adestrando, ensinando a subserviência e contribuindo enormemente para a apatia intelectual de vocês, posto que estaria recriando, através da prática avaliativa, as condições que reproduzem os valores capitalistas que hierarquizam pessoas, grupos, comunidades e instituições. Estaria fortalecendo a competitividade darwiniana que o capitalismo selvagem propõe como modelo ideal para pautar as relações humanas, o que é deprimente. Nesse modelo, convencer tem o sentido de vencer o/a outro/a, derrotá-lo/a, fenômeno no qual o/a melhor se estabelece em sua “glória” e “apogeu” e, do/a segundo/a colocado/a em diante, resta o banimento para as periferias da existência.

Contudo, recusando esse modus vivendi competitivo, podemos, mesmo num simples gesto avaliativo, redirecionarmos, revolucionariamente, o sentido de “convencer”, na perspectiva de vencer com o/a outro/a, recuperando, por dentro desse singelo ato educativo que é a avaliação educacional, o gesto político da solidariedade que nos aproxima humildemente uns/umas dos/as outros/as, no reconhecimento de nossa condição de classe, de raça, de gênero e de cultura, afinal, somos pobres, somos negros, indígenas e mestiços, somos aqueles/as que sofrem as consequências perniciosas desse modo de organização e estruturação econômica e social pelos poderes dominantes. E o principal: não podemos nos esquecer disso quando ocupamos a condição de sujeitos institucionais mediados pela escola ou pela universidade. Sendo professores/as e estudantes não podemos nos esquecer de que somos pobres, não podemos esquecer de que somos negros, mestiços e indígenas; não podemos apagar da memória o que a história nos engendrou a partir de nossas lutas, sacrifícios e conquistas em nome da recuperação da humanidade usurpada por transações escusas e violentas das classes dominantes de nosso país.

Através da avaliação educacional podemos combater toda fonte de desigualdade que persiste, também, através de seus efeitos ideológicos nocivos para nós, das classes populares. Não há, desse modo, nem o/a “estudante-dez”, nem o/a “estudante-zero”, nem uma hierarquia que se formaria nesse entremeio, partindo dos/as “mais inteligentes” aos/às “menos inteligentes” identificados/as por uma nota, ou por um conjunto de notas apenas. Há, como diria Shulman (1986, p.4-14)[1], sujeitos aprendentes, aqueles/as que aprendem como autores/as de sua própria aprendizagem, em um trabalho coletivo e participado. Esses/as aprendentes, incluindo-se os/as professores/as, formam, assim, uma comunidade no qual o conhecimento é compartilhado entre si e com outras pessoas, grupos, comunidades e instituições, ampliando a cognição, desenvolvendo raciocínios em múltiplas direções, nas quais os conhecimentos, saberes e ignorâncias, através de raciocínios reconhecidos e legitimados pela comunidade de aprendentes que produz identidades unidas por laços históricos, propiciam o desenvolvimento de inteligências singulares cujas curiosidades vão se epistemologizando progressivamente no processo educativo. 

A avaliação é, portanto, um processo que compõe a aula e que tem sérios desdobramentos políticos e ideológicos, que, por sua vez, podem reforçar um modo de pensar baseado em princípios capitalistas excludentes, ou, por outro lado, pode ser um gesto pedagógico explícito de solidariedade, colaboração e humildade, que cause a ruptura com velhas formas de classificação, selecionamento e hierarquização de estudantes e professores/as em processo de formação humana e profissional.

Joselito da Nair, do Zé, de Ana Lúcia, da Professora Stela Rodrigues, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel.    




[1] SHULMAN. Those Who understand: knowledge, growth in teaching. In Educational Reserch. V. 15, nº 2, 1986. 
Traduzindo de modo livre: Aqueles que entendem: conhecimento, crescimento no ensino. In Pesquisa Educacional

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Levitação Feminina

Elas flutuam como se levitassem; 
elas correm como se voassem; 
elas lutam como se amassem.

Não, não. Errei.
Elas levitam como se lutassem;
elas amam como se voassem;
elas correm como se flutuassem.

Huum. Não, ainda não.
Elas lutam como se flutuassem;
elas correm como se levitassem;
elas amam como se lutassem.

Não, não.
Elas correm como se flutuassem;
elas voam como se lutassem;
elas levitam como se amassem.

Não. Pera aê [...]
Joselito da Nair, da Itajacira, da Ana, das colegas da Uneb, das colegas de corrida e das mulheres empoderadas dessa vida

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

ESVAZIAMENTO

Abro meus olhos
e não entendo nada do que vejo
Não adianta olhar demoradamente,
Não disponho de ferramentas de compreensão.

Angústia de ignorância,
não saber o que acontece,
meu ser padece
meu ser adoece.

A roda girou a minha direção.
Eu ia naquela,
agora tô na banguela,
lá pro fundo
onde antes era ascensão.

Olho as pessoas, os raros amigos, os colegas, os estudantes,
a família, as que passam transeuntes.
Não consigo entender,
não sei mais por onde começar
a encontrá-las.

As informações multiplicaram
As imagens, as mensagens, os caminhos.
E eu aqui, paralisado na angústia
sem seguir, inseguro, indo a ir
sem destino, nem futuro.
tantas palavras
sem nada,
sem nada.

Todos estão passando, passeando transeuntes,
todas as pessoas parecem ausentes do mundo.
Parecem fugindo da guerra futura,
parece uma grande loucura migrante
fugindo de um medo mais cedo.

Estamos fugindo da Síria,
da bomba, do tráfico,
marítimo, de órgãos, de armas,
de mulheres, de peles, de dólares.
Estamos fugindo da bancada,
da bala,
do boi,
da bíblia.
Fugindo pra onde?
Aonde é que se esconde?
Nem dentro de mim há refúgio,
minha paz, meu rapaz, lá se foi
nunca mais.

Na igreja?
Não há!
No trabalho?
Nem pensar.
No lar?
Quem sabe um instante.
No sindicato?
Nem que se concorde
com tudo,
nem que entre e saia mudo,
unindo-se à voz única
uníssono, alienado, sem culpa.

Joselito M. de Jesus, professor, poeta, perdido. 

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

A MAIORIA AUSENTE

Se alguém perguntasse sobre o poder de decisão que têm aqueles e aquelas que faltam às assembleias do nosso sindicato docente, a ADUNEB, alguns/as responderão apressadamente: nenhum. A ausência é o gesto político claro do abandono de sua capacidade de decisão e, assim, o ausente, ou melhor, os ausentes, abrem mão de seu poder e acatam, aceitando ou não, as decisões tomadas pelos presentes, decisões que afetarão a todos/as. Os ausentes seriam, nesse modo de ver, um sujeito político frágil, menor, mais propício a ser atingido ideologicamente pelas tramas simbólicas do poder hegemônico. Essa é a lógica formal sustentada pelos nossos princípios rarefeitos de justiça, de solidariedade e de participação política.
Entretanto, parece-me que, nesse contexto político, econômico, social e ideológico no qual nos encontramos, a maioria ausente está definindo os rumos de nossa luta política, tanto no âmbito sindical, quanto no âmbito dos rumos da gestão institucional de nossa Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e demais universidades estaduais baianas (Uebas) e também de nossa prática pedagógica, geralmente solitária e pouco compartilhada. O esvaziamento identificado em nossas assembleias e em nossos demais atos políticos, reduzindo consideravelmente o seu alcance como fato social relevante, minando nossas forças, abalando nosso núcleo subjetivo profissional e configurando nossas práticas discursivas que produzem seus efeitos políticos e ideológicos, revela que a maioria ausente faz falta. E muita! Faz tanta falta que esta ausência se torna para efeito de nossa ação política, mais presente que a presença de uma minoria que se esforça para supri-la, debatendo-se à beira do afogamento político, nessa maré ultra conservadora que a história está produzindo e que afeta a todos nós, professores, estudantes e funcionários, presentes e ausentes.
Orlandi (2002, 2007) nos faz pensar que no silêncio estão contidos todos os sentidos e que a palavra é uma forma de administração e controle dos sentidos, tentando, inutilmente, “evitar a fuga dos sentidos” para outro sítio semântico desfavorável ao sujeito enunciador e, consequentemente, à formação ideológica que ele compõe, mesmo quando não sabe disso. O locutor tenta, através do seu processo enunciativo, impedir que o sentido outro produza efeitos que desloquem o discurso para o campo semântico contrário ao seu interesse. Nesse sentido, ele fala para silenciar, não para explicar, pois o discurso é aquilo pelo qual se luta, um campo de batalha, do qual nos falava Foucault (1999) em sua “ordem do discurso”. Enuncia-se, assim, para não deixar que o discurso outro apareça na arena discursiva, para que não mude a direção do ato político através de formações ideológicas outras que manifestem na sua presença, a presença de atores constituídos historicamente que também lutam pelos discursos que tecem em suas práticas.
Nesse sentido, a maioria ausente tem uma presença importante em nossas arenas discursivas, em nosso contexto social imediato no qual a história se desenrola. E o seu silêncio fala. Múltiplos sentidos podem, assim, ser interpretados nessa minha prática discursiva que deseja administrar o sentido na direção do efeito de um maior envolvimento e uma participação ativa dessa maioria de colegas professores/as, estudantes e funcionários/as, deslocando sua ausência perturbadora para uma presença fortalecida pelo pertencimento solidário a uma classe profissional que enfrenta com convicção as ameaças do conservadorismo arcaico que nos desafia à luta. Precisamos entender esse sujeito fugidio que constitui a maioria ausente a fim de encontrá-lo na interlocução constituinte entre eu e o outro na construção dessa ponte necessária para o fortalecimento do sujeito sindical que representa e reapresenta a todas e a todos. E há uma, além de tantas outras, forma de entendê-lo: envidar esforços para trazê-lo à arena discursiva na qual o mesmo se posicione na interlocução necessária.
A maioria ausente talvez esteja nos falando numa formação imaginária na qual o sindicato ainda pratique discursos cujos sentidos estejam tão esvaziados que não mais afetam suas esperanças, desejos, necessidades e interesses, culminando na imobilização confortável dessa maioria, diante dos desafios que temos em nossa situação social e política imediata e em nosso contexto histórico amplo, no qual o conservadorismo arcaico pretende colocar num canto esquecido da história sujeitos que mal apareceram no cenário social, político, cultural e econômico contemporâneo, a maioria das classes populares e dos movimentos sociais organizados. Um colega, em tom irônico bem humorado, comentou comigo, em voz baixa, que quando ele vem a uma assembleia sindical parece não ter saído do século XIX. Parece que todos/as que ocupam a tribuna têm de falar os mesmos e tão moribundos enunciados, num “avante companheiros/as”, "camaradas" ou outro sujeito do gênero, para interlocutores ausentes que não são companheiros/as, muito menos "camaradas", que não sabem para onde avançar, nem se sentem tocados para posicionarem-se do “lado dos bons” e rumo à luta pela sua dignidade profissional docente.
Convivemos numa universidade na qual os/as professores/as da pós-graduação parecem não se envolver com o destino político, ideológico e econômico da instituição. Parece-me que eles e elas são “superiores” aos demais colegas, tendo a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) como mediadora e condutora principal de seus interesses e necessidades imediatas. Com raras exceções, esse sujeito institucional que vai se constituindo historicamente num processo de apartheid dos demais membros de sua categoria profissional, disputando, na vaidade de sua produções anuais, o ápice do status quo reservado aos eleitos pela academia. Mesmo reconhecendo a importância do 2.° doutorado para o reconhecimento da Uneb pelo Ministério da Educação (MEC) e do importante trabalho intelectual produzido no âmbito dos mestrados e doutorado já existente, meu questionamento não é do doutorado nem dos mestrados, mas do modo como ele reproduz a hierarquia social sem fazer-se a autocrítica necessária.  
A maioria ausente talvez seja sempre assim, ausente, embora nunca tenha sido percebida sua ação inconteste e perniciosa na falta de ação que a caracteriza, sinalizando para nossos algozes interlocutores, o quanto a vontade geral de uma classe profissional não está nem aí para políticas públicas que vão prejudicar milhares de trabalhadores, mulheres, homens e crianças, atirando-as de volta para o passado sombrio de uma nação colonizada pelo privilégio, pela concentração estúpida de renda, pelos preconceitos de classe, de gênero, de raça, de região, de religião, de pele. Em nossa manifestação em frente à Assembleia Legislativa da Bahia (ALBA), o governo viu o reduzido número de professores/as, estudantes e funcionários/as, que não deu nem para fazer a passeata até a frente da Secretaria Estadual de Educação (SEC), dispersando-se dali mesmo, rumo ao cansativo retorno da reconstrução do movimento, este também cansado. A maioria expressou-se em sua produtiva ausência no vácuo daquela presença pequena e aguerrida, mas insuficiente para que seu discurso tivesse eco nas estruturas de poder do estado, porque a ausência enunciou, numa retórica clara, o sentido de sua falta, produzindo efeitos danosos para a luta sindical neste momento tão difícil de nosso país.     

Joselito M. de Jesus, professor sem doutorado, mas acima de tudo, professor. Com o auxílio de:
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1999.
ORLANDI, Eni, P. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 5. ed., Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2002.

________. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. 5. ed., Campinas, SP: Pontes Editores, 2007. 

terça-feira, 25 de outubro de 2016

MUNDO SEM SENTIDO


Estou em um momento em que procuro sentidos para a vida. Há uma tristeza enorme manifestando o mundo que percebo. Sinto uma perdição geral. Sinto um desabamento humano produzindo unidades de consumo, prazer, futilidade e delírio tão vazias de sentido que somente o desencanto vai expressando minha desesperança crescente. Há muitas mortes. Assassinatos, crueldades, cinismos, negligências. Mas a morte não me parece tão ruim. A morte e a vida estão de mãos dadas num abraço sem fim. A morte somente acabará quando a vida atingir um fim, porque essa morte sempre tem o seu intérprete. A pior morte de todas é aquela para a qual não há quem a lamente. É a morte da morte. A morte da humanidade. A morte tornou-se banal, e o pior, está sendo cultivada dentro de nós quando o tecido da humanidade se rompe, provocando um rasgo tão grande que talvez seja difícil costurá-lo novamente.


Talvez estejamos cultivando um sentimento nazista em nosso comportamento que não mais se indigna com a injustiça, com tantos assassinatos e mortes prematuras. As pessoas sofrem e caem ao nosso lado, mas não mais nos envolvemos. Criamos uma carapaça em torno dos nossos sentimentos na tentativa de nos proteger, de nos salvar da insanidade geral que toma conta de nosso cotidiano, mas, ao fazermos isso, participamos desse ato geral de indiferença que fulmina a humanidade que talvez ainda nos reste, asfixiados na câmara de gás criada por nós mesmos diante do mal que se avizinha. Estamos todos perdidos: povo, cientistas, comunicadores, religiosos, médicos, policiais, enfermeiros, auxiliares, juízes, professores, etc. Cada qual procura sobreviver nos estacionamentos, nas ruas, no lar, nas instituições de trabalho. Mas talvez estejamos sentindo que a humanidade que ainda nos resta está se perdendo cada vez mais abismo adentro do mundo que estamos criando em nosso processo destrutivo.


Sinto-me tomado por profunda tristeza. Sinto-me cada vez mais impotente. Percebo cada vez mais que o cinismo tomou o lugar da honra, que a mentira prevalece, que a justiça está tomada pelos/as indecentes, que os canalhas estão nos roubando até Deus e seu profundo sentido ontológico, transformando-o numa mercadoria fácil que se pode comprar e vender nas prateleiras de igrejas-mercado. A insatisfação está sendo silenciada pelos ruídos ensurdecedores das promoções, das propagandas, filmes e novelas. O campo da política foi tomado de assalto pelos marginais que nos governam desde que os portugueses começaram a levar nosso ouro para lá. E é justamente nesse campo que uma das maiores batalhas está sendo travada. Esse campo cerrado pelo financiamento criminoso, criando um círculo vicioso que se retroalimenta por um povo ainda frágil, pequeno e mesquinho, que ainda admira o herói, ou mesmo o anti-herói, pré-fabricado pela mídia, renovando o seu poder num congresso cheio de ladrões que levam nosso ouro para lá, as contas fantasmas que alimentam dondocas de olhos esbugalhados no dinheiro surrupiado de nossa nação.



Minha esperança está tão frágil num momento em que precisava estar tão fortalecida. Há uma guerra dentro de mim mesmo. Há explosões, conflitos, bombardeios, trincheiras e mortes. Existiam sujeitos que foram morrendo em meu ser. Sujeitos que, ao morrerem, tiveram de enterrar também as ligações que ainda existiam com certas pessoas, porque a confiança foi se perdendo devido à identificação de suas hipocrisias e cegueiras, e deixamos de partilhar os fios tênues que a história nos concedeu em outro momento da minha vida. Na rigidez fria de suas mortes as pronúncias desses sujeitos, que em mim se extinguiram, foram para o túmulo de um silêncio fúnebre que rejeitam até a cruz, porque não mais sonham com a promessa da ressurreição num mundo que desabou. Aonde renascerei?



Se no mundo não há sinais, olho para o céu, à procura de esperança, como um navegador num oceano imenso no meio da noite. As estrelas tão distantes, brilham indiferentes para um planeta azul que é belo e pacífico para acolher a vida em sua exuberância, mas, cujo mundo criado pelo ser humano se tornou num dos lugares mais agressivos e mortais do universo por causa da gente, os seres desumanos.



Joselito desse mundo.   

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

O BICO DA ÁGUIA E O ENCURTAMENTO DA HUMANIDADE BRASILEIRA

Dos animais nada espero além da sua própria animalidade inscrita no âmbito natural. Os animais não são seres políticos e nem éticos e, por isso mesmo, seria grande debilidade mental levar um leão aos tribunais por ter devorado um gnu. Não pode ser classificado como homicídio, porque é da ordem natural da relação presa-predador inscrita na natureza, bem como não se julga a morte de milhões de galinhas, porcos, peixes e bois para alimentação humana. As ordens jurídica e política são da ordem do humano, porque somente os seres humanos, reza a lenda, têm capacidade de decisão, de opção, de escolha e, portanto, somente a eles pode ser imputado a responsabilidade por essa condição.

O único animal que fala é o ser humano, o ser de linguagem. E aí está a sua maior força e a sua maior fraqueza. A linguagem lhe permite simbolizar o mundo, construindo-o permanentemente, nomeando-o e constituindo-se a si próprio. Contudo, a linguagem também lhe cobra um preço pela sua ousadia em ter começado a falar, a decidir e a escolher.
Uso uma expressão trazida por Lacan de que, quando somos colocados na linguagem, pagamos isso como se fosse o pecado original. E carregamos tendo que suportar um pecado que não tem deus que tire. (SOUZA, 2016, p. A6)
Tal como Prometeu, punido por revelar o segredo do fogo aos mortais, com uma águia lhe comendo o fígado todos os dias, assim também o ser humano é punido constantemente pela sua consciência amarrada inevitavelmente à ética, ou não?
Quer dizer, mais que um ser no mundo, o ser humano se tornou uma Presença no mundo, com o mundo e com os outros. Presença que, reconhecendo a outra presença como um “não-eu” se reconhece como “si própria”. Presença que se pensa a si mesma, que se sabe presença, que intervém, que transforma, que fala do que faz mas também do que sonha, que constata, compara, avalia, valora, que decide, que rompe. E é no domínio da decisão, da avaliação, da liberdade, da ruptura, da opção, que se instaura a necessidade da ética e se impõe a responsabilidade. A ética se torna inevitável e sua transgressão possível é um desvalor, jamais uma virtude. (FREIRE, 2002, p.20)
O nosso grande problema de cada dia no Brasil de hoje e de desde sua invasão pelos portugueses, é quando a transgressão da ética não mais provoca reflexão, nem mais produz o sentimento de culpa nem de vergonha nos seres de mau caráter, mas revela um cinismo descarado que enoja os que ainda acreditam e defendam a ética como reguladora dos nossos atos. A “águia” não come mais o “fígado” daqueles/as que roubam, dos/as ardilosos/as que enganam utilizando o nome de Deus para enriquecimento, daqueles/as que matam, daqueles/as que mentem, daqueles que causam sofrimento aos outros.

Mas, acredito eu, um problema maior ainda é quando a maioria se cala diante de tanto cinismo, de tanta usurpação, de tanta impunidade. A ordem jurídica não mais consegue pronunciar sua justiça, ao contrário, ela foi montada para beneficiar os ladrões, os assassinos, corruptos, os estelionatários, os negociantes da morte, entre outros. A ordem política brasileira é visivelmente a expressão institucional dessa situação. Ela própria é erguida sobre o financiamento criminoso de campanhas eleitorais; Essa ordem política é também a expressão da representação manipulada dos grandes empresários e investidores brasileiros e mundiais que aqui garantem a reprodução da miséria geral em função de mesquinhas farturas particulares. Mas, quando a maioria se cala, há um consentimento social da malandragem que impede a águia de bicar o fígado geral de nossa nação. A racionalidade humana carrega a possibilidade de transgressão da ética, carrega uma maldade intencional buscando a concentração de poder e renda, destrói a vida dos seus semelhantes em função do seu desejo mesquinho de ser “o dono do pedaço” não se contentando apenas com o seu pedaço, retira o pedacinho do outro, produzindo uma falsa fartura, a que foi produzida pela penúria do próximo, não pela honestidade de seu trabalho.

Do mesmo modo, somos impedidos, por truculentos e astutos silenciamentos, de falar. Um desses silenciamentos começa na redução de nossa capacidade de compreensão, de avaliação, de escolha, enfim, de opção. Com uma educação sofrível as pessoas vão tendo um “encurtamento simbólico” (SOUZA, 2016) e, portanto, a redução de sua capacidade de fala. A criticidade vai cedendo lugar para a aceitação e legitimação passiva de sua condição de roubado, de explorado, de assaltado por um sistema político e jurídico que o reduz à humanidade precária, ou, em casos piores, à desumanização degradante. Eu soube pela diarista que trabalha aqui em casa, Indaiá, que um candidato a reeleição para prefeito de Salvador, era aguardado pela população local como um deus. Ela revelou com espanto que muitos corriam para tocá-lo, para fazer selfie, para abraçá-lo. Fruto desse encurtamento simbólico, muitos seres humanos vão perdendo sua humanidade, sua capacidade de opção, de reflexão e, como desdobramento disso, erguendo ídolos, produzindo mitos e recriando condições para perpetuação de um mundo cheio de seres cuja humanidade vai sendo encurtada desde o seu nascimento.   

E vivemos a era onde os desvalores campeiam. Estamos em ano de eleições para prefeituras e vereadores no Brasil e, nesse momento de minha fala, muitas falas iguais estão sendo pronunciadas ao vento. Dizem elas que os políticos fizeram muito e ainda vão fazer muito mais. Dizem que eles e elas, candidatos atuais, são as melhores pessoas do mundo, os bons maridos e esposas, os bons filhos e filhas, os bons pais e mães, os bons amigos e as boas amigas, principalmente dos/as amigos/as mais pobres e simples. O encurtamento simbólico aceita essa mentira midiática geral. Mas "o louvor não é belo na boca do pecador.” (Eclesiástico, 15,9). Um modo bastante legal de reduzir o encurtamento simbólico sem precisar frequentar uma escola falida é inserir-se no movimento social, é participar de grupos de pessoas que pronunciam o mundo, que partilham significados e constroem sentidos outros sobre esta coisa desordenada que é nosso mundo contemporâneo.
De maneira completamente diferente será experimentada a fome pelos membros de uma coletividade unida por vínculos materiais objetivos (batalhão de soldados, operários reunidos no interior da usina, trabalhadores numa grande propriedade agrícola de tipo capitalista, enfim toda uma classe social desde que nela tenha amadurecido a noção de “classe para si"). Nesse caso, dominarão na atividade mental as tonalidades do protesto ativo e seguro de si mesmo; é aí que se encontra o terreno mais favorável para um desenvolvimento nítido e ideologicamente bem formado de atividade mental. (BAKHTIN, 2002, p. 116)
A nossa inserção em grupos e movimentos que amadurecem noções fundamentais de nossa especificidade no mundo, movimentos negros, movimentos feministas, movimentos gays, associações de moradores, sindicatos, associação de pais e mestres, pastorais sociais das igrejas, grupos religiosos que refletem eticamente sua religiosidade no mundo, entre tantos outros, são espaços em que o simbólico amplia suas possibilidades interpretativas, tendo reflexos importantes na criticidade da humanidade construída em seus espaços e, reduzindo assim, os efeitos nocivos do encurtamento simbólico, do empobrecimento e da proibição da fala, melhorando nossa capacidade de opção política, de decisão eleitoral, de escolha do nosso destino comum. Quem sabe não seremos as águias comendo o figado dos nossos representantes políticos?  

Joselito do Zé, da Nair, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes falando e de Jesus, o Emanuel.

Com o auxílio de:

BAKHTIN, M. (VOLOCHINOV). Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. M. Lahud, Y. F. Vieira. 9. ed. São Paulo: Hucitec/Annablume, 2002.

BÍBLIA SAGRADA. Eclesiástico 15, 9.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 24. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002

SOUZA, Aurélio. A psicanálise convida o suicida a falar. Biaggio Talento. Jornal A Tarde. Salvador, p. A6 11 set. 2016.