segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

FILOSOFIA ESSENCIALISTA x FILOSOFIA PÓS-CRÍTICA: AMOR, MACHISMO E FEMINICÍDIO

Como você pode controlar os sentimentos de outra pessoa? Como garantir que o amor seja para toda a vida? Como impedir que o amor não se transforme, depois que ele está transformado? Como manter o amor numa forma ideal sem apelar para seu encarceramento? Que possibilidades a Filosofia oferece para orientar nossos comportamentos e atitudes diante das relações amorosas? São questões que se colocam em nossa contemporaneidade, principalmente num contexto no qual o feminicídio se torna ainda mais cruel. 

A filosofia essencialista tem início quando um sujeito chamado Parmênides, da cidade grega de Eléia, afirmou que o que é é, e não pode deixar de ser. Para ele, toda mudança era aparente. Dessa perspectiva, para a filosofia essencialista o que existe é assim mesmo e assim sempre será. A terra, a água, o ar, o fogo... No ser humano gera a “síndrome de Gabriela” que nasceu assim, cresceu assim e será sempre assim. Meu pai incorporou tal noção filosófica em sua crença pessoal. Ele dizia para minha mãe com ares de orgulho: “- Eu nasci assim e vou morrer assim Naia [termo carinhoso de Nair].” Dava para perceber que entre os seus valores ele cultivava a pertinência do macho que não se dobrava às exigências do seu tempo, permanecendo ele mesmo, talvez diante das mudanças, que considerava degradação social.

As relações amorosas abordadas pela filosofia essencialista causam alguns problemas sérios, levando a alimentar a masculinidade tóxica e justificar a violência contra a mulher e, em casos mais extremos, o feminicídio, como os recentes casos no Brasil neste final de 2020.

Nas relações amorosas, se eu acredito numa visão essencialista de amor, desenvolverei uma visão muito romantizada e pouco crítica de uma relação que envolve duas pessoas diferentes. Muitas vezes bem diferentes! Mas, como eu acredito que a pessoa amada é a metade perfeita para a minha metade perfeita, formando uma perfeição ainda mais-que-perfeita, eu me apaixono movido por essa ideia e idealizo a pessoa amada, conservando-a em sua “perfeição” nessa abstração que, ao lado do encanto de imagens projetadas de amor, também cria as possibilidades reais de seu antagonismo: desencanto e terror.

Ao lado do prazer de amar e ser amado, tem o medo terrível de perder seu “objeto de amor”. E esse medo vai gerando desconfiança. No mundo digital o celular é o portal por onde Ricardos, recados, mensagens, imagens se multiplicam, multiplicando as probabilidades de que haja alguém mais interessante, alguém que nunca reconheceremos ter algo a mais porque, simplesmente, esse algo a mais pode nos fazer de menos, levando embora aquela a quem amamos, o nosso “único e verdadeiro” amor . Talvez por isso, atualmente o celular seja como uma chave para abrir a porta das violências que vão se caracterizando como a invasão de privacidade, procurando saber o que ela curtiu, o que ela prestou atenção, com quem ela mais interagiu enfim, procuramos identificar o “ladrão” que penetrou as fronteiras proibidas de nosso “relacionamento perfeito”.

E por aí a desconfiança escancara suas portas virtuais que terminam penetrando em nossas atitudes cotidianas. Quando a mulher percebe que não tem mais jeito e o encanto se tornou opressão, decide sair daquela relação cada vez mais doentia. E, de um extremo de “perfeição” a outro, as ameaças vão surgindo, a violência crescente se torna a forma de expressão macabra que culmina em 16 facadas na frente das próprias filhas, ou em vários tiros na frente da própria família. Muitos finais infelizes, cheios de terror e de dor em muitas relações amorosas por esse Brasil cujo presidente cultiva uma masculinidade tóxica, reforçando ainda mais esse terror que ocorre em muitos lares, agora destruídos completamente.

Uma filosofia essencialista justifica a violência na medida em que conserva a pessoa, impedindo-a de mudar, de melhorar, de crescer, de evoluir e de realizar as potencialidades do seu ser na maior plenitude possível. É uma armadilha terrível: se a mulher muda, ela enganou ao homem e à sua família o tempo todo. Ela é o que é agora. Pensam eles e elas. Fingia ser o que não era para obter vantagens com o casamento. Mas depois que se viu empoderada, deu um belo pontapé na bunda do “pobre marido”, tirando a máscara quando lhe pareceu conveniente. Para sobreviver, algumas mulheres fingem não mudar. Mas carregam um peso enorme de manter uma aparência que não mais corresponde à transformação pela qual passou. É possível? Outras mulheres, as mais velhas, saem dessas armadilhas tardiamente, quando morrem aqueles que cultivavam sua masculinidade com um orgulho superior.

Ao contrário, numa filosofia pós-crítica, o sujeito não pode ser conservado numa redoma do pensamento, porque esse sujeito assume diferentes posições em diferentes momentos, lugares e circunstâncias. Eles e elas não podem ser pré-definidos nem essencializados/as pois jamais permanecem os mesmos e as mesmas, mas constituídos em suas existências de modo permanente que vão assumindo esta ou aquela posição em função das suas filiações, interesses, compromissos sociais, valores, envolvimentos sociais, culturais e econômicos.

Assim, não se pode projetar um relacionamento como algo eterno, nem a mulher como uma boneca de louça a serviço de nossos prazeres e crenças masculinas. A mulher beija, despe ou envergonha com um olhar; abraça com um sorriso; exclama com seu silêncio. Ela as vezes é de Ogum, outras de Oxalá; outrora é de Jesus, as vezes ela é do bar. Ela pode ser uma professora , outras vezes executiva, algumas vezes pode ser santa, outras, muito atrevida. Ela assume posições que eram exclusivas do homem numa sociedade machista, e é preciso muita coragem para enfrentar toda uma prática discursiva que constitui um campo de força a lhe imprensar numa parede criada para fechá-la num espaço carcerário. E é também preciso ser muito homem para aprender a namorar uma mulher que é toda mulher. É preciso ter coragem para abraça-la e com ela apreender o admirável mundo novo, enfrentando seu velho mundo que agoniza em si mesmo. É preciso amar não um objeto, mas outra pessoa, com seus gostos, seus jeitos, suas formas, suas interações e conexões, que requerem diferentes atitudes e gestos, revelando a beleza de sua complexidade feminina.

Como ela não é uma essência, escapa com os sentidos que ela mesma cria com coragem. E isso incomoda muitos homens e até algumas mulheres, que se veem ameaçadas por aquela que se mostra com toda a liberdade possível de seu ser! Como algumas delas resistem à "metamorfose ambulante" [Raul Seixas] ou mesmo não conseguem alcançar aquelas novas mulheres, elas retornam para suas "velhas opiniões formadas sobre tudo". Algumas delas ainda justificam a violência machista que intoxica a família inteira em seus dispositivos de opressão e de subjetivação, vestindo-as e despindo-as num mesmo estupro porta adentro e porta afora.

Portanto, a posição filosófica pós-crítica é muito importante para que novas práticas educativas reconheçam e operem com as possibilidades de ser de todas as pessoas, principalmente as mulheres, senhoras de si, não conservando-as em formas antigas, mas admirando-as no uso de seus instrumentos e recursos com os quais identificam dispositivos de poder nos discursos e ações a fim de questioná-los, colocá-los em xeque, seguindo o movimento fatal da rainha, que não se limita a “quadrados perfeitos” num xadrez construído pela masculinidade tóxica.


Joselito Manoel de Jesus, Da Nair e de todas as mulheres que sofreram e sofrem violências masculinas no silêncio conveniente da “sagrada família”.


terça-feira, 22 de dezembro de 2020

JUSTIÇA BAIANA: FAROESTE NO OESTE

Como confiar no combate ao crime se o dinheiro do crime compra juízes, desembargadores, advogados, policiais e outros mais? Refiro-me aos últimos fatos revelados pelo Ministério Público Federal (MPF) na denominada “Operação Faroeste”. Nesta, uma desembargadora, Maria do Socorro Barreto Santiago – presa desde novembro do ano passado – e a sua filha, Amanda Santiago; o juiz, Sérgio Humberto de Quadros Sampaio, Márcio Duarte Miranda e os advogados Ricardo Augusto Três e Valdete Stresser são acusados de atuar num esquema criminoso para atender interesse de uma imobiliária envolvendo terras no oeste baiano, recebendo um valor mínimo de 1 milhão, 136 mil, 889 reais e 90 centavos como pagamento pelos serviços sujos prestados. 

A desembargadora recebeu R$ 400.000 e o juiz R$ 606.000. Além dela, a desembargadora Lígia Ramos Cunha, que recebeu R$ 950.000 foi transferida para um presídio no Distrito Federal na segunda-feira, 21/12/2020. Além dela, a também desembargadora Ilona Reis também teve prisão preventiva decretada e está presa na Papuda. 

De acordo com o pedido do MPF, que foi enviado na sexta-feira (18), as desembargadoras criaram organizações criminosas especializadas em vendas de decisões e lavagem de dinheiro, com atuação nos conflitos de terras do oeste baiano e outras regiões. As magistradas contavam com a ajuda de advogados. (https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2020/12/21/desembargadora-presa-na-operacao-faroeste-por-suspeita-venda-de-sentencas-e-transferida-para-df.ghtml) 

Na prática, essas pessoas não precisam de dinheiro, já que ganham mais que o suficiente para terem uma vida confortável ao longo de suas existências profissionais, contando com os auxílios moradia entre outros “auxílios”. Mas elas querem arreganhar. E arreganham! Arreganham a justiça baiana, o Estado da Bahia e a república brasileira inteira com sua ganância desmedida que apelam para o dinheiro sujo que o crime produz. Arreganham, sobretudo, nossa confiança no poder jurídico desse país, cujos “bandidos de toga” agem à margem do controle público. Daí vem a importância dos Ministérios Públicos, também eles com seus comprometimentos, mas, sobretudo, com seus/suas interlocutores/as atuando pelo restabelecimento da justiça. O Tribunal de Justiça da Bahia se encontra em xeque. O Secretário de Segurança Pública foi afastado e uma delegada também. 

Nós, os simples mortais, que alimentamos com nossos impostos todos os privilégios dessa gente, vivemos no limite da sobrevivência, mas observamos um Estado em frangalhos, com um sistema jurídico comprometido, no qual reina o silêncio conivente de muitos/as outros/as que é muito mais revelador do que ocorre nos bastidores da justiça baiana. Que confiança podemos ter nas sentenças que são dadas por desembargadores/as e juízes/as em nosso Estado agora? Quem julga o juiz? Serão aposentados/as recebendo seus salários integrais? O Tribunal de Justiça da Bahia tomará alguma posição? E por que o Secretário de Segurança Pública foi afastado? Tem ligação direta com tais crimes? São perguntas que ficam aí procurando respostas. Enquanto as respostas se escondem nos silêncios das autoridades, fugindo pelas portas laterais das estruturas montadas para servir aos faroestes e "farolestes" criados pela corrupção sem sentido.

Joselito M de Jesus, Professor.


https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2020/12/21/desembargadora-presa-na-operacao-faroeste-por-suspeita-venda-de-sentencas-e-transferida-para-df.ghtml.
MPF denuncia juiz, desembargadora e mais seis pessoas. Jornal A Tarde, p. A8; Salvador; terça-feira, 22/12/2020.