quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Nesse olhar

Nesse instante, desse instante, estava dialogando com meu filho sobre Filosofia, resolvendo dialogicamente a atividade “de casa”. Foi quando me deparei com a poesia abaixo, o que me enviou, inevitavelmente, ao universo filosófico do olhar.

Receita de olhar

Nas primeiras horas da manhã
desamarre o olhar
deixe que se derrame
sobre todas as coisas belas

o mundo é sempre novo
e a terra dança e acorda
em acordes de sol

faça do seu olhar imensa caravela.

(MURRAY, Roseana. Receitas de olhar. São Paulo: FTD, 1997. p.44)

Perfeito! “Desamarrar” o olhar para ver mais longe e superar a miopia que esconde as coisas belas. “Desamarrar” o olhar é um convite filosófico e poético para contemplar curiosamente o mundo e navegar sobre todo um universo que passa a existir ao nosso redor. Então isso já nos leva a perguntar se o que existe, existe através do nosso olhar. Pablo Neruda, grande poeta chileno, afirmava em um de seus fantásticos poemas que, diante da mulher amada,

“Nada mais veem meus olhos quando a veem.”

A paixão nos cega e, assim, tateamos no escuro, da terra, do ar ou do mar, o amor que nosso embaçado olhar vê profundamente apenas com o coração. É Cecília Meireles que, em um de seus belos versos nos partilha a sua procura “marítima” por si mesma.

(Mas, neste espelho,
no fundo desta fria luz marinha,
como dois baços peixes
nadam meus olhos
à minha procura...)

Talvez o mundo seja apenas um oceano que nos distrai do encontro com nós mesmos. São tantas as coisas coloridas, saborosas e divertidas que preenchem nossas ânsias que, de repente, paramos de pensar em quem somos nessa trama e nosso olhar vai se amarrando nesses fios sedutores das mil coisas do mundo e, nessa astuta teia, de tanto ver o que vemos terminamos deixando de ver o sagrado in-visível. É o que nos cega. É preciso um “Ensaio sobre a cegueira” para ver se saímos com um olhar diferente dela. E, surpreendentemente, descobrirmos que não existimos em nosso olhar, que “desexistimos” no que existe, pois nosso olhar se “derrama” em desperdício. O olhar repousa sobre o desejo, não há como negar. E o mundo do “Amor sem Escalas” denuncia subjetividades tênues como nuvens, cujo olhar empobrecido de humanidade detesta pousar em sua própria intimidade, pois foge dela, pois só vê decadência, ao invés de também, cadência. É o mundo que a gente vê, e que por ver, a gente cria e acredita sem pestanejar mais, sem mais olhar para o nosso olhar e, de lá, veri-ficar outros pontos de vista.

Quem sabe outro mundo que não existia não esteja nos chamando pra navegá-lo com um olhar contemplativo, surpreso, encantado? Quem sabe velas brancas sobre o azul imensidão não proponha um navegar imprescindível na descoberta de continentes insuspeitos? Caravele por aí seu olhar curioso, procurando ou por si, ou por outro (a) que pode vir a existir em ti, caso seu olhar se derrame na trajetória de sua subjetividade.

Pra terminar, um poema "meu" do poema acima que nasceu quando meu olhar pousou em seus versos e sentidos que ecoaram e escoaram em meus olhos derramados.

O sol acorda carinhosamente a terra
 aos sons afinados
de seus raios.

Meu olhar se abre preguiçoso
mas não vê na manhã
o sentido glorioso.

Sou míope, admito.
O que posso ver
soa meio esquisito
na palavra
Só existem os sentidos
na partilha
de cada ponto de vista
de cada ponto de cegueira
que me visita.

Nesse mundo impreciso
construído por um ver viciado
viro zumbi de mercado
andando tolamente
à procura de ofertas,
promoções, emoções
que se esvaem
ao fim das liquidações.

Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Para amanhecer

Amanhece sempre
fora da gente
Auroras, faunas
e floras

Trago noites comigo,
noites minhas
repetidas sistematicamente
como um mantra ao revés.

Fico nessas noites
assombrando-me
esperando-me
amanhecer.
Pego-me insone
nessas noites
de nomes bem conhecidos.

Finjo saber o que quero
mas não alcanço-me,
não desperto desse sonho
tão pesado, mascarado,
pesadelo.

Quero acordar!
Quero amanhecer dentro de mim
deixar a noite partir
para o seu devido lugar.
Quero o crepúsculo de mim
após a tão desejada aurora.

Não importa se quando
eu acordar
faça noite lá fora:
a manhã dentro de mim
faz qualquer noite sem fim
virar uma bela e nua aurora.

Quero hoje!
O melhor do agora
na hora certa de ser
minha vida precisa
acordar no amanhecer.

Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

O EGITO CONTEMPORÂNEO NÃO É A BAHIA

Carlinhos Brown tem uma música muito legal que diz o seguinte:

Sou Faraó
Prazer minha mãe
Sou Faraó
Passeio pelo sol
Sou Faraó
O rei da folia
Sou Faraó
E o Egito é a Bahia...


E Carlinhos Brown é, realmente, o rei da folia. Precisamos desse rei, com sua criatividade, sua inteligência, sua simplicidade. Um monarca que dispensa o castelo e vive próximo ao povo, fazendo de sua música sua política de viver, e, a cada ano, fazendo-nos cair na gandaia, pulando na chuva, no sol, no oásis faraônico das ruas e avenidas de Salvador. Os foliões não são povo. São seres encantados, extasiados, fantasiados e vivem, realmente, no Egito antigo. No tempo póstumo das múmias famosas. E por isso, Carlinhos sabiamente nos diz que...


Saí das catacumbas

Nunca fui da escuridão

Zabumba e duas tumbas

Carrego sempre na mão...


Durante mais de cinco dias os foliões encarnam seus personagens e vivem plenamente em seus abadás, onde um outro rei governa a cidade com uma chave que abre portas para turistas e famosos do mundo inteiro e fecha portas para os seus verdadeiros súditos, os baianos e soteropolitanos que ficam à margem das cordas, das portas e portões do blocos carnavalescos e dos seus trios elétricos. Um verdadeiro sentimento de múmia, saído de antigas catacumbas, impregna o ar de Salvador. A “escuridão” de nossa cultura política racista, machista, subserviente, corrupta e perversa, sai do enquadramento das câmeras do mundo inteiro e fica nos túmulos silenciosos e sombrios que apodrecem nossas relações sociais. Às vezes uma voz dissonante aponta para essa escuridão, como a do próprio Carlinhos Brown, mas as luzes da mídia a atiram de volta ao apagamento.

E folião não é povo. Folião dura cinco dias, morre como gente, deita em sua catacumba e desaparece como ser humano que se rebela, muito embora anuncie o contrário. Antes os “cordões” eram formados espontaneamente pelas pessoas que demonstravam sua alegria, criatividade e politicidade. Cada um fazia sua mortalha e saia na gandaia, curtindo três dias de rebelde alegria. O que havia de comunidade foi mandado para a escuridão pelo mercado, que capitalizou a tudo desses dias, transformando mortalha em abada e espontaneidade em criação de necessidades e desejos individualistas que cabem num bloco carnavalesco, limitado, não mais por cordões, mas por cordeiros paupérrimos que vendem sua força de trabalho por ninharias de sobrevivência. É justamente por esses dias que artifícios econômicos e políticos nocivos à população são implementados. Aumento de tarifas dos serviços públicos, aumento de impostos, redução de benefícios de classes de trabalhadores entre outras decisões do poder político são enfiadas goela abaixo de uma população que se encontra no delírio da carne. Tudo em volta espera esse tempo passar para continuar havendo. O clima, a insegurança, a saúde, a educação, a economia, o futebol e tudo o que ocorre acontece apenas nas ruas e avenidas de Salvador e de quase todo o país. O mundo é o carnaval. E nesse mundo os homens e mulheres abrem mão de seu status humano em um transe psicótico em que o vale tudo é a tônica das relações de milhares de pessoas em espaços comprimidos de som, fúria, calor, sexo, drogas pesadas e muita bebida alcoólica.

E, nesse contexto, a Bahia não pode ser o Egito contemporâneo, cuja praça realmente “é do povo como o céu é do avião”. A Bahia cheia de estradas privatizadas, com uma capital cheia de corruptos e obras em ruínas, como o metrô, não pode ser o Egito de agora. O Egito deu um chute na bunda dos seus atuais “faraós”, os enviando às suas catacumbas, de onde nunca deveriam ter saído. Os faraós baianos se renovam num processo de mumificação impressionante! São os reis da folia com o dinheiro público, vendem a Bahia para consórcios em negócios mal explicados, autorizam o desmatamento, e administram falências na segurança, na saúde e na educação que transformam em sucesso de governo através de propagandas enganosas. A Bahia não pode ser o Egito Carlinhos. Aqui não tem povo, tem folião; aqui não tem governo, tem faraó; aqui não tem verdade, tem feitiço, propaganda, corrupção, mentira. Aqui não tem alternância no poder, tem alternância de grupos políticos que agem de forma semelhante quando o alcançam.

A passagem de um tempo histórico a outro aqui na Bahia, é parmenidesniana, apenas aparente. Os novos e suntuosos palácios estão nos camarotes vip’s, formados pelos membros mais ilustres do reinado do faraó. Os novos e velhos escravos, em sua maioria negra, já não são amarrados pelas cordas, amarram-se a elas para continuarem sobrevivendo mais um carnaval cuja esfinge mais os devoram e menos os decifram.

Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, o Emanuel.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Sobre a arte de ter

Há muita coisa que te espera
mas que nunca vais alcançar.
Há muita coisa que te aguarda ansiosa
nos futuros imprecisos.

E nunca vais alcançar todas as coisas.
E embora saibas disso
queres tudo que existe.

Tudo que tu não tens
te trazes infelicidade,
nada do que tu tens
tu tens em profundidade.

Pois tenhas a seu redor
as coisas e, nelas,
o que há de melhor.

Aproveites a sua cama
para adormecer com todo o seu conforto
Toques a maçaneta da tua porta
e gire-a com pensamentos para dentro.

Pises o seu tapete e te deixes cair no sofá.
Aproveites todo o silêncio existente
ouças a casa e todos os seus discretos sons.

Tenhas tudo sem teres nada,
ponhas tudo a teu serviço: os papéis,
a agulha, o rack, a toalha, os talheres,
as pequenas coisas invisíveis.

E assim vais descobrindo quanta coisa que não tinhas!
embora quisesse comprá-las novamente
no vício colorido das vitrines.

E podes alcançar tudo a seu redor
e ir além.
Em tua casa tu tens tudo
Embora penses, desgraçadamente, que nada tens.


Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Romance ao molho pimenta

A distância contraditória entre mim e você
encontra uma “força estranha”:
aproxima, esquenta, acende, queima e arranha.

Eu não tento entender
E nem sei o saber
que a entende.

Só não mais me surpreende
esse prazer e esse ódio
no mesmo romance.

Aproxima e afasta
atira distante
e abraça.

Une ofegante o suor,
o sêmen,
o café, o pão,
a ilusão e a realidade,
a mentira e a verdade

A gente se ama e desama,
se arma e desarma,
se ofende e desculpa,
se afeta e afeto,
aborta e feto.

A gente dá errado e dá certo,
e tudo entre nós é incerto e correto.
Agrada e degrada,
machuca e arrepia,
fere e acaricia,
e isto, embora acabe,
principia.

Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

O segredo de aprender

Eu não sabia de nada!
Nunca saberei.
Sei disso agora.
Ainda não sei se sei,
só sei que não sei:
tenho certeza disso.

Só não quero mais fingir.
O louco e o tempo sabiam
que eu, sendo tolo,
mal cabia
no mundo da sabedoria.

Desperto na ignorância
e sonho com sapiências
retorno à infância
relembro que vivo para aprender
só assim
tudo faz sentido em mim.

O segredo reside em si mesmo:
aprendia sem saber como.
Surpreendido com o que em mim engendrava,
germinava em segredo
e se revelava espontâneo.
Ninguém me sabia,
nem eu!

Algo escondia a latência
e se projetava adiante.
Se eu não sabia
havia outro eu
mais interessante
que me inventara
 para se distrair.

Dentro desse eu desconhecido
vivo o ambiente, o meio,
o fim de tudo:
a luz, a água,
a terra, o fogo,
o verde, o azul.

E dentro dessa alquimia eu apreendo
o mundo, o meu inexplicável ser...
O segredo? É "brincar de viver".

Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel.

Homem-mercadoria

Gostaria de dizer:
Nada desejo
nesse momento.

Meu sentimento está gasto:
amei, sofri
assado, assim.
 
Cheguei a este enfim
de mundo,
de mim.

Meu coração está burocrático
de funcionário público
e privado

Magnético, eletrônico.
Eu não vivo.
Funciono.

Compro, pago, troco,
investigo os preços
tenho medo de inflação.
 
Sou parte dessa engrenagem
Sou homem-mercadoria
e vivo todo mês sagrado
confundindo minha vida
com o meu saldo.


Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel