segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Política e vida cotidiana

Segundo Aristóteles o ser humano é um animal político. Por isso este filósofo, que tem mais de 2000 mil anos, é denominado “jusnaturalista”. Significa que não há uma ruptura entre a natureza e a sociedade civil, pois é da natureza humana ser político. E ele afirma isso baseado no seguinte princípio basilar:  Sem política não há humanidade. A ontologia humana é política, pois a gestação do ser humano, após o seu nascimento, é feita num ambiente político, social e cultural, não podendo ser de outro modo. 
De modo muito claro entende-se a razão de ser o homem um animal sociável em grau mais alto do que as abelhas e os outros animais todos que vivem reunidos. A natureza, afirmamos, nenhuma coisa realiza em vão. Somente o homem, entre todos os animais, possui o dom da palavra; a voz indica dor e o prazer, e por essa razão que ela foi outorgada aos outros animais. Eles chegam a sentir sensações de dor e de prazer, e fazerem-se entender entre si. A palavra, contudo, tem a finalidade de fazer entender o que é útil ou prejudicial e, consequentemente, o que é justo e o injusto. O que, especificamente, diferencia o homem é que ele sabe distinguir o bem do mal, o justo do que não o é, e assim todos os sentimentos dessa ordem cuja comunicação forma exatamente a família do Estado. (ARISTÓTELES, 2002, Livro primeiro, Capítulo I, § 10, p. 14).
O poder é inerente ao ser humano. Está, como afirma Aristóteles, em sua relativa capacidade de decisão. É nesta capacidade de escolha, de opção e de posicionamento perante o mundo, que o ser humano, por ser humano, torna-se um ser político. Toda relação social é uma relação de poder. Relação pais/filhos, patrão/empregado, homem/mulher, marido/esposa, heterossexual/homossexual, negros/indígenas/brancos, padres/freiras/fiéis, evangélicos/candomblezeiros/católicos/ateus, professores/alunos, e todas as demais relações estabelecidas entre dois ou mais seres humanos. O convívio social obriga-nos a decidir sobre o modo como se dará esse convívio. Quem fica aqui, quem fica lá? Quem dorme em cima e quem dorme embaixo do beliche? Quem ganha isto, quem ganha aquilo? Quem perde tudo? Quem tem acesso a isto quem tem acesso àquilo, são decisões que têm de ser pautadas em critérios mas, nem por isso, deixa todos satisfeitos. Um dos critérios de arrumar o convívio social baseia-se no modo de produção econômica da sociedade contemporânea e é denominado de “Capitalismo”. Outro critério se chama socialismo, outro comunismo; outro, preconceito. E assim cada grupo social, cada sociedade organiza o espaço e o tempo e distribui o trabalho, a renda, o lazer, a educação e os bens culturais, a tecnologia e o acesso à saúde, de acordo com critérios diferentes, sendo critérios hegemônicos na atual sociedade brasileira, o do capitalismo e o do preconceito.

Algumas pessoas, erroneamente, veem o poder e a política como algo ruim e terrível, de caráter apenas maquiavélico, caracterizando um maniqueísmo pretensiosamente inocente, como se dissessem a si mesmas: "- Nós, “os puros”, que não fazemos política e abrimos mão do poder, estamos a salvo desse “pecado grave” da humanidade e podemos discutir livremente nossas trivialidades cotidianas." Entretanto, o poder existe e precisa existir entre os seres humanos, como uma necessidade do próprio convívio social e cultural. Ser político e exercer poder é decidir. Não apenas o voto, mas toda a nossa vida. Decidir para onde ir, o que comer, o que falar, o que escrever, a que horas dormir, a que horas acordar, o momento do silêncio, etc. Decidir posicionar-se a favor ou contra algo; argumentar, defender os nossos interesses pessoais e coletivos.

A forma como criamos nossos filhos e nossas filhas é uma questão de poder e um posicionamento político e ideológico; o modo como tratamos nossas mulheres constitui uma relação de poder, muitas vezes perversa; a forma como lidamos com nossos amigos exige posicionamentos ideológicos e de poder. O currículo escolar é uma decisão de poder, pois alguém decide sobre o que os educandos vão aprender e deixar de aprender. Quem conhece a história da China aí? Quem conhece a história de libertação da América do Sul dos espanhóis e o papel do General San Martin e do seu Ejército de Los Andes nesse processo? Quem, da minha idade, 41 anos, conhece a história da África e dos Africanos e dos indígenas? Pois é: precisou haver luta política de grupos organizados da sociedade civil para que tal conhecimento se tornasse conteúdo escolar, expresso na Lei N.º 10.639/03, regulamentada pela Lei N.º 11.645, de 2008 que exige a obrigatoriedade do estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena. Toda Lei é uma decisão política, um exercício de poder. O Futebol é uma política no Brasil. Há decisões, cartolagens, muitas relações de poder, inclusive de jogadores de futebol que se acham o “rei da cocada preta” e decidem ofender a quem quer que contrarie as suas vaidades em detrimento da coletividade. 

A cultura, a razão e sua ciência também estão terrivelmente implicadas em relações de poder, produzindo fenômenos políticos que levam a tomadas de decisões perigosas e maléficas para as populações rejeitadas pelo discurso da razão antropocêntrica. É, como afirma Fontanella:

A educação e a cultura nos dividem desde o nosso nascimento. Somos educados na duplicidade da realidade – eu e o mundo; na duplicidade da convivência – eu e os outros; na duplicidade da pessoa – eu e o meu corpo. Desde que o homem se dividiu foi preciso justificar a divisão. Então, a razão concluiu que uma parte tinha que dominar a outra. Assim, concluiu que o espírito tinha que dominar o corpo; a razão tinha que dominar os sentidos; os brancos tinham que dominar os outros; os letrados tinham que dominar os iletrados; os cultos tinham que dominar os incultos; os detentores do conhecimento têm que dominar os ignorantes; os civilizados têm que dominar os primitivos; os desenvolvidos têm que dominar os não desenvolvidos. (FONTANELLA, 1995, p. 129-130)
Entretanto, o poder pode e deve ser calibrado, com organização e luta, para servir aos interesses de todos, assim como pode ser usado para o interesse de poucos. Podemos fazer uma simples mas útil ilustração para explicar isso:

AUTORITARISMO_______________________________ LICENCIOSIDADE

(PODE NADA) ________________________________ (PODE TUDO)

DITA DURA _________________________________ DITA MOLE

        DEMOCRACIA
     DIÁLOGO

 Nem o “pode nada” do autoritarismo, nem o “pode tudo” da licenciosidade, afirma o Mestre Paulo Freire. Ah, quem dera sempre tivéssemos esta compreensão permanente para podermos criar nossos filhos e nossas filhas com certo equilíbrio! O poder, exercido democraticamente, deve servir a todos, embora não seja do agrado de todos. Cada vez mais percebo a maturidade política de um povo, incluo-me nele, que vai aprendendo que, se quisermos fortalecer nossa democracia, o voto é um passo, importantíssimo, embora não seja suficiente. Quando eu voto, sinto que decidi sobre algo e que, embora minha pequena decisão possa ser, do ponto de vista individual, irrelevante, do ponto de vista coletivo tem uma extrema importância nos rumos que meu país vai tomar nos próximos anos, tanto na área de educação, quanto na área de saúde, habitação, energia, segurança, lazer, futebol, arte, artesanato, culinária, cama, mesa e banho, pois a gestão pública dos recursos hídricos, por exemplo, tem conseqüências diretas no chuveiro da minha casa e de sua casa também.

Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel. Com o auxílio de:
FONTANELLA, Francisco Cock. O corpo no limiar da subjetividade. Piracicaba, SP: edit. Unimep, 1995. 

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

TORRADAS QUEIMADAS

Quando eu ainda era um menino, ocasionalmente, minha mãe gostava de fazer um lanche, tipo café da manhã, na hora do jantar. E eu me lembro especialmente de uma noite, quando ela fez um lanche desses, depois de um dia de trabalho, muito duro.
Naquela noite longínqua, minha mãe pôs um prato de ovos, linguiça e torradas bastante queimadas, defronte ao meu pai. Eu me lembro de ter esperado um pouco, para ver se alguém notava o fato. Tudo o que meu pai fez, foi pegar a sua torrada, sorrir para minha mãe e me perguntar como tinha sido o meu dia, na escola.
Eu não me lembro do que respondi, mas me lembro de ter olhado para ele lambuzando a torrada com manteiga e geléia e engolindo cada bocado.

Quando eu deixei a mesa naquela noite, ouvi minha mãe se desculpando por haver queimado a torrada. E eu nunca esquecerei o que ele disse:
" - Amor, eu adorei a torrada queimada... só porque veio de suas mãos"
Mais tarde, naquela noite, quando fui dar um beijo de boa noite em meu pai, eu lhe perguntei se ele tinha realmente gostado da torrada queimada.
Ele me envolveu em seus braços e me disse:
" - Companheiro, sua mãe teve um dia de trabalho muito pesado e estava realmente cansada... Além disso, uma torrada queimada não faz mal a ninguém.
A vida é cheia de imperfeições e as pessoas não são perfeitas. E eu também não sou o melhor marido, empregado, ou cozinheiro, talvez nem o melhor pai, mesmo que tente todos os dias!"

O que tenho aprendido através dos anos é que saber aceitar as falhas alheias, escolhendo relevar as diferenças entre uns e outros, é uma das chaves mais importantes para criar relacionamentos saudáveis e duradouros. Desde que eu e sua mãe nos unimos, aprendemos, os dois, a suprir um as falhas do outro. Eu sei cozinhar muito pouco, mas aprendi a deixar uma panela de alumínio brilhando, ela não sabe usar a furadeira, mas após minhas reformas, ela faz tudo ficar cheiroso, de tão limpo. Eu não sei fazer uma lasanha de frios como ela, mas ela não sabe assar uma carne como eu. Eu nunca soube fazer você dormir, mas comigo você tomava banho rápido, sem reclamar e brincávamos juntos durante este tempinho, com sua mãe você chorava, pelo shampoo, pelo pentiar, etc

A soma de nós dois monta o mundo que você recebeu e que te apoia, eu e ela nos completamos. Nossa família deve aproveitar este nosso universo enquanto temos os dois presentes. Não que mais tarde, o dia que um partir, este mundo vá desmoronar, não vai, novamente teremos que aprender e nos adaptar para fazer o melhor.

De fato, poderíamos estender esta lição para qualquer tipo de relacionamento: entre marido e mulher, pais e filhos, irmãos, colegas e com amigos. Então filho, se esforce para ser sempre tolerante, principalmente com quem dedica o precioso tempo da vida, à você e ao próximo. Que penso, o grande problema do mundo atual e globalizado, é a intolerância pelo ser e o correr incansável pelo ter! Não ponha a chave de sua felicidade no bolso de outra pessoa, mas no seu próprio. Veja pelos olhos de Deus e sinta pelo coração dele; você apreciará o calor de cada alma, incluindo a sua. As pessoas sempre se esquecerão do que você lhes fez, ou do que lhes disse. Mas nunca esquecerão o modo pelo qual você as fez se sentir.
 
Autor por mim desconhecido

terça-feira, 12 de outubro de 2010

CALAFATE, CHUVA E MAR

Nos dias de chuva o convite estava feito. As águas barrentas traziam mensagens do povo mal educado: garrafas de Q’Boa, vasilhames de margarina, garrafas plásticas.Tudo o que vinha era barco, tudo o que vinha ia abaixo e a gente menino atrás, perseguindo os objetos escolhidos para nos representar naquelo duelo naval singular de menino da periferia de Salvador. Íamos até onde o esgoto esparramava na rua principal do Calafate. Lá, nossos “barcos” ancoravam em algum obstáculo ou se perdiam em alguma “boca de lobo”, mergulhando para sempre naquelas cavernas insondáveis. Voltávamos para a rua de cima para escolher novas “embarcações” e reiniciar nova batalha naval, até a voz estraga-prazeres dos capitães e das capitães nos convocarem para outra realidade: Menino, venha tomar banho pra ir pra escola! Você vai pegar um troço nesse esgoto!

Além de piratas e corsários éramos caminhoneiros de um pneu só. Furado, por sinal. Mas rodávamos assim mesmo o bairro quase inteiro, pois os meninos da “Rua do Bode” funcionavam como policiais rodoviários federais agressivos. Com dois tocos de pau, o volante e a nau, navegávamos nas nossas inesquecíveis chuvas, dobrando a curva do tempo sem querer saber de relógio e do registro autoritário das horas que a modernidade e o capitalismo inventaram para controlar nossos corpos e nossas felicidades pequenas e eternas. Éramos piratas, capitães de areia e de lama; prendíamos bandidos terríveis, namorávamos sereias, pilhávamos navios da Coroa Inglesa hasteando nossa bandeira caveira de dois ossos; Salvávamos baleias encalhadas nas costas de litorais da América e libertávamos cativos das mãos de tiranos do mundo inteiro; resgatávamos amigos presos por canibais vorazes dos atóis do Pacífico – claro que, para chegar a saber o que eram atóis e onde ficava o Oceano Pacífico havia um debate e uma longa pesquisa na casa de nossos pais. O “Outro Social” privilegiado daquela época não era a internet. Tempo e espaço se misturavam na imaginação menina dos meninos de lama do Calafate.

A chuva era enfim um mundo à parte, onde éramos destemidos meninos, navegadores do imenso mundo que nos rodeava. Nós éramos mundo, universo, que se chamava Calafate. Aquelas enxurradas traziam o mundo que nos rodeava e exigia a criação de novos mundos e nós, imundos, ali por inteiro. Tudo o que boiava poderia ser um de nós no tobogã das correntes de águas imundas que naquela época não eram tão perigosas como hoje. Binho, Valter (Lobo), Cacau, Fernando, Ecinho (meu irmão), Júlio, Bertinho, Joilson, “Ovo”, entre outros meninos, compunham o espaço lúdico onde dávamos sentido e significado. As vezes, melhor, muitas vezes, apareciam umas “perebas” em nosso corpo, como tatuagens que marcavam nossas odisséias, mas depois nosso corpo tratava de impor-se perante aquelas bactérias oportunas. Acredito que nenhum daqueles meninos invencíveis tenha problema de doenças graves causadas por bactérias. Nossos corpos tem anticorpos para dar e vender.

Além do curso “natural” das enxurradas, devido à topografia local, ainda criávamos obstáculos, trilhas aquáticas, mini cachoeiras, diques e lagoas artificiais – um pouco menor que o Lago Paranoá – que ilustravam e dinamizavam nossas batalhas, em torno das quais havia verdadeiros colóquios, que nos animava a criar e projetar novas formas de potencializar nossas batalhas navais, pois criança cria. Nesses momentos éramos todo oceano. O mar era nossa inspiração, nosso destino, nossa missão. Ilustrando nosso mundo peculiar estavam Aquamen, Namor (o Príncipe Submarino), o navio de pesquisa Calipso acompanhado, é claro, de Godzila. Tinha também Mobdick (“A Grande Baleia Branca”), além de outros heróis dos desenhos de TV e de revistas, cujo acesso era raro, mas marcante, que inspiravam nossa imaginação poderosa no combate aos males marinos e submarinos.


Daí que aprender a nadar foi um pulo. Quer dizer, para mim foram muitos sustos, cansaços e água salgada na garganta. Jorge, meu irmão mais velho, era a encarnação de nossos heróis submarinos. Ele sabia nadar como um peixe, tinha fôlego de gato e parecia mesmo ter barbatanas nos pés. Jorge era nosso “Aquamen Dórea de Jesus”. Quando íamos à praia de Boa Viagem, em Salvador, ficávamos a admirar aquele sujeito ultrapassando o perigoso limite das pedras. Para nós, ir até as pedras já era um desafio que só venceríamos no verão seguinte, imagine então quão não era o nosso espanto ao ver nosso “Aquamen Sênior” romper a barreira do impossível? Jorge era nosso referencial supremo em se tratando de coisas aquáticas. Eu e Ecinho, irmãos dele, tivemos o privilégio de aprender a nadar primeiro, com sua assessoria impecável. Ecinho aprendeu mais rápida e eficientemente que eu, acompanhando Jorge até as pedras, onde eles subiam e descansavam. Ecinho aproveitava muito bem esses momentos, tirando sarro da minha cara e dos demais colegas de sufoco marítimo. Eu morria de inveja de Ecinho. Ficava com raiva daquele menino-irmão mais novo, descansando sobre aquele marco de vitória e derrota: as pedras, que pareciam longínquas para minhas braçadas tímidas e defeituosas. Qual era o segredo de Ecinho? Como ele aprendeu tão rapidamente aquela habilidade suprema de ficar acima das águas salgadas da praia de Boa Viagem? Qual o segredo do corpo que aprende? Até hoje eu me pergunto. Só Aquamen ou Namor podem responder. Ou apenas Deus. E quando tinha alguma menina que morava lá no bairro aí era que a humilhação ficava maior, porque Ecinho aproveitava sua larga vantagem e desfilava no palco das águas salgadas rumo ao pódio das pedras, onde se erguia tal qual um gigante ante nossa presença humilde e "insignificante”. Como naquele tempo eu não dispunha dos recursos da retórica, que ajudam a minimizar os impactos de uma derrota, era obrigado a reconhecer que o “inimigo” estava bem mais preparado e que não podia enfrentá-lo em seus domínios. E o pior: Ecinho não aceitava tréguas. Durante um tempo incontável, todo um verão, ele reinou soberano frente a nós. Quando Binho ia, o que era raro, ainda havia alguma disputa acirrada, pois Binho, sendo do interior da Bahia, Conceição de Jacuípe, ou melhor, Berimbau, aprendera a nadar em rio, antes de vir para Salvador. Mas nos demais domingos, era Ecinho, o “Rei da Praia”

A Boa Viagem foi, durante toda uma parte de nossa infância e adolescência, um campo empírico importante de formação da nossa personalidade. Tinha, por exemplo, o desafio do “Buraco da Sereia”, uma passagem que havia no meio de uma pedra. A distância não era grande, mas, para os iniciantes, eram “2000 Léguas Submarinas”. Mitos eram criados pelos meninos mais experientes para amendrontar-nos. Alguns diziam que ali havia morrido alguns meninos e que suas almas rondavam o buraco em busca de salvação. Outros diziam que as sereias, servas de Iemanjá, se aproximavam do buraco na pedra para pegar os presentes de sua Senhora e assustar os moleques que ousavam furtar os seus valiosos presentes, enviados pelos fiéis no dia 02 de fevereiro. E assim tínhamos que enfrentar mitos e lendas, além de saber a hora certa de cair na água, um pouquinho antes da onda enchê-lo, pois quando a onda estivesse voltando, a gente realmente poderia ficar preso na pedra ou, no mínimo, sair todo arranhado, como aconteceu comigo algumas vezes. Outro desafio importante era o Farol do Humaitá, onde só os “miseravãos” se arriscavam a pular do lugar onde ficava a lanterna do farol. O máximo que eu consegui pular foi de cima da porta do farol. Eu era um “miseravinho”, um tipo médio entre os contendores. Só que entre os demais, agora rapazes, da minha rua, eu me sobressaia nos saltos sobre a água, devido mesmo à minha paixão por altura, que eu descobri enquanto pulava dos muitos pontos de iniciação dos adolescentes de periferia, é claro. Daniel, filho de Dona Bao, era outro que pulava de qualquer lugar de onde eu pulasse. Ele e Evando, de Dona Edite, foram os dois caras mais corajosos da minha rua e de muitas outras ruas desse Brasil. Aparentemente nada temiam. Daniel não sabia pular, sempre caia “de barriga”, ele apenas não queria ser sobrepujado por qualquer desafiante que fosse. Se eu pulasse do Empire States, lá dos EUA, ele também pularia, acredito. Antes morto que derrotado, essa era, ou é, sua filosofia de vida/morte.

Parte de nossas almas foi constituída na Península Itapagipana. Faz um tempão que não apareço por lá. Quando fui lá me senti estranho. Os saltos foram proibidos pelo poder público, o farol foi isolado, o píer foi fechado e os meninos de hoje encontram apenas uma fresta para saltar, mesmo assim sob os olhos atentos e ameaçadores dos vigias. Meu/nosso tempo foi sendo privado, meu espaço de subjetividade foi sendo reduzido, trancafiado. Agora escrevendo, minha alma vai desfiando os fios da minha história naquele lugar dentro/fora de mim/nós. Fios se estendem do Calafate, perpassando-me, atravessando-me, ligando-me àquela Península, cujos contornos delineiam-se em minha pessoa. Descubro-me muitos: ondas, marés, pedras, conchas, areias, ventos, saltos, mergulhos, meninos-adolescentes da minha rua (Fernando, Binho, Cacau, Amigo, Buzigo, Manuel, Ecinho, Valter, Jorge etc) e dos demais bairros da periferia de Salvador. É como se não houvesse diferença entre mim, as coisas e as demais pessoas daquele cenário. Como se tudo fosse uma mesma coisa, dentro de infinitas coisas em sentidos que delineamos e, por isso, estamos de acordo porque somos um fio da grande rede que é a vida em sua continuidade. Somos construídos pelos contextos vividos e construímos significados que nos escapam e que voltam para nós, construindo-nos dialeticamente.

Hoje em dia já não existem mais enxurradas como antigamente. Quase tudo já foi asfaltado. Com a nossa luta no movimento popular, através da Associação de Moradores Batalhadores do Calafate, conseguimos saneamento e asfaltamento para a nossa rua. Mal sabia que estava, ao mesmo tempo, e num mesmo movimento, enterrando parte de minha alma, que é também de lama e enxurradas. Quando hoje passo que vejo a água que corre sobre o asfalto em dias de chuva, ainda ouço o grito dos meninos nas pedras banhadas de espumas salgadas, cortadas pelo vento da Boa Viagem. Uma alegria discreta e profunda me escapa quando lembro que foi Jorge, meu irmão, o mestre que me/nos ensinou o milagre de “andar sobre as águas”, onde fui tecendo minha subjetividade em permanente interação com os outros meninos da periferia que, historicamente, são sangue do meu sangue. 

Mas os pés se lembram de antigos passos. Cada visão de um ângulo, cada touceira de beldroega ou capim, uma folha, o terminal do córrego emendando-se ao mar, cada ave, cada som isolado do vento e das ondas está ligado a uma emoção, corresponde a um gesto e de gestos na solidão de ilhas foi transcorrida sua vida, a ela retornando agora. (Moacir C. Lopes, A Ostra e o Vento, 1974)


Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel


segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Hipocrisia Política Eleitoral Gratuita

Embora eu seja a favor da alternância do poder político, creio que nesse momento a volta do PSDB ao poder central irá representar um grande retrocesso, principalmente para nós, nordestinos. Muitas pessoas pensam que quando a gente vota em Serra está apenas votando em Serra. Quando se vota em Serra está se votando num grupo político e em uma tendência administrativa desse grupo. Pergunto: quem elege o Ministro da Economia? Quem elege o Ministro da Cultura? Quem elege o Ministro da Educação, Saúde, Meio Ambiente, entre outros? Rum. Não é o Serra que elege. É um conjunto de forças políticas e de fatores que barganham e fatiam o poder em troca de apoio. Detesto esse personalismo regado a falso maniqueísmo na propaganda política. O mito do super homem (Serra) versus o mito da mulher maravilha (Dilma) novamente. Pura farsa. É como diz Jorge Luiz Borges: "A realidade é mais incrível que a ficção."

Excelente o texto do padre que denuncia essa hipocrisia através do aborto que continua vida adentro dos mais pobres. O aborto, deve ficar claro, não é só impedir o nascimento de uma criança. Para mim o aborto é impedir que uma criança tenha acesso aos bens produzidos coletivamente pela sociedade que, pelo seu cunho capitalista brasileiro, nega-lhe direitos fundamentais. A morte da menina Larissa por negligência médica no hospital Roberto Santos, é mais um de tantos abortos que são cometidos todos os dias pela ausência de justiça, de políticas públicas e assistência social que assegurem educação e saúde de qualidade, a começar pela alfabetização e pela construção crítica de valores e princípios humanos fundamentais. Nos países que respeitam a cultura os escritores, pesquisadores e educadores são valorizados. Aqui são os policiais, juízes, advogados (tidos como doutores sem ter doutorado) que são mais valorizados, profissionais que não hesitam em puxar uma arma e atirar, independente de quem seja o oponente. Quase todos os cidadãos brasileiros são criminosos perante a lei diante de um sujeito fardado ou portador de uma carteirinha de representante da "justiça". Ainda bem que a coisa está se voltando contra os juízes, tomara que chegue aos políticos, aí haverá uma “comoção geral” em defesa da vida (de algumas vidas privilegiadas) e a mudança da legislação penal. O policial não é um protetor. Está subentendido em nosso contexto autoritário e hipócrita que policial é feito para matar. Matar, matar, matar. As próprias crianças e os jovens das periferias, afirmam que quando crescerem querem ser policiais “para matar ladrão”. A cultura do assassinato é gestada no ventre da sociedade e se volta contra os setores mais frágeis da população. Mas agora juízes, desembargadores e políticos: está chegando a vez de vocês provarem do gosto da sociedade hipócrita e homicida que vocês mesmos legitimam com suas leis frouxas e sua justiça de araque. Qual o assassino fardado que já foi punido pelas suas leis?

Hipócritas!!! Bispos, padres, cardeais, pastores, católicos, evangélicos, espíritas, políticos oportunistas! Garantam e defendam o nascimento, mas garantam que a criança que nascerá vai ter acesso à saúde e que as "doutoras" e "doutores" senhoras e senhores do poder dos hospitais públicos de Salvador, Bahia, Brasil, tratarão a criança com o respeito e a urgência que ela merece; garantam educação de qualidade, com professores bem pagos e competentes; garantam pelo menos um quarto e um berço para a criança dormir tranquila no seio de sua família; garantam parques infantis públicos para as crianças brincarem com segurança e higiene; garantam que os pais dessa criança tenham acesso a uma formação profissional eficiente e eficaz; garantam acesso à justiça. Não deixem a criança nascer no inferno brasileiro que vocês criam todos os dias com sua negligência sistemática a fim de excluir as crianças invisíveis abortadas pela nossa história autoritária e preconceituosa e pela nossa cultura do aborto social!!!

Eu voto em Dilma contra a hipocrisia das igrejas, contra a sacanagem dos tucanos e contra essa sociedade doentia que celebra a morte em suas pequenas e repetitivas ações cotidianas!!!!

Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel



Riqueza de Zé’s à Beira-Esgoto

Foi neste sábado passado, dia 09 de outubro. Como de costume, todas as manhãs de sexta, sábado e domingo, quando estou em Jacobina, vou à barraca de Flávio ler jornal, tomar água de côco – pois a cerveja está me provocando uma dor de cabeça recorrente – e bater papo com amigos. Encontrei Zé e Zé Popô. Conversamos naturalmente sobre as eleições, sobre o destacado papel do Nordeste nesse processo, os possíveis desdobramentos para cada um de nós do resultado temeroso do dia 31 entre outras coisas de extrema importância, como a subida do Bahia para a série A e a possível descida do Vitória para a série B. Neste assunto eu melindro. Caso meu Vitorinha caia e o Bahêa suba, sei que será festa em Salvador e serei obrigado a mudar de endereço, refugiando-me na terrinha jacobinense, que acolhe os desamparados e oprimidos.

O vento soprava forte naquela manhã, tornando a leitura do jornal uma verdadeira arte de equilíbrio de páginas. De repente surgiu, não sei como, pois uma conversa puxa a outra, de Zé Popô e de Zé, o assunto pobreza e riqueza. A conversa era exclusiva de Zé’s. Eu, Joselito (Zé Pequeno), Zé (que em relação a mulheres de bom gosto trabalha com lista de espera) e Zé Popô. Só faltou Zé Mané, que sempre chega atrasado, pois sua presença na barraquinha de Flávio depende da autorização da senhora sua esposa. Bem, o fato é que concluímos que, naquele exato momento, naquele instante precioso de ventania à beira-esgoto – gostaria tanto de dizer Beira-Rio – éramos ricos! Sim. Tínhamos tudo que muita gente gostaria de ter, inclusive os endinheirados. Tínhamos paz, vento, jornal do dia, cadeira, sombra e água de coco. A paisagem de montanhas nos cercando, com o Cruzeiro nos abençoando, formava o cenário perfeito daquela manhã azulada. Éramos ricos!!! E assim sorrimos a cumplicidade daquele momento que Deus nos ofereceu gratuitamente, apesar dos pecados de cada Zé que ali se encontrava.

E é bem verdade isso. Somos ricos, cada um de nós, sendo Zé ou não. Em outro texto publicado neste espaço, reafirmei essa verdade com um trecho de uma música que assim ensina: “Felicidade é uma cidade pequenina, é uma casinha, uma colina, qualquer lugar que se ilumina quando a gente quer amar.” Gosto de sentar naquela cadeira à beira-esgoto e, compartilhando do odor leve que dele exala, ler meu jornal, encontrar ex-alunos, fazer novas amizades, olhar a paisagem enquanto sorvo uma cerveja gelada ou uma água de coco gentilmente trazida por Flávio. Encontro os parceiros de galhofa e exercemos a palavra encantada que nos aproxima dos dilemas contemporâneos do jeito que a nossa cultura nos ensina. Nós brasileiros aprendemos a enfrentar nossos problemas sorrindo para eles. E é assim que fazemos. Sorrimos das desgracenças do mundo enquanto vivemos nossas pequenas e fugazes felicidades que dão sentido, como diria Zé, "à nossa insubstituível e prestigiosa presença".

Concluímos que, naquele exato momento, não precisávamos de nada material. Não queríamos ficar ricos, pois já éramos de fato. Aquela manhã soprando ventos, cercada de montanhas ensolaradas afirmava isso de forma cabal, segredando mistérios em nosso sentir habitado de significados que só o silêncio acolhe. É possível afirmar que a riqueza do ser humano são seus dias bem vividos, independente do seu poder de compra. Creio mesmo que é a vontade de ter o que não podemos que constitui a raiz de muitas infelicidades e verdadeiras pobrezas d'alma.

Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

ELEIÇÕES 2000 E SEMPRE

Acredito que todas as críticas feitas aos governos “x” e “y” são válidas e se complementam. Creio que o que devemos combater é a corrupção que está arraigada na cultura política brasileira, independente de quem a gente apóie. O governo Lula, como a maioria sabe, foi envolvido em casos e mais casos de corrupção, embora seu mandatário maior tenha fingido não ver nada. “O Presidente da República, travestido em chefe de facção, deveria olhar para os desmandos que transformaram a Casa Civil num balcão de negócios. Mas não é o que o presidente faz. Ao contrário. Num exercício crível de leniência, o presidente abraça os corruptos e ataca os que denunciam a corrupção”, afirma Carlos Alberto Di Franco no Jornal A Tarde desta segunda-feira, 04 de outubro de 2010.

De fato, a imprensa, que Zezéu irritado, ontem na TVE, acusou de ser a oposição ao Governo Lula, não inventou as negociações escusas envolvendo Erenice Guerra e seus familiares que, seguindo a cultura política brasileira, utilizou o aparelho do Estado, bem nacional, em benefício próprio, entre tantos outros casos como o dinheiro na cueca e a compra dos mensaleiros do Congresso Nacional, Câmara de Deputados. E mais uma vez: que bom que ainda existe oposição neste país! Esta eleição é uma boa lição para aqueles que ainda acham que a aprovação popular de um governo é a permissão para a permissividade que se transforma em porta aberta para a corrupção. Meu voto em Marina não foi em vão. Pela primeira vez na história deste eleitor não votei no PT, pois percebo que o Brasil precisa de uma opção política limpa, tanto no sentido ecológico, quanto no sentido ético. Além do mais, embora a economia brasileira esteja crescendo e ainda vá crescer mais, por conta da boa administração econômica do Governo Lula – seguindo as diretrizes do Governo FHC, e de fatores externos e internos, precisamos reduzir a divída interna que, segundo o mesmo jornal A Tarde desta segunda, “bateu em R$ 1,62 trilhão”, além do fantasma permanente de uma nova crise econômica mundial que pode mudar o cenário atual completamente, deteriorando todo processo conquistado a duras penas.  

Entretanto, Zezéu e outros petistas podem ter razão em uma coisa: a mesma imprensa – Globo, Veja, Folha de São Paulo – que denuncia com fartura os casos escabrosos da Casa Civil, não teve o mesmo ímpeto para denunciar, da mesma forma, as corrupções do Governo FHC, como a compra de votos para a reeleição e a ampliação do mandato de Fernando Henrique Cardoso. Além disto, nenhuma proposta de CPI tem êxito na Assembléia Legislativa de São Paulo, comandada pelo PSDB, mas a Veja não vê isso, nem a Folha de São Paulo, nem mesmo a tão “séria” Rede Globo. Nesse sentido, como afirmou uma socióloga, consultada pela Globo News, a alternância do poder é fundamental para a saúde da democracia. Nem um partido tão poderoso, nem uma oposição tão tênue. Toda oposição tem um lado, embora sempre afirmem estar do lado do povo, do estado, da democracia etc. Nós sabemos que a Rede Globo, dá para perceber, sonha com o PSDB de volta ao poder. E dai? Problema deles e delas! Pelo menos cumprem o papel que o Congresso não cumpre: o de fiscalizar e divulgar erros políticos, desacertos administrativos e casos nebulosos com o dinheiro público que saem dos nossos bolsos todos os dias para o grande Leviatã de Hobbes.

Governo foi feito para apanhar, essa é a lógica. Aqui no Brasil nós pedimos e agradecemos o que nos é de direito estabelecido em leis. Nossa cultura, provavelmente do nosso processo colonizatório, faz com que as pessoas aprendam a pedir, a estender a mão e agradecer o que é responsabilidade do Estado e de seus representantes, ao invés de exigir vigorosamente a realização de direitos conquistados no espaço democrático com luta e organização política. É por essas e outras que muitos médicos são eleitos no interior do Estado. A população fica muito agradecida quando um médico apenas cumpre sua função e o chama de doutor, antes mesmo de o sujeito ter uma especialização em sua área, quanto mais doutorado.

Bem, de qualquer forma percebo um avanço vigoroso na democracia baiana e brasileira. A eleição da primeira mulher senadora, Lídice da Mata, e a votação significativa de Marina Silva são exemplos desse avanço, de um país que deseja outros caminhos para a sua direção rumo a outro futuro que este presente ainda nos nega.

Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel