sexta-feira, 22 de maio de 2015

MODELOS DE UNIVERSIDADE: A universidade como campo de treinamento para as profissões liberais

A universidade como modelo de campo de treinamento para as profissões liberais pressupõe que exista certo número de papéis ocupacionais definidos socialmente e que, para serem exercidos exigem educação superior e treinamento técnico especializado. Um profissional liberal é aquele que atua submetendo seu trabalho à avaliação de outros membros da profissão. Assim, o advogado e o médico funcionam em seu processo de profissionalização, através de um controle interno da categoria que lhe confere considerável status social.

Tais papéis ocupacionais são organizados como grupo auto-reguláveis e autocredenciáveis de homens e mulheres que possuem e exercitam uma habilidade especial ou um conjunto de conhecimentos técnicos. [...] Muito do alto status social das profissões na sociedade norte-americana advém dessa autonomia de credenciamento, pois ela é uma espécie de poder que confere dignidade a seus portadores. [...] O alto status (e os salários elevados correspondentes) das profissões liberais serve como um incentivo permanente para a profissionalização dos papéis ocupacionais mais diversos. (WOLFF, 1993, p.36)

Embora a universidade desse modelo de formação seja a instituição que forneça os elementos básicos para a formação do profissional liberal, ela não é, de modo algum, quem credencia o estudante de Direito ou de Medicina a exercer a profissão. No Brasil é a OAB e o Conselho Federal e os Regionais de Medicina – no caso da Bahia o CREMEB – respectivamente, que os credenciam e regulam a profissão através de normas e fiscalização, pelo menos no âmbito legal.

Uma questão de identidade profissional logo se impõe: até que ponto um professor de Direito ou um professor de Medicina é professor da universidade? Quando eles (as) mantêm seus consultórios e escritórios particulares que tempo lhes sobram para dedicar-se às atividades acadêmicas? 

De inúmeras maneiras, as atividade de professores e alunos das escolas profissionais vão além da universidade, e, assim, o espírito de corpo está inevitavelmente dividido. O corpo docente das escolas profissionais não pode comprometer-se com todas as suas energias incondicionalmente com a universidade, como os professores das Artes e das Ciências fazem regularmente. Não foi surpreendente, portanto, que, durante a crise na Universidade de Colúmbia, o corpo docente da graduação e membros do corpo docente da pós-graduação em Artes e Ciências tenham-se envolvido mais completamente no problema, enquanto membros dos corpos docentes das faculdades de Direito, de Medicina e de Administração o mais que fizeram, com raras exceções, foi assistir às várias reuniões gerais de todo o corpo docente, convocados pelo Reitor. (WOLFF, 1993, p.39)


Mesmo discordando da ideia do autor de que a universidade deve afastar o que ele denomina de escolas e programas profissionais do seu âmbito de formação, a citação acima parece bastante atual no que se refere à presença do professor da universidade na universidade. Neste momento em que uma greve se desenrola na Universidade do Estado da Bahia, Uneb, motivada principalmente pela garantia de um orçamento para que esta instituição de ensino superior funcione a contento, percebemos o pouco envolvimento da grande maioria dos colegas em torno de questões relevantes apresentadas por esta greve. E, nessa grande maioria, quanto professores de Direito, de Medicina, de Administração e de áreas de considerado status social e profissional consolidados, estão presentes ativamente nesta greve?   

Identidade profissional é uma identidade coletiva, tecida na rede de relações humanas por intensas mediações, através das quais há reorganizações de significados diante das influencias e tendências culturais e sociais enraizadas na sociedade contemporânea. (BRZEZINSKI, 2002, p.9) As identidades profissionais do advogado e do médico não são dadas pela universidade, mas por seus poderosos órgãos de controle interno da profissão, regulada por seus pares. Um (a) advogado (a) não surge, por exemplo, porque ele (a) adquiriu o diploma de bacharel em direito na universidade, mas porque passou no temido Exame da OAB. É o referido exame que regula o currículo da universidade. A universidade “deu certo”, pelo menos para essas profissões, porque os órgãos reguladores das mesmas aprovaram seus outrora estudantes de Direito e de Medicina que, enfim, podem exercer a profissão com dignidade,ou sem dignidade mesmo. A tal da autonomia didático-científica da universidade vai pras cucuias!

    
Diante do reconhecimento desta realidade, como um advogado pode vir a ser professor? A tendência é que a esfera de influência e atração do advogado atraia muito mais este último, corrompendo sua própria profissionalização? E o professor? Pode ser denominado de profissional liberal levando em consideração as condições da profissão acima colocadas? Em que medida um professor tem domínios técnicos e científicos específicos de seu papel ocupacional na sociedade que demandam uma formação rigorosa na universidade e exige um acompanhamento e controle desse exercício profissional por sua categoria organizada em órgãos afins? Ou seja: em que medida a profissionalidade do professor é reconhecida socialmente e garantida pelo estado?


CONTINUA... 

quinta-feira, 21 de maio de 2015

CURRÍCULO-DE-TROIA

Bom, venho pensando muito sobre o currículo e sua importância na formação de professores através do ensino, da minha experiência de professor, e, devido à necessidade de institucionalizar esse pensamento, do meu/nosso projeto de pesquisa. E assistindo algumas palestras promovidas pelo II.º Colóquio de Docência e Diversidade na Educação Básica: política, práticas e formação, promovido pelo Grupo Diverso, liderado pela nossa colega Jane Adriana V. P. Rios, e, diante das propostas de reflexão e mudança do nosso currículo de Licenciatura em Geografia, comecei a pensar neste objeto específico como um presente. Um presente de grego às avessas.

Um presente de troiano para ser mais exato. Ou seja: a universidade com suas muralhas firmes e impenetráveis oferece para os que estão fora, um Currículo-Cavalo de presente para a Educação Básica e para a comunidade cujo seio esconde conteúdos troianos insignificantes ou que, no máximo, vão ter impactos muito pouco relevantes naqueles níveis de ensino, refletidos no Ideb ou na precariedade que penetra os portões de nossa cidadela através do analfabetismo funcional que nos adentra. Acredito que nós temos, uma que pode ser excelente, oportunidade da construção de uma ponte bem feita entre nós e os outros. Nós, professores (as) e estudantes da Uneb, DCH IV, Curso de Licenciatura de Geografia em Jacobina, e os outros, professores (as), gestores (as) e estudantes da Educação Básica, movimentos sociais, etc., através da construção de um currículo implicado em nosso contexto, respondendo às nossas questões, insuficiências e possibilidades, que efetive seus objetivos e atinja suas metas através das potencialidades que temos juntos, tornando o diálogo entre ambos os níveis de educação uma expressão democrática de construção do Curso de Formação de Professores (as) em Geografia de mãos dadas com a Educação Básica e com interlocutores interessados e interessantes.

Não estou interessado na proposta de dividir tarefas. Para mim, fazer currículo é, antes de tudo, refletir sobre quem deve fazê-lo, com quem e pra quem? É fazê-lo com, não para. Não desejo trabalhar numa grade curricular cerrada e árida, com muralhas impenetráveis, como se a verdade sobre formação de professores (as) de Geografia estivesse somente do lado de dentro da muralha. Muito menos desejo atuar na elaboração de um cavalo troiano às avessas, como se tivesse de vencer uma guerra contra os que estão do lado de fora do nosso "santuário do saber", produzindo silenciamentos a partir de um Currículo-Cavalo de batalha. Não desejo um currículo isolado, arrogante, baseado num pseudo bacharelado que nem forma professor de Geografia, nem forma o pesquisador da área. Quero ouvir o que professores e professoras da Educação Básica têm a dizer e a contribuir ao nosso lado. Não numa guerra, mas numa solidária construção entre pares que se respeitam e que apenas atuam em diferentes níveis de ensino que se complementam. Quero a mulher no currículo e o homossexual também. Quero o negro e o candomblé, o moto taxi, quero o filósofo e o ativista político. Todos (as) a partir de seus lugares, geografando o Currículo de Licenciatura em Geografia na construção desse espaço, aí sim, multirreferenciado socialmente.

Minha proposta é, então, um seminário, através da proposta concreta do planejamento participativo, no qual os sujeitos outros que atuam na Educação básica e na Sociedade Civil Organizada de Jacobina possam pronunciar seu currículo conosco, que formaremos uma comissão de acompanhamento e sistematização a fim de elaborarmos o Currículo de Licenciatura em Geografia, tanto levando em consideração a proposta da PROGRAD, como incorporando sugestões advindas desse processo implicado na sociedade local.

Alguns efeitos benéficos podem ser apontados:

Aproximação maior entre universidade e Educação Básica na formação dos licenciando de Geografia;
Aproximação maior entre universidade e sociedade civil local;
A possibilidade de elaboração de um currículo tramado com as culturas locais;
Desenvolvimento potencial do Estágio Supervisionado;
Elaboração de uma proposta curricular que faz a passagem do senso comum para o conhecimento científico sem negação um do outro;
Fundação de uma condição epistemológica em que saberes oriundos das culturas populares, da Educação Básica e dos sujeitos que as integram, norteiem nossas práticas de ação (pensamento é ação) na formação dos (as) licenciandos (as) em Geografia.,etc.

Desejo ir além das "tarefinhas" que a PROGRAD passou pra gente fazer.

Matriz Curricular:
1. Elaborar um tronco comum de componentes obrigatórios;
2. Avaliar a necessidade da presença de pré-requisitos nos componentes que necessitam de um sequenciamento lógico;
3. Criação de componentes optativos para atender as especificidades dos campi;
4. Discutir nomenclaturas dos componentes para que possam chegar a um acordo;
5. Julgar a proposta das disciplinas de 45 horas passarem a serem de 60 horas.
6. Decidir nas ementas dos componentes Prática de Ensino o que será trabalhado em cada uma delas, de modo a evitar a sobreposição;
7. Definir nas ementas dos componentes de Estágio Supervisionado os conteúdos teóricos a serem trabalhados, uma vez que a questão prática já é bem definida. E discutir se há necessidade de implantação de pré-requisitos nos estágios.

Podemos fazê-las. Vamos fazê-las. Mas desejo “fazê-las com”. Não estou mais a fim de brincar com cavalinhos de guerra.



Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, da Uneb, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel.

sexta-feira, 15 de maio de 2015

MODELOS DE UNIVERSIDADE

A Universidade como santuário do saber

Nesta, a principal preocupação são com as questões de ordem exegéticas, livrescas. Seus intelectuais não estão preocupados com o mundo, mas com os textos, com as grandes ideias dos mestres do conhecimento. [...] a preocupação do erudito é com o mundo textual e não com o mundo sobre o qual o texto fala. (WOLFF, 1993, p.31). Este modelo fomentou principalmente nas humanidades, pois dificilmente poderia encontrar respaldo nas ciências exatas nem nas ciências sociais. Decorreu disso que o ideal de erudição produziu uma curiosa prole pedagógica no currículo de graduação. (WOLFF, 1993,p.31). O ideal de professor desse modelo de universidade é descrito por Paulo Freire (2001) quando este, em sua Pedagogia da Autonomia, o critica:

Daí a impossibilidade de vir a tornar-se um professor crítico se, mecanicamente memorizador, é muito mais um repetidor cadenciado de frases e ideias inertes do que um desafiador. O intelectual memorizador que lê horas a fio, domesticando-se ao texto, temeroso de arriscar-se, fala de suas leituras quase como se estivesse recitando-as de memória – não percebe, quando realmente existe, nenhuma relação entre o que leu e o que vem ocorrendo no seu país, na sua cidade, no seu bairro. [...] Fala bonito de dialética, mas pensa mecanicistamente. Pensa errado. (FREIRE, 2001, p.30)

Este modelo de universidade, distanciado do seu contexto social, produz, na maioria dos casos, indivíduos inúteis para a sociedade, que os admiram pela palavra, ou por isso mesmo os odeiam, mas não conseguem deles nada mais do que isso.

Na melhor das hipóteses, a erudição desenvolve uma sensibilidade refinada e uma sábia apreciação das complexidades dos caminhos de Deus e do homem; na pior das hipóteses, a erudição se petrifica num pedantismo absurdo a que falta o espírito e o gênio criativo daqueles que escreveram os grandes textos. (WOLFF, 1993, p.31)

Tivemos esse modelo no passado de nossa escola pública, Por onde passaram personagens da nossa política baiana, tais como Antonio Carlos Magalhães, Roberto Santos, Raul Seixas, entre outros. Um professor que adquiria livros na livraria onde eu trabalhava, falava com orgulho daquele tempo em que eles eram obrigados a recitar poesias em latim e em francês, insinuando explicitamente a grandeza do caráter erudito do ensino daquele seu período de garoto e de jovem.

Uma universidade assim

Será uma comunidade de intelectuais autogovernada de que participarão intelectuais-aprendizes cujos estudos são guiados por professores mais experientes sob cuja orientação trabalham. A universidade como comunidade será pequena, informalmente organizada, carregada de tradição e governada, em grande medida, pelo comprometimento de seus membros com a vida de erudição. Terá pouco a ver, de modo geral, com a sociedade mais ampla, limitando-se a seus próprios assuntos e julgando suas atividades por normas internas de erudição e não por normas sociais de produtividade ou utilidade. (WOLFF, 1993, p.32)

Os eruditos se comportam como sacerdotes protetores do conhecimento da tradição, afinal, a universidade é, para eles, um santuário do saber. Seus estudantes são verdadeiros seguidores, apóstolos seguindo um grande mestre atrás do saber. Em nosso caso, nos tornamos "puxa sacos" de professores esperando a mísera aprovação no mestrado ou no doutorado. De todo modo, é preciso "fazer o que o mestre, ou a mestra, manda". 

Esse saber não pode ser contaminado pela vulgaridade do senso comum ou de saberes contemporâneos, de agora, visto que, todo saber de agora, deve ser legitimado pelo saber de outrora, o saber universal, verdadeiro, autêntico. As demandas sociais não interessam para esta universidade, que se fecha em si mesma, acreditando-se purificada das emergências que a história impõe. No texto que tenho em meu blog, “Uma boa aula?”, tem um contexto em que eu fingia ser um erudito, dando a “aula-show”, a fim de impressionar os estudantes e evitar o constrangimento de ser questionado em minha insegurança de professor, sem me preocupar se, de fato, os estudantes aprendiam. 

Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Ecinho, Cira e Jorge, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel
Com o auxílio de:

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 20. edição, São Paulo, SP: Paz e Terra, 2001.  
WOLFF, Robert Paul. O ideal de universidade. Tradução: Sonia Veasey Rodrigues, Maria Cecília Pires Barbosa Lima. São Paulo: SP: editora da Universidade Estadual Paulista, 1993.

quinta-feira, 14 de maio de 2015

A PORTA

Abri a Porta
Dominguinhos

Abri a porta 
Apareci
A mais bonita
Sorriu pra mim
Naquele instante
Me convenci
O bom da vida
Vai prosseguir

Vai prosseguir
Vai dar pra lá do céu azul
Onde eu não sei
Lá onde a lei
Seja o amor
E usufruir do bem, do bom e do melhor
Seja comum
Pra qualquer um
Seja quem for

Abri a porta
Apareci
Isso é a vida
É a vida, sim


Essa porta não se abre para a gente. Ao contrário. Colocam muros cada vez mais altos, cercas elétricas, cães pitbull, seguranças privados, policiais com armas e spray's de pimenta. Mas nós queremos "usufruir do bom, do belo e do melhor." Nós e todas as pessoas, a começar pelos nossos terceirizados funcionários de salários atrasados da Uneb. Nós queremos a vida plena e nos queremos plenos, para provar seu mel. Não aceitamos mais migalhas. Vivemos num país rico e queremos partilhar dessa riqueza. E queremos uma universidade rica com professores, alunos e funcionários produzindo riquezas intelectuais diante das demandas e exigências da nossa política, da nossa ciência, da nossa vida enfim. Porque a Uneb e as demais UEBAs são as universidades do pobre do interior da Bahia! Vamos abrir essa porta e aparecer na cena política! A mais bonita realidade vai nos sorrir!

Abrir a porta na perspectiva dialética não é algo de colocar a mão no trinco e empurrar. Nessa perspectiva será preciso forçar a porta. Porque há um pequeno grupo que se coloca do outro lado da porta. Do lado do privilégio, do lado de dentro da inclusão. E nós, estamos do lado de fora. Estamos na chuva, no frio da exclusão. Não queremos de jeito algum ficar à deriva no mar da história, com sede, com fome, bebendo urina para sobreviver num oceano cujo horizonte oferecido é a morte, apenas a morte. Mais do que querer, precisamos entrar para viver. O portão da universidade precisou ser fechado para que ele sempre fique aberto. Paradoxo? Paradoxo para enfrentar a contradição. A porta: abri-la ou derrubá-la? Acabar com a cisão entre o lado de dentro e o lado de fora? Construir uma outra história? Sim. Somente unindo-nos poderemos ficar fortes o suficiente para derrubar a porta, para acabar com o lado de fora e o lado de dentro e construirmos outras realidades possíveis, de portas abertas e tapete vermelho, ou mesmo sem portas, sem luxo, sem privilégios que geram a pobreza política da nossa gente.

Logo percebemos que, na perspectiva dialética de entender o fenômeno no contexto da realidade baiana e brasileira, abrir a porta exige de nós a percepção crítica de nossa condição humana no planeta, vivendo no interior da Bahia, na Bahia, no Brasil. Exige uma identificação de nossa ontologia. Quem somos? Como nos vemos? Como nos definimos? A dialética tem seu momento de conservação da essência. Essência de uma ontologia gestada historicamente, marcada pelo contexto em que somos engendrados e nos engendramos, nos parimos e quando nascemos historicamente, nossas identidades vão sendo re-definidas. As dores do nosso parto, só nós sentimos. É preciso saber quem somos e onde estamos para saber para aonde precisamos ir.  Depois, é preciso saber como chegamos onde estamos. Precisamos saber quais forças e estruturas nos colocaram e nos mantêm na pobreza, na negação. Que forças e estruturas nos negam uma universidade decente, pública, com qualidade. Precisamos deixar de pagar o preço do acúmulo do capital, do superávit primário para pagar a ganância que nos apaga a esperança. Precisamos nos colocar na antítese dessa história. É a hora. É sempre a hora. Agora.

Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, da Ana Lúcia, de Cira, Jorge e Ecinho, Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel

quarta-feira, 13 de maio de 2015

GREVE E PARTICIPAÇÃO

Mais uma greve. E aqui estamos nós. Depois da dor de cabeça, tomei um comprimido e fui dormir. Acordei pensando nesta greve. Quer dizer: fui dormir pensando nela. E pensando como nossas greves são e como elas podem ser. O que é greve mesmo? Para que ela serve? Como a greve pode ser gestada? A greve é uma ação ou uma reação de uma categoria profissional? É de uma categoria profissional ou, em se tratando da universidade estadual baiana, uma greve de categorias lutando pela sobrevivência da universidade estadual neste território? A greve envolve toda a categoria ou, pelo menos, maior número de indivíduos que a compõem? Existe uma maioria silenciosa na greve de professores, estudantes e funcionários que são contra seu desencadeamento? Essa maioria deve ser levada em conta? Nossos (as) dirigentes sindicais têm um modelo de universidade a ser defendido, colocado como proposição? Em caso de Estatuinte, que modelos de universidade seriam contrapostos dialeticamente para que a construção do modelo possível historicamente seja implantado numa síntese construída na participação?

E todas essas perguntas passam também pela greve. Esta pode ser apenas uma parada para ver como o Governo age diante de nossas demandas e exigências, ou pode ser mais um momento intenso que, para além de fechar portões e ocupar órgãos públicos, pode intensificar reflexões sistemáticas que vão aprimorar nosso entendimento do significado da universidade estadual baiana para nosso território, fortalecer nossas convicções em torno de sua defesa e de sua construção rigorosa, e melhorar a qualidade dos serviços que prestamos à população como funcionários públicos, como estudantes de universidades públicas baianas, como intelectuais – professores (as), estudantes e funcionários (as) (meu conceito de intelectual é gramsciano) – a serviço da emancipação do ser humano e do desenvolvimento de nossa sociedade, baseado em princípios democráticos, na produção científica e na solidariedade com aqueles e aquelas que sofrem as exclusões dessas “velhas formas do viver”, a começar pela defesa dos nossos terceirizados funcionários da limpeza e da vigilância.

A greve pode ser mais uma possibilidade de identificar e enaltecer esse nosso “Tempo-Rei” na universidade baiana. Um tempo em que a pesquisa seja algo comum, parte do ensino e a extensão seja um serviço projetado com a comunidade – nunca para a comunidade, também aliada à pesquisa e ao ensino, num currículo construído ativamente por metodologias dirigidas por princípios acionados e acionando o planejamento de nossas atividades acadêmicas. E isso tudo passa pela participação. Segundo Habermas (1975) apud Catani e Gutierrez (2000) Participar significa que todos podem contribuir com igualdade de oportunidades, nos processos de formação discursiva da vontade. Ou seja, participar consiste em ajudar a construir comunicativamente o consenso quanto a um plano de ação coletivo. (GUTIERREZ e CATANI, 2000, p.62).

Nesta definição percebemos que a construção do consenso quanto a um plano de ação coletivo requer a participação com qualidade política, onde todos (as) podem contribuir com igualdade de oportunidades (mesmo tempo de fala, ambiente de respeito às diferenças, autonomia responsável, capacidade de articulação, domínio de informação de fontes seguras, exercício da liderança, espaços formativos e autoformativos, etc.) nesse processo. Contudo, a participação apresenta problemas que devem ser levados em conta para não construirmos uma visão ingênua e superficial sobre este aspecto da política.

A vontade de poder quantificar os graus de participação, aliada à inexistência de um critério consensual que a defina, leva o pesquisador a ter que lidar com duas questões que dificultam qualquer análise. Em primeiro lugar é muito complexo dar conta da consciência individual do ator chamado a participar, sua verdadeira e íntima vocação, compreendida aqui como a disposição pessoal para engajar-se no processo. Outro problema é que esta situação permite associar o grau de participação ao número de pessoas consultadas; ou seja, induz a acreditar que muitos indivíduos, interferindo fortemente em muitas decisões, constitui um sistema bastante participativo. Ora, sabendo que é característico do homem dar palpite em todo e qualquer assunto do qual tome conhecimento, ao associar-se o maior grau de participação ao maior número de pessoas interferindo no processo, entra-se numa espiral de expectativas impossível de atender nas organizações, que pouco ou nenhum compromisso têm com qualidade e eficiência. (GUTIERREZ e CATANI, 2000, p.61)  

Assim, para que a participação tenha bom êxito é preciso que haja uma gestão inteligente do processo decisório. É preciso que as lideranças que estão guiando o caminho que a instituição quer trilhar – seja escola, seja sindicato, seja um movimento social, uma ONG, seja uma cooperativa, etc. – precisam planejar bem suas reuniões, sugerir prioridades a partir do debate que a plenária enseja, lembrar os objetivos gerais que orientam as ações da instituição e gestar o processo de decisões coletivas, caso contrário a participação pode sucumbir a própria instituição em situações contrárias aos objetivos emancipatórios que a orientam. [...] a consulta individual aos atores envolvidos não garante, por si só, a participação consciente. Uma decisão prejudicial ao grupo, ou simplesmente equivocada, pode ser autorizada por um número imenso de pessoas. (GUTIERREZ e CATANI, 2000, p.61) 

Nesta greve algo que gostei logo de cara foi o protagonismo dos (as) estudantes. Elas e eles deixaram de vir a cabo nas greves, com falas marcadas por clichês da simbologia discursiva sindical ou política. Começaram a falar sua própria língua: a língua dos (as) estudantes. Com o domínio de sua própria língua abre-se o caminho de uma historicidade própria, do surgimento de um sujeito político-institucional autêntico, com suas próprias pautas, que as vezes coincide com as nossas de professores (as), em torno da defesa da universidade pública. A participação exige conteúdo. Exige legitimidade discursiva. E esta legitimidade tem de ser engendrada nas entranhas de uma ontologia histórico social que forja e fortalece identidades amplas que aglutinam identidades pessoais nas lutas pelas garantias de seu espaço, de suas palavras, de seu lugar no mundo – mundo entendido aqui como universidade estadual baiana – de forma respeitosa e até orgulhosa. O orgulho de ser estudante da universidade estadual baiana, que tem o direito de decretar sua própria greve e de construir a sua própria ágora.

É neste contexto, por fim, que a greve pode ter uma qualidade política, contrária a toda uma pobreza política que nos assola e que nos reduz à condição de escravos obedientes aos nossos senhores que decidem sozinhos o nosso destino. Participar da greve é exercer a indignação diante dos dados levantados sobre a situação da nossa universidade! Participar da greve é associar interesses comuns para fortalecer nosso exército diante do asfixiamento financeiro que nossa universidade estadual baiana sofre, produzindo precarizações que podem nos levar ao descredenciamento. Participar da greve significa entender que a Uneb, por exemplo, é a universidade do pobre do interior do estado, mas que esta universidade não deve ser pobre, mas, ao contrário, rica, com recursos, pesquisa e ensino atrelados; professores e funcionários bem pagos, estudantes protegidos e assessorados, produzindo artigos desde a graduação; funcionários satisfeitos com seu trabalho, produzindo a universidade conosco, protagonizando lutas e defendendo seus direitos. Participar da greve é, sobretudo, entender que os privilegiados não desejam universidade pública e gratuita para o povo, que já paga tanto para esse país andar, e ainda tem de pagar por saúde, educação, habitação, transporte, esporte e lazer. Participar da greve é entender que, como professores de universidade, devemos desenvolver nossas pesquisas, participar da gestão, ser cogestores, lutar pela mudança do poder decisório no interior da Uneb, que concentra suas principais decisões no CONSU – Só havia um diretor na Assembleia de deflagração da greve – e tudo isso exige de nós maior concentração, maior envolvimento, um protagonismo ativo de sujeitos que se constituem, de fato, em sujeito com qualidade política. Participar da greve é discutir o modelo de universidade que queremos:
  • ·  Um santuário do saber?
  •     Um campo de treinamento para profissionais liberais? 
  • ·    Uma agência de prestação de serviços?
  •     Uma linha de montagem para o ser humano do sistema? 
  •     Uma universidade que trabalhe formação profissional, engajamento político e comprometimento ético no ensino na pesquisa e a extensão no contexto local e global?

Assim, com essa qualidade, a participação pode fazer uma greve, de fato, acontecer. Uma greve grávida...

GREVEDEZ

A greve é grave
é grávida
A greve é chave,
é ávida.

A greve é válida
contra o agrave
do Estado ao estudante, 
ao professor, 
ao funcionário.
A greve é dor,
é o estado grave
da educação pública superior.

Grave isto: sem greve
não arde
não há alarde
da nossa gravidade.

Estamos na base
do pão e água,
a universidade estadual baiana 
quase de fome, à míngua
vivendo de nome.

A greve é grávida
e essa é a chave
da nossa labuta ávida
nossa árdua luta
contra uma política árida.

Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes, da UNEB e de Jesus, O Emanuel
Com o auxílio de:
BOBBIO, Norberto. Estado, governo, sociedade: para uma teoria geral da política. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
BUARQUE, Cristovam. A aventura da universidade. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista; Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994. 
DEMO, Pedro. Pobreza política. A pobreza mais intensa da pobreza brasileira. Campinas, SP: Armazém do Ipê (Autores Associados), 2006.   
GUTIERREZ, Gustavo Luis; CATANI, Afrânio Mendes.  Participação e gestão escolar: conceitos e potencialidades in Naura S. Carapeto Ferreira (org.). Gestão democrática da educação: atuais tendências, novos desafios. 2. ed., São Paulo, SP: Cortez, 2000.
MAXIMO, Antonio Carlos. Os intelectuais e a educação das massas: o retrato de uma tormenta. Campinas, SP: Autores Associados, 2000.
WOLFF, Robert Paul. O ideal de universidade. Tradução: Sonia Veasey Rodrigues, Maria Cecília Pires Barbosa Lima. São Paulo: SP: editora da Universidade Estadual Paulista, 1993.