quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

NÃO É RECORTE. É ESTRUTURANTE!

A morte violenta de jovens em Salvador não pode ser entendida historicamente nesta frase. Somente se acrescentarmos a palavra negros (as), aí começamos a explicar o fenômeno social, político, econômico e cultural no Brasil e, em especial, na Bahia. O racismo em nosso país, desdobramento perverso do processo de escravatura que aqui enriqueceu essa elite ordinária, expressa a sua lógica em números bem claros, levando-se em consideração inicialmente dados educacionais.

Desses 981.964 estudantes da Rede Estadual de Ensino na Bahia, 312.963 estão no Ensino Fundamental, 596.909 estão no Ensino Médio e 72.092 no Ensino Profissional. A tais dados acrescentem-se os recortes abaixo, por gênero e por cor/raça.

Os pardos estão em primeiro lugar em número de matrículas, não necessariamente de frequência às aulas, vindo em seguida os que não têm identidade racial, os brancos e os negros em seguida. Mas vamos verificando mais dados fornecidos pelo Censo/INEP 2014.


Nos dados acima vamos percebendo o cruzamento de dados que vai refletir na reportagem especial do jornal Correio de hoje, quinta-feira, 18 de dezembro de 2014, páginas 22 e 23 no especial “Tempo Perdido”. Observamos que os homens estudam menos que as mulheres, isso eu percebo nas salas de aula que frequento, do Ensino Fundamental ao Doutorado. Como vimos no gráfico acima no Ensino Fundamental tudo bem. A lei obriga as famílias a colocar seus filhos e suas filhas na escola e, associado ao Programa Social Bolsa-Família, há um resultado muito bom de acesso e frequência à instituição escolar.

Contudo, à medida que avança o nível de ensino as mulheres brancas e os homens brancos vão sendo a maioria dos estudantes. Mesmo no Ensino Médio o número de homens brancos já é maior que o de mulheres negras, delineando-se uma situação que irá piorar no Ensino Superior, com apenas 10,9 % das mulheres negras e 7,4 % dos homens negros ou pardos neste nível de ensino. Ora, ao olharmos novamente para o número de matriculados na Bahia, de um total de 3.767.970 estudantes, com 1.632.145 de pardos e 291.928 de negros, o que juntos dá um total de 1.924.073 estudantes pardos e negros e a maioria dessas crianças e jovens vão sendo excluídos do sistema de ensino baiano até que, somente poucos deles e delas consigam acesso ao ensino superior, um importante indicador nos dias de hoje para alguma esperança de ascensão social e econômica.

Entre pedras e passarinhos.

Misturando os renomados poetas Mário Quintana com Carlos Drummond de Andrade, perguntaria: que pedras são essas que atravancam o caminho desses e dessas jovens pardos (as) e negros (as)? Segundo o jornal Correio, página 3, de hoje, numa reportagem de Naiana Ribeiro e Agências, sobre a queda da taxa de fecundidade das mulheres baianas e brasileiras

O índice dos chamados “nem-nem” – geração de jovens entre 15 e 29 anos que nem estudam nem trabalham – é de 20,3% no Brasil, já no Nordeste vai para 35,2%; na Bahia os “nem-nem” são 23,9% e na Região Metropolitana de Salvador (RMS) 21,6%, diz Joilson. O funcionário do IBGE observa que esse fenômeno acontece em todos os estratos sociais. “É uma figura que, tendo uma formação básica ou até mesmo superior, não conseguiu encontrar as atividades profissionais desejadas. Entre as pessoas de classes sociais mais baixas, tem a ver com a baixa qualificação e exclusão da atividade de trabalho. Entre as mulheres, que são 69% dos “nem-nem”, tem a ver com atividade doméstica, por terem filhos, explica. (RIBEIRO, p.3, 2014)

Os “nem-nem” negros e pardos e mulheres negras vão deixando de frequentar as escolas, deixando de perceber a educação como caminho viável para a conquista de uma vida digna. Eles e elas em sua maioria vão abandonando a escola no Ensino Médio e vão para onde mesmo? Reportagem supracitada do Correio, feita por Alexandre Lyrio e Edvan Lessa – p.22 e 23 – nos ajuda a responder boa parte dela.
Há algo estruturante socialmente que está na raiz da produção desse fenômeno, que não pode ser compreendido apenas por um recorte de cor/raça, de gênero, nem mesmo de classe. E esse “algo estruturante” tem um nome bem específico: racismo institucional. Esta praga ideológica, alimentada pelas brasas vivas da escravidão e do modo como ela ocorreu no Brasil, produz efeitos perversos sobre milhões de jovens que não conseguem oportunidades e possibilidades de prosseguir suas vidas adiante. E a maioria esmagadora desses jovens, como bem o demonstram os gráficos acima elaborados pelos jornalistas do Correio, são negros (as). Somente este ano em Salvador foram 115 adolescentes, prestem bem atenção: adolescentes! Assassinados na capital da Bahia.

Da minha geração foram vários conhecidos, jovens ou ainda adolescendo, que desapareceram pela violência crescente que nos cerca. O racismo institucional não está apenas na polícia baiana. Está na escola, está nas igrejas, nas famílias, nas universidades, nos hospitais e postos de saúde. A polícia é violenta porque temos uma sociedade igualmente violenta que legitima as execuções. A ideologia perversa que legitima a morte de milhares de jovens e adolescentes negros por ano, é retroalimentada, atualizada e aperfeiçoada em muitos espaços institucionais, produzindo cadáveres e sofrimentos daqueles que deveriam ser orientados amorosamente por nós para ocupar a nossa história no mais alto grau de dignidade.

Este texto, fala pra mim também. Perguntando-me sobre o meu modo sutil e muitas vezes inconsciente, de participar desse processo de negação do outro por conta da cor de sua pele, de sua raça, de sua identificação. Se a gente não se dispuser a perceber como estamos enredados nessa trama macabra, jamais conseguiremos superar esse fenômeno que nos nega ao negar o outro, julgando-o e encaminhando sua execução para a naturalidade de nosso cotidiano. Por isso meu caro licenciando, minha cara licencianda, que agora está adentrando o sistema de ensino baiano. Pense neste fenômeno com cuidado e examine os seus passos em sala de aula, a fim de combater o racismo institucional. Ele, de fato, como afirmou Fátima, mulher negra comprometida com as causas raciais e de gênero, não é recorte. É estruturante! 



Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel com o auxílio de

LYRIO, Alexandre; LESSA, Edvan. Sangue amargo: Adolescentes são mortos mais que matam. Correio. Caderno MAIS, Especial Tempo Perdido. Salvador, quinta-feira, 18/12/2014, p.22-23.

RIBEIRO,  Naiana e Agências. Menos Mães. Correio. Salvador, quinta-feira, 18/12/2014, p.3.