sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

ERA DOS CAPITÃES

No Brasil, de longa tradição escravocrata, que ficou em relativo silêncio por um relativo tempo, país no qual diferentes tempos históricos se renovam na mesma contemporaneidade, a principal luta não é a de classes: é a de raças. Aqui o pobre de pele branca, mesmo não sendo branco, não sofre preconceito direto, como as pessoas de pele negra. As instituições se estruturaram e se consolidaram ao longo do tempo contra a entrada da negritude nelas, principalmente na direção de tais instituições. As pessoas negras com talentos distintos ficavam e ficam à sombra de um “macho adulto branco no comando” (O Estrangeiro – Caetano Veloso). Um/a ou outro/a acostumou-se a ficar atrás, sorrindo um sorriso carregado de “não sei o que”, não sei se de cinismo, não sei se de tristeza, não sei se de aprovação. Um ou outro acostumou-se a pensar como os brancos, como se isso lhes desse um passaporte pessoal e intransferível para a entrada no salão de festas dos brancos que se alimentam do sangue e da dor do povo negro e do povo índio e da pobreza que pagam os impostos que os mantêm bem nutridos e cheios de luxo.
Nesse país dos bolsonaros o conteúdo mais fácil de se aprender é a ignorância preconceituosa. A atitude mais rápida a se tomar é a ofensa e a agressão. O racismo, o machismo, a homofobia e todas as violências contra as pessoas com deficiência refletem um humano desumanizado, porque não se precisa reflexão, nem crítica - aliás as repudia - mas a obediência cega às ordens de um “capitão”, patente que, ao longo da história, tanto mal tem feito para o povo deste país. As maldades e perversidades estruturadas e postas em prática ao longo de nossa história, passando pelo massacre que o exército republicano, cheio de coronéis e capitães, causou nas famílias de Canudos, que ergueram naquele lugar a esperança de libertação contra as formas de escravidão que naquele lugar imperava, inclusive com aprovação da poderosa Igreja Católica.
Ao longo de nossa história brasileira, os coronéis e capitães – tanto é que os generais, com exceção do Duque de Caxias, nunca foram populares e conhecidos como os de mais baixa patente – mais atacaram o seu próprio povo que procurava vida digna, do que ameaças externas. Pelo que me lembro nossa última guerra foi a do Paraguai, no qual o General Caxias se destacou. De lá pra cá, sustentamos um poder militar com privilégios, sempre ameaçados pelo terror da tortura que a ditadura promove, utilizando seus psicopatas de plantão. Sempre tem uma vaga de “capitão” esperando para o exercício do assassinato a mando do “sistema” macabro de ordens e patentes.
Nessa história maldita de capitães o povo sofre sob o poder de suas perversidades, que buscam sempre mantê-lo sob correntes, diante de fuzis, de armas, da sentença de morte. Todos os dias nós morremos. Ao milhares somos assassinados todos os anos sob a ordem de capitães. Capitães-do-mato, que perseguiam, aprisionam, torturavam e matavam os negros que se recusavam à escravidão; capitães-do-lar que agridem e assassinam mulheres que se recusam a serem escravas de seus desejos de apropriação da mulher como um objeto de pertencimento pessoal; capitães-do-ar que ocupam ministérios viajando em suas nuvens ideológicas a perseguir universidades públicas, as feministas, os homossexuais, os movimentos sociais de modo geral, o meio ambiente, os indígenas; capitães-das-águas que privatizam nossas águas, nosso bem essencial, entregando-as ao domínio do capital privado, que perseguem quilombos com seu poderio, "todo de branco, marinheiro só, com seu bonezinho" ou que fecham os olhos diante de tragédias anunciadas como as da Vale; capitães-do-asfalto, que em suas viaturas agridem, ofendem e assassinam crianças, homens e mulheres no interior de veículos, protegidos sob o “excludente de licitude” bem antes do soldado mandado do capitão-presidente, que atualmente ocupa o Ministério da “Justiça” tentar legalizar; capitães-do-desmato, que ocupam o Ministério do Meio Ambiente para acabar com o meio ambiente, favorecendo queimadas criminosas na floresta amazônica e em outras regiões do Brasil, para promover o garimpo, o agronegócio e outros negócios escusos.
Há sempre candidatos querendo ocupar esse lugar de poder da perversidade, legitimando a exclusão, a marginalização e legitimando o consequente assassinato de todos aqueles e todas aquelas que não ficam atrás do homem branco, sorrindo como manequim de loja, com o ferro entrando em sua “coluna”. Toda essa “capitania hereditária” que infesta nosso país, composta pelo "macho adulto branco" é um mal histórico, um vírus que ficou encubado em nosso corpo social e volta a manifestar e em infestar nossa contemporaneidade, como uma gripe, um sarampo produzido pela ignorância disseminada na sociedade, atingindo até membros de nossas famílias, como se quisesse capitanear, em nome de deus, da pátria e da família deles, a mais novíssima propriedade privada, o controle da história sob a mira das armas e do exercício da violência dirigida sistematicamente contra a negritude, os indígenas, as mulheres, as pessoas com deficiência e as pessoas que se recusam a deixar de pensar, estudar, pesquisar e de defender a justiça.

Joselito da Nair, do Zé e de quem não quiser entrar nessa maldita corrente de “capitania hereditária”.