sábado, 10 de março de 2018

NEOLIBERALISMO E IDEOLOGIA: economia livre, trabalhador escravizado


Neste editorial acima, do Jornal A Tarde, é muito fácil, para quem tem um pouco de estudo na área, identificar a ideologia que perpassa o discurso que defende a economia de livre mercado como solução para os principais problemas sociais, políticos e econômicos que afetam o Brasil na contemporaneidade, contrapondo a ação ineficiente e corrupta do Estado à suposta eficiência do capital privado através da iniciativa empresarial, operando num mercado livre no qual, patrões e empregados, ricos e pobres, se unam num esforço coletivo e empreendedor, para “transformar e retomar a competitividade do país sem tutela do Estado em excessos” (A TARDE, EDITORIAL, 2018, p.A3).

Leitores desavisados e acostumados a pensar pelas reflexões alheias, facilmente caem na armadilha da falsa consciência disseminada por esse texto, passando a pensar que o Estado, de fato, é o leviatã que devora suas capacidades produtivas e o impede de desenvolver-se em função do livre exercício de suas capacidades, tornando-se assim, mais um a desejar e exigir um Estado Mínimo, conforme propõem os ideólogos neoliberais, não sabendo, entretanto, que estão atirando nos próprios pés. Os/As autor (es)/a (s)texto se aproveita (m) de um traço herdado do colonialismo português no Brasil, o patrimonialismo, que aqui se fortaleceu e consolidou, fenômeno no qual o público e o privado se confundem, gerando as sementes da corrupção – que neste momento são expostas ao grande público, mas sempre existiu no Brasil – com o objetivo principal de retirar do Estado prerrogativas de regulação e mediação que somente este aparelho de poder pode fazer, tais como a proteção do trabalhador diante da exploração do patrão, raiz principal da desigualdade social e dos principais problemas políticos, sociais e econômicos desse país continental.

A função da ideologia é justamente gerar essa falsa consciência que esconde e mascara os aspectos mais duros e antagônicos do domínio, contribuindo para a aceitação passiva e a integração política e social dentro dos princípios do domínio que se quer efetivar e estabilizar, no caso, o Estado Mínimo do pensamento neoliberal na realidade.

[...] porque falsa consciência, a crença ideológica não é uma base independente do poder e a sua eficácia e sua estabilidade dependem, em última análise, das bases efetivas da situação de domínio (para Marx, as relações de produção). [...] A averiguação do caráter ideológico de uma crença política permitiria, na verdade, tirar conclusões significativas sobre a relação de poder a que a crença se refere: por exemplo, sobre sua potencial conflitualidade e sobre sua estabilidade. (BOBBIO, MATEUCCI, PASQUINO, p.586, 1995)  
A crença ideológica acima se refere ao neoliberalismo e aos seus pressupostos, como o exercício das potencialidades individuais num ambiente de liberdade de mercado em um contexto político e econômico de Estado Mínimo, o que não significa Estado Frágil, pois, para manter o domínio todo grupo hegemônico utiliza da coerção - feita pelo aparelho de repressão do Estado - para manter os seus concorrentes e seus subordinados na condição de subordinação. Na Síria, Bashar al Assad não perdeu o domínio sobre o território porque, embora tenha perdido o poder ideológico, não perdeu o poder político, que é, em última instância, o poder da força militar, o poder que mantém o domínio. Sua sorte, diferente de Muammar al Gaddafi, foi estar numa região estratégica, tanto para os interesses russos, quanto para os interesses americanos. Caso a Rússia não entrasse na guerra, o destino de Assad estaria selado, tal como ocorreu com Gaddafi. Quando o poder ideológico não mais convence ninguém, os dominantes acionam seu aparelho de repressão, mobilizando tanques,  bombas e tiros como força de convencimento eficaz contra aqueles que desejam mudar o sistema de dominação, ou, no mínimo, trocar de dominador. 

Entretanto, produz falsa consciência quando deixa de mostrar que somente pela existência entre ricos e pobres já se evidencia a injustiça histórica do capital privado que se acumula sobre o trabalho coletivo, sob as bênçãos do Estado que o Editorial quer eliminar, pois, repito, Estado Mínimo é mínimo para as classes populares e os/as trabalhadores/as e máximo para o capital e seu processo de acumulação.

Se o homem fosse apenas atividade criadora e produtora de si mesmo e do mundo que o cerca, é certo que toda apropriação privada seria fonte de violência e dominação do homem sobre o homem. (Padre Henri Chambre).
E assim o é: de fato, “toda apropriação privada é fonte de violência e dominação do homem sobre o homem”. Quando um ser humano não quer produzir a riqueza para outro, através do trabalho, o poder ideológico, disseminado na sociedade, o classifica rapidamente de "vagabundo", de "desajustado", atingindo-o em seu caráter moral. Depois, o poder da força, a polícia atua sobre seu corpo, aprisionando-o como "meliante".  Enquanto esperava o cinema com Ana e Lucília, fui comprar um chopp, e fiquei observando os rostos das funcionárias e dos funcionários que estavam no atendimento. Vi duas coisas bem nítidas: insatisfação e cansaço. Para não dizerem que foi uma percepção subjetiva, sem nenhum caráter empírico, revelei para algumas delas o que percebia, o que foi por elas confirmado, peremptoriamente. Aquela afirmação do Editorial de que:

O embate entre a classe trabalhadora e patrões, entre ricos e pobres, é enfadonho em demasia no atual cenário econômico, político e social do Brasil. A “guerra” não existe, cravou o empresário Flávio Rocha. [...] Rocha elucidou uma fugaz percepção de que empregado e ‘chefe’ devem, juntos, recender a economia nacional. (A TARDE, EDITORIAL, 2018 p. A3)

O embate existe e a guerra continua sempre, desde que continue a dominação de um ser humano, o ‘patrão’, o ‘chefe’, sobre os demais seres humanos, os ‘trabalhadores’. E com a Reforma Trabalhista, aprovada recentemente, essa guerra tende a se tornar mais cruel, com um grande contingente de subempregados, praticamente sem direito a férias, espremido entre contratos retalhados por hora, por dia, por semana, por mês. Enquanto o empresário ganhou uma ampla vantagem legal para impor sua vontade sobre os trabalhadores e as trabalhadoras que lutam por uma existência minimamente digna. É essa vantagem legal que vai respaldar a exploração perversa do/a trabalhador/a nesse Brasil contemporâneo.
A ideologia disseminada no texto publicado, e aqui comentado, produz falsa consciência quando desdenha da luta de classes entre ricos e pobres. Especulo que, talvez, só não tenha desdenhado do racismo por deduzirem o impacto que uma opinião dessas teria no cenário soteropolitano e baiano para a referida empresa de comunicação que, conforme venho analisando, está cada vez mais conservadora. “[...] Reacender a economia nacional” para que? Para o patrão ficar cada vez mais rico e o empregado cada vez mais pobre, como ocorre quase sempre? Não é o capital que paga o trabalho, é o trabalho que paga o capital. Como reacender a economia nacional se o Brasil, através de sua diplomacia subserviente aos Estados Unidos, não consegue ampliar sua participação no mercado internacional? É culpa do trabalhador também a subserviência dos nossos neoliberais governos?   
O discurso do Editorial se aproveita de uma realidade atual, da corrupção dos/as nossos/as representantes políticos e da má gestão do Estado, que prejudica muito mais os mais pobres, e nem, ou pouco, afeta os ricos, para levantar a bandeira do Estado Mínimo, constituindo-se mais uma bandeira de um punhado de empresários que desejam a dominação política, muito embora neguem e afirmem ser a sua bandeira mais uma bandeira a ser hasteada, como se fosse a bandeira universal dos interesses do país, o que revela a contradição logo no início do texto que a ideologia pretende ocultar para convencer os leitores do referido jornal.

Existem bandeiras demais [e eles erguem mais uma] tremulando pelos rincões de um pouco competitivo Brasil, bombardeado de apontamentos sobre o destravamento da economia nacional. São bandeiras que tremulam sob desacreditados conceitos de representar “realidades”, defender a luta de classes (ricos X pobres), do protecionismo governamental ou emoldurar o levante de empregos diante da “ensandecida” máquina do neoliberalismo. (A TARDE, EDITORIAL, p.A3)

Ora, é neoliberalismo sim a bandeira que o jornal levanta em seus marcos institucionais, deixando-a tremular sob os auspícios de sua direção gerêncial. Eles negam o que afirmam, sob a mentira descarada da união entre ricos e pobres e entre patrões e empregados, sob o apelo de uma suposta união nacional tendo como objetivo maior “reacender a economia”. É pura falácia! A não ser que esse “reacendimento” dessa economia seja como sempre foi: queimando as energias vitais dos/as trabalhadores/as, aumentando a produtividade para que seus patrões fiquem mais ricos, vivam mais tempo, tenham mais tempo, e matem o nosso tempo nas fornalhas que nosso trabalho escravizado por leis severas, mantém acesas. A economia já está livre, mas os/as trabalhadores/as ainda se encontram mais escravizados, e queimando no fogo do inferno das boas intenções neoliberais que o jornal A Tarde publica.

Joselito Manoel de Jesus, Professor e Poeta. Com o apoio de: 

BOBBIO, N.; MATTEUCI, N.; PAQUISNO, G. Dicionário de Política, Vol I.8. ed. Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília, 1995.

EDITORIAL. Estímulo à economia livre. A Tarde, Salvador. Página A3, 6/3/2018.

domingo, 4 de março de 2018

CAPITALISMO CANIBAL

O capitalismo é um sistema econômico que sobrevive do canibalismo. Nele, um ser humano sobrevive de outros seres humanos, produzindo a desumanização, destruindo a natureza e concentrando a riqueza, muito embora diga o contrário. A mais-valia, tão bem identificada por Marx, é a expressão da negação da liberdade do trabalhador, da exploração de suas forças para atividades criativas e de lazer, e do consumo do seu tempo para a família e para outras atividades livres, nas quais possa investir seu tempo da maneira que bem quiser.
Segundo Flávio Rocha (2018), empresário, CEO do grupo Guarapapes que compreende, entre outras, a rede de lojas Riachuelo,
Os países que enriquecem, que são prósperos, são aqueles de economia livre. É inquestionável que existe relação entre as duas coisas: quanto mais livre o país, mais próspero porque não existe outra forma de gerar riqueza se não do talento individual que vem dentro de nós. Estado só destrói riqueza. O indivíduo que cria. O talento individual não é a forma de gerar riqueza, é a única. (ROCHA, 2018, p.B2)
É bastante questionável esta associação estreita e paupérrima, feita pelo empresário, entre as duas coisas. Ele caminha no raciocínio baseado nos princípios liberais e neoliberais, que, entre outras coisas, exige o estado mínimo e defende a iniciativa individual como ele mesmo afirma, como a única forma de gerar a riqueza. Contudo, não admite um dado essencial: a geração de riqueza acontece mais pela organização coletiva e sistemática dos seres humanos em seu conjunto, porque os talentos individuais produzem muito mais juntos, num trabalho conjunto e coletivo, que sozinhos, pois, como canta Beto Guedes, “um mais um é sempre mais que dois”. Outra coisa que Rocha não admite, é que essa riqueza gerada não é distribuída com a igualdade dos esforços individuais dos/as trabalhadores no trabalho conjunto de transformação da natureza. No Capitalismo a injustiça é regulamentada por lei, como se fosse natural, e então ocorre o canibalismo, no qual o empresário, como este senhor que cito acima, se alimenta das forças dos “seus”/“suas” empregados/as, roubando-lhes tempo de vida, de lazer, de estudo e de ócio para viver sua verdadeira liberdade, tomada de assalto por um sistema montado para que poucos seres humanos enriqueçam com a pobreza dos demais.  
A liberdade à qual este “empresário” se refere é a de explorar o trabalho alheio pagando míseros salários que mal sustentam, com a nutrição adequada, seus/suas empregados/as. Outra omissão grave é a histórica. Ele se refere aos “países que enriquecem” como se o enriquecimento dos Estados Unidos, da Inglaterra, da França, da Alemanha e de alguns outros, fosse fruto da conquista do trabalho engenhoso, criativo e árduo dos capitalistas que determinam essa suposta riqueza. Pois eu digo de onde ela vem: vem da exploração dos continentes africano, asiático e americano (da América do Sul) da produção de guerras e milhões de mortes ao longo dos séculos de dominação numa barbárie talvez mais perversa do que a dos antigos bárbaros. Vem da exploração do ouro e de riquezas diversas desses continentes, com a utilização da mão de obra escrava dos seus povos. Foi assim que a Europa Ocidental e os Estados Unidos enriqueceram.

O grande intelectual, Leandro Konder, afirmava com propriedade que
O trabalho não é só liberdade, desenvolvimento econômico e social. Ele também é, sobretudo numa sociedade capitalista, exploração, sofrimento, impotência, castração, por causa da divisão social do trabalho. (KONDER,
Desse modo, o/a trabalhador/a, sempre uma subjetividade gestada em uma coletividade reunida por desafios e interesses comuns, é reduzido/a a “indivíduo”, cujos talentos e esforços são utilizados por um/a empresário/a, não para potencializar as forças e melhorar a qualidade de vida desse “indivíduo”, mas como modo de produzir riqueza para si, tratando este tal “indivíduo” como um mecanismo da grande máquina de moer gente, que pode ser trocado quando estiver doente, quando estiver velho, quando reduzir suas capacidades de gerar riqueza no ritmo determinado por essa engrenagem sistêmica que devora seres humanos. O dono, ou os donos, da Riachuelo estão cada vez mais ricos, mas seus funcionários passageiros, peças descartáveis dessa maquinaria empresarial perversa, cada vez mais explorados, lutando pela sobrevivência, enquanto suas vidas vão sendo consumidas pela engrenagem que o estado sanciona e legitima.
A imagem possível que me vem à cabeça é a de poucos seres humanos se alimentando das energias dos demais, numa espécie de vampirismo universal que atinge todo o planeta. É assim que vejo a produção da riqueza sob as bases do capitalismo: um vampirismo legitimado pelo Estado, que eles/as mesmos criticam. Segundo o empresário
O Brasil está em queda livre em matéria de competitividade. Isso é decorrente do engessamento da economia. As economias prósperas são economias livres com pouca regulação e com estados pequenos”. (ROCHA, 2018, p.B2)
Esses “Estados pequenos” a que se refere o entrevistado do jornal A Tarde, não significa, como afirma Azevedo(2004), “Estado fraco”. Apesar de dizer que o estado atrapalha, na verdade, Rocha (2018) omite que o Estado é o regulador principal das relações entre capital e trabalho, a favor do capital, e, em última instância, a instituição fundamental que legitima o uso da violência contra a organização e luta dos trabalhadores quando revoltados com a exploração desumanizante que constitui o modo de produção do sistema capitalista, através de seu aparato repressor: polícias e exército. Já que a produção e distribuição da riqueza é uma injustiça, é preciso um Estado forte para legitimar o domínio dos capitalistas, para proteger o patrimônio privado e para reprimir toda e qualquer manifestação dos/as trabalhadores/as contra essa injustiça que é a apropriação da riqueza produzida coletivamente nas mãos de poucos. É esse “Estado Mínimo” que garante e oficializa o canibalismo capitalista nacional e internacional na forma de decretos e leis, tais como a recente reforma trabalhista imposta sobre o/a trabalhador/a brasileiro.   
Outra importante questão omitida para produzir um efeito ideológico a favor do capitalismo é a de que o Brasil está em “queda livre” por conta da competitividade baixa do/a sistema produtivo nacional. Para entender isso é preciso examinar a posição do Brasil no comércio internacional, colocado como aquele que oferece matéria-prima e alimentos neste âmbito de relações internacionais. O caso recente das tarifas de importação de aço e alumínio, vendido para os Estados Unidos, feitas por Trump, é exemplar. Vendemos um alumínio com pouco valor agregado a este produto, ou seja: vendemos matéria-prima que, por sua vez, será transformada em lâminas de alumínio que são revendidas aqui por um preço muito mais elevado. Ou seja: nossa produtividade não está associada simplesmente a uma iniciativa individual do/a trabalhador/a brasileiro/a ou de liberdade no mercado nacional para o empresário fazer o que quer e o que lhe “dá na telha” em relação ao que produzir, ao quanto produzir e ao como produzir, mas principalmente, a determinações internacionais que definem os contornos principais das relações comerciais internacionais entre os países.  
Portanto, a prosperidade de uns, a minoria do seres humanos, é consequência da exploração de outros, a maioria dos seres humanos, não fruto do exercício individual das potencialidades humanas tornadas ato. A produção é fruto de um trabalho coletivo, e não individual, e a riqueza daí produzida, e apropriada por uns poucos, não é resultado de uma competição justa, mas de uma injustiça social legitimada por um estado mínimo para a população brasileira e máximo para a defesa dos interesses dos capitalistas. O resto é falácia de burguês, empresário vampiro e controlador do capital financeiro.   

Joselito da Nair, do Zé, da Ana Lucia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel.
Com o apoio de:

AZEVEDO, Janete Maria Lins de. A educação como política pública. 3. ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2004
KONDER, Leandro. O que é dialética. 1. reimpr. São Paulo, SP: Editora Brasiliense, 1995.
ROCHA, FLÁVIO. A liberdade é o caminho para destravar a economia. Salvador: 4/3/2018, A Tarde, p.B2). Entrevista concedida à repórter Ainá Soledá.