segunda-feira, 20 de abril de 2020

AS DESORDENS DO PROGRESSO BRASILEIRO


A 1.ª é a desordem da homogeneidade. Na ditadura o silenciamento emudece todas as vozes que não vêm ao encontro da “voz única” do general. Há indivíduos que ocupam o lugar de pastores, de padres, de empresários, de lideranças e que não admitem a voz dissonante. Suas autoridades são sustentadas pelo exercício da violência, na potência assassina da arma, no banimento daquele/a que discorda. A imaturidade psíquica dessas pessoas é evidente. Elas se acham únicas, mais especiais que todas as pessoas, fonte de sabedoria e poder. Elas se acham deuses/as, embora usem o nome de Deus para dizerem que servem a Ele. A diversidade é negada e perseguida em nome de uma homogeneidade homicida. Homossexuais, pretas e pretos, trabalhadores/as, travestis, pessoas com deficiência, intelectuais, pastores, padres e freiras críticos etc., são banidos/as ou assassinados/as.
A 2.ª desordem é a ordem do racismo de classe social. As classes altas e médias ressentem de compartilhar os espaços públicos com os pobres e pretos/as. E a explicação é muito clara: são herdeiros/as da escravidão. Um preto, uma preta alcançar uma posição de destaque é uma afronta à Casa Grande que agora se encastela em condomínios fechados. Odeiam quando alguém de uma classe social não privilegiada alcança postos de comando. "- Como ousa um 'inferior' ocupar um espaço reservado para nossos filhos e nossas filhas?" Perguntam eles e elas. "- Que ousadia vencer o racismo e o machismo estrutural que nós montamos ao longo da história no aparelho do Estado para afastar essa 'gentinha' de nosso convívio!" Insistem. Logo, utilizar o aparato militar do Estado para fazer o que eles e elas não têm coragem, eliminando os indesejáveis do convívio social, intitulados de "comunistas", é perfeito.
A 3ª desordem é a ordem do Estado como patrimônio particular de um grupo social. Bernardo Sorj já ensinava que não dá para compreender o capitalismo no Brasil sem considerar os efeitos do patrimonialismo em seu processo. O Estado sempre foi, ao longo da história, um patrimônio exclusivo das elites brasileiras. Nem sei se ainda tivemos, de fato, uma res pública neste país. Tanto é que o aparato militar do Estado brasileiro está a serviço das elites. As polícias matam milhares de jovens pretos ao ano, mais que o Corona Vírus. A última guerra que o Brasil participou foi no final da 2.ª Guerra. O primeiro grupo de militares só chegou à frente de combate em julho de 1944, atendendo interesses nortes americanos. De lá pra cá sustentamos esse aparato militar que está mais em guerra com seu próprio povo, servindo aos interesses das elites e servindo de ameaça constante à nossa própria soberania, quando entrega, de mão beijada, parte estratégica do nosso território ao inimigo norte americano. Se o fizesse com os chineses, ou qualquer outro país, eu diria o mesmo. Quem vai para as frentes de batalhas, claro, não são generais, mas soldados recrutados no seio da população, jovens despreparados para uma guerra perdida são os primeiros mortos. A ordem que as forças armadas mantêm é a ordem da dominação perversa das elites brasileiras, coronelistas, racistas, escravocratas, agora lideradas por um capitão sociopata, nada inteligente e que desmerece o pouco de brilho que ainda sustenta as forças armadas brasileiras. O Estado brasileiro tem dono. É dos militares, dos empresários e das elites do mercado financeiro. O povo é o mesmo escravo de sempre, cuja escravidão está institucionalizada na Reforma da Previdência, na Reforma Trabalhista e, em breve, na Reforma Administrativa do Estado.  
A 4.ª desordem é a ordem do privilégio da classe média. Antes, a classe média tinha acesso privilegiado aos cargos, aos postos no aparelho do Estado. Mas agora, com a ascensão educacional, econômica e social dos pobres, feitas pelos governos do PT que, mesmo com corrupção, confrontaram antigas ordens e afirmaram o povo brasileiro na cidadania impedida de alcançarem ao longo de nossa história, desde a colonização deste país. A classe média se viu ameaçada pelo avanço de pobres talentosos e focados em abandonar a pobreza, do ponto de vista econômico, sem esquecer quem são e de onde vieram. Então, a classe média, se vestiu de verde e amarelo, retomou para si um discursos vazio de uma ordem e um progresso construído sobre a exclusão do povo brasileiro e foi para as ruas clamar pela restauração dessa ordem perdida. Agora com o apelo à violência de Estado, sob a denominação de AI 5. Alguns/mas colegas e amigos/as dizem que a classe merda não tem ideia do que foi a ditadura. Eu discordo completamente. A classe merda sabe bem o que foi a ditadura! Por isso mesmo pedem a sua volta.
A 5.ª ordem é a dos religiosos que vendem a palavra de Deus nas bodegas que eles e elas chama de “igrejas”. Para lá se dirige uma população sofrida, com um nível de instrução e de educação formal precário, que não lhes permite a consciência crítica para perceberem o quanto são manipulados/as e explorados/as por esses mercadores da fé. Um bando de cínicos que exploram as fragilidades psíquicas das pessoas, advindas de seus sofrimentos cotidianos provocados pelas ordens desordeiras do Estado autoritário, racista, patrimonialista e preconceituoso, que os excluem de uma existência digna. Eu chamei de bodegas porque essas igrejas instaladas em muitos bairros pobres das cidades brasileiras, funcionam como bodegas mesmo. Vendem esperanças alucinógenas para serem consumidas por aqueles que embebidos dela, começam a falar suas verdades para o "mundo cruel".   
Na ditadura os perversos se tornam autores da agonia alheia. Os psicopatas que trabalham nas polícias e nas forças armadas assumem as funções de tortura como algo natural, pois que não sentem remorso. São demônios num inferno em vida que vai se tornando pior que a morte para os/as torturados/as e seus/suas familiares. Para esses que estão pedindo ditadura, deveria haver uma experiência bem próxima na carne deles, para sentirem no corpo o peso de suas palavras. Sabem do mais: pelo nível educacional dessa turma, creio que eles e elas ressentem de não passarem em concursos, de sua pouca inteligência, de sua reduzida capacidade de sentir o mundo. A crueldade é feita pelas mãos legitimadas de um militarismo brasileiro que trava uma guerra permanente contra seu próprio povo, enquanto a classe média e alta usufruem de uma civilidade que não possuem, pois conquistada com o apelo à ignorância, com o sangue dos inocentes, que nem armas têm, nem querem ter, para se defender. Eu, por exemplo, seria acusado de “traidor da pátria”, classificado como “comunista” e assassinado em alguma cela, pelas mãos de um torturador, que faria as maiores perversidades comigo para realizar o seu prazer psicopata e garantir o conforto e o privilégio das classes e grupos sociais que são donas do Estado brasileiro.

Joselito Manoel de Jesus. Professor

sábado, 11 de abril de 2020

ATIVIDADE MENTAL DO NÓS

O lugar mais seguro agora é nossa atividade mental. Mas essa atividade não é nossa, de cada indivíduo em particular em seu mundo privado. Nossa atividade mental não é uma atividade isolada em nosso cérebro privilegiado. Quanta falta faz a educação agora!!! Segundo Bakhtin toda elaboração interior de uma expressão verbal é organizada pela orientação social de quem se expressa. Por isso, nada do que digamos é uma criação única e primeira de uma individualidade primordial e absoluta, à frente ou acima do seu tempo. Somos todos paridos pelo mundo! E, por isso, é que somos humanos. E, por isso, é que somos históricos e sociais. Nascemos biologicamente do ventre de nossa mãe e nascemos socialmente e historicamente do ventre de nosso mundo.

Isso nos leva a saber que quanto mais interagimos, mais a gente renasce! Mais temos dúvidas, mais estranhamos o mundo e, por conta disso mesmo, mais o apreendemos. É um paradoxo maravilhoso! quanto mais renascemos, quanto mais ampliamos o nosso ventre-mundo, mais crescemos e adquirimos saber e sabedoria: sofia e episteme de mãos dadas!

Se nosso ventre-mundo é pequeno, ou seja, se a gente só interage nas margens de nossas crenças, de nossas bolhas, de nossas certezas absolutas, mais envelhecemos e ficamos pequenos e nossa atividade mental enferruja e desaba. Outro sintoma é afastar cada vez mais as pessoas de nossa presença, porque a gente começa a ficar intransigente, rabugento, sectário. Nos tornamos uma espécie de vírus. Porque estamos certos e fim! Alcançamos a verdade absoluta! E, sinceramente, não há mais nada a discutir. Somos deuses!

Se, ao contrário, no mundo da cibercultura, nós invadimos o ciberespaço na humilde procura de entendimento, e perguntamos, com mais dúvidas do que com certezas, provavelmente o universo em rede pode nos oferecer possibilidades de descobertas, não respostas prontas, mas possibilidades. Possibilidades criadas no debate aberto, sincero, de frente, num mundo ampliado no qual sua atividade mental, que é sempre, como diria Bakhtin, uma "atividade mental do nós", em contraposição a uma atividade mental do eu", amplia suas possibilidades de entendimentos, porque orientada socialmente.
Bakhtin (2002, p. 115) explica que:
A atividade mental do nós não é uma atividade de caráter primitivo, gregário: é uma atividade diferenciada. Melhor ainda, a diferenciação ideológica, o crescimento do grau de consciência são diretamente proporcionais à firmeza e à estabilidade da orientação social. Quanto mais forte, mais bem organizada e diferenciada for a coletividade no interior da qual o indivíduo se orienta, mais distinto e complexo será seu mundo interior.
É do envolvimento do indivíduo nas práticas sociais desenvolvidas por diferentes formas de coletividade organizada que a atividade mental deste indivíduo vai refinando e ampliando suas capacidades intelectuais, críticas e operativas. Sua percepção categorial, por exemplo, como uma das suas funções psicológicas superiores, amplia suas possibilidades de percepção, identificação e organização de problemas que afetam sua existência, que passariam despercebidos não fosse a sua participação nos grupos, comunidades e instituições que provocam e exigem o desenvolvimento da atividade mental do nós.

Nossa atividade mental do nós, que é sempre nossa e não minha, nem sua, nem dele, nem de outras pessoas, mas porque de outras pessoas também é nossa, deve procurar sempre dialogar, estabelecer interlocução, conversando com uma, conversando com outro. Tem um ditado que diz: “Quem anda com porcos, farelos come”. Quem fala com porco também. Por que? Porque quando nós falamos com alguém que pensa de certa forma, e se reduz a somente ouvi-lo e somente a dialogar com ele ou com um grupo que pensa e age do mesmo modo, certamente que os efeitos produzidos pelas conversas nos levarão a agir e a se comportar como aquelas pessoas, constituindo um fenômeno sociolinguístico que nos levará a comer farelos, como o alimento mais saboroso ou, ao menos, o mais nutritivo do universo contido em nossa bolha. Por isso, além de porcos, precisamos conversar com gatos e gatas, cachorros e cadelas, aves e peixes, ursos e leões, insetos, vírus e bactérias! Pois é na diversidade que fortalecemos nossa atividade mental, sempre aberta a ouvir os sinais, a interpretar os signos, a utilizar os ícones para nos apropriar de nossa cultura e comunicar/comungar nossas ideias com as ideias alheias. Pois, nos ensina Bakhtin (2002, p.115): “Quanto mais forte, mais bem organizada, e diferenciada for a coletividade no interior da qual o indivíduo se orienta, mais distinto e complexo será o seu mundo interior”. A forma que temos de fortalecer nossa atividade mental tornando-a cada vez mais sofisticada, é interagindo, participando de diferentes grupos e instituições, abrindo nossa mentalidade para uma dialogia permanente com diferentes interlocutores, fundando, enfim, novas gestações de nosso próprio ser no mundo, com o mundo, paridos por ele.

Portanto, se você apenas ouve os porcos, pensará apenas em chiqueiros e coisas que tais. Se você se comunica apenas com o leão, saberá apenas de savanas e do comportamento dos predadores alfas; se você interage tão somente com formigas, saberá das folhas e do trabalho na devida estação; se com cigarras, aprenderá a importância do sinal sonoro para sua existência; se com abelhas, a relevância dos odores para a sobrevivência e, assim, é preciso interagir com todos e todas, pois, desse modo, vamos tornando distinto e complexo o nosso mundo interior, ampliando nosso ventre-mundo e refinando nossa presença nele. Estourar as bolhas nas quais nós estamos, é uma atitude essencial para não nos alienarmos do mundo, para não nos tornamos amargos e agressivos, degradando nossas conquistas civilizatórias e mergulhando no obscurantismo que nos isola, nos ameaça a saúde mental. Precisamos, neste tempo de confinamento forçado pela pandemia do corona vírus, pronunciar o mundo juntos aos outros e às outras, numa dialogia elaborada na atividade mental do nós.

Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes que pronunciam o mundo comigo, e de Jesus, A Palavra pronunciada que gerou a Vida e o Mundo.

Com o auxílio de
BAKHTIN, M.; VOLOCHINOV. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 9.ed., São Paulo, SP: Editora Annablume, 2002.