Como você pode controlar os sentimentos de
outra pessoa? Como garantir que o amor seja para toda a vida? Como impedir que
o amor não se transforme, depois que ele está transformado? Como manter o amor
numa forma ideal sem apelar para seu encarceramento? Que possibilidades a Filosofia
oferece para orientar nossos comportamentos e atitudes diante das relações
amorosas? São questões que se colocam em nossa contemporaneidade, principalmente
num contexto no qual o feminicídio se torna ainda mais cruel.
A filosofia essencialista tem início quando um
sujeito chamado Parmênides, da cidade grega de Eléia, afirmou que o que é é, e
não pode deixar de ser. Para ele, toda mudança era aparente. Dessa perspectiva,
para a filosofia essencialista o que existe é assim mesmo e assim sempre será.
A terra, a água, o ar, o fogo... No ser humano gera a “síndrome de Gabriela”
que nasceu assim, cresceu assim e será sempre assim. Meu pai incorporou tal
noção filosófica em sua crença pessoal. Ele dizia para minha mãe com ares de
orgulho: “- Eu nasci assim e vou morrer assim Naia [termo carinhoso de Nair].”
Dava para perceber que entre os seus valores ele cultivava a pertinência do
macho que não se dobrava às exigências do seu tempo, permanecendo ele mesmo,
talvez diante das mudanças, que considerava degradação social.
As relações amorosas abordadas pela filosofia
essencialista causam alguns problemas sérios, levando a alimentar a
masculinidade tóxica e justificar a violência contra a mulher e, em casos mais
extremos, o feminicídio, como os recentes casos no Brasil neste final de 2020.
Nas relações amorosas, se eu acredito numa
visão essencialista de amor, desenvolverei uma visão muito romantizada e pouco
crítica de uma relação que envolve duas pessoas diferentes. Muitas vezes bem
diferentes! Mas, como eu acredito que a pessoa amada é a metade perfeita para a
minha metade perfeita, formando uma perfeição ainda mais-que-perfeita, eu me apaixono
movido por essa ideia e idealizo a pessoa amada, conservando-a em sua “perfeição”
nessa abstração que, ao lado do encanto de imagens projetadas de amor, também
cria as possibilidades reais de seu antagonismo: desencanto e terror.
Ao lado do prazer de amar e ser amado, tem o
medo terrível de perder seu “objeto de amor”. E esse medo vai gerando desconfiança.
No mundo digital o celular é o portal por onde Ricardos, recados, mensagens,
imagens se multiplicam, multiplicando as probabilidades de que haja alguém mais
interessante, alguém que nunca reconheceremos ter algo a mais porque,
simplesmente, esse algo a mais pode nos fazer de menos, levando embora aquela a
quem amamos, o nosso “único e verdadeiro” amor . Talvez por isso, atualmente o
celular seja como uma chave para abrir a porta das violências que vão se caracterizando
como a invasão de privacidade, procurando saber o que ela curtiu, o que ela
prestou atenção, com quem ela mais interagiu enfim, procuramos identificar o “ladrão” que penetrou as fronteiras proibidas de nosso “relacionamento perfeito”.
E por aí a desconfiança escancara suas portas
virtuais que terminam penetrando em nossas atitudes cotidianas. Quando a mulher
percebe que não tem mais jeito e o encanto se tornou opressão, decide sair daquela
relação cada vez mais doentia. E, de um extremo de “perfeição” a outro, as
ameaças vão surgindo, a violência crescente se torna a forma de expressão
macabra que culmina em 16 facadas na frente das próprias filhas, ou em vários
tiros na frente da própria família. Muitos finais infelizes, cheios de terror e
de dor em muitas relações amorosas por esse Brasil cujo presidente cultiva uma
masculinidade tóxica, reforçando ainda mais esse terror que ocorre em muitos
lares, agora destruídos completamente.
Uma filosofia essencialista justifica a violência
na medida em que conserva a pessoa, impedindo-a de mudar, de melhorar, de
crescer, de evoluir e de realizar as potencialidades do seu ser na maior
plenitude possível. É uma armadilha terrível: se a mulher muda, ela enganou ao
homem e à sua família o tempo todo. Ela é o que é agora. Pensam eles e elas. Fingia
ser o que não era para obter vantagens com o casamento. Mas depois que se viu
empoderada, deu um belo pontapé na bunda do “pobre marido”, tirando a máscara
quando lhe pareceu conveniente. Para sobreviver, algumas mulheres fingem não
mudar. Mas carregam um peso enorme de manter uma aparência que não mais corresponde
à transformação pela qual passou. É possível? Outras mulheres, as mais velhas,
saem dessas armadilhas tardiamente, quando morrem aqueles que cultivavam sua
masculinidade com um orgulho superior.
Ao contrário, numa filosofia pós-crítica, o
sujeito não pode ser conservado numa redoma do pensamento, porque esse sujeito
assume diferentes posições em diferentes momentos, lugares e circunstâncias.
Eles e elas não podem ser pré-definidos nem essencializados/as pois jamais
permanecem os mesmos e as mesmas, mas constituídos em suas existências de modo
permanente que vão assumindo esta ou aquela posição em função das suas
filiações, interesses, compromissos sociais, valores, envolvimentos sociais,
culturais e econômicos.
Assim, não se pode projetar um relacionamento
como algo eterno, nem a mulher como uma boneca de louça a serviço de nossos
prazeres e crenças masculinas. A mulher beija, despe ou envergonha com um olhar;
abraça com um sorriso; exclama com seu silêncio. Ela as vezes é de Ogum, outras
de Oxalá; outrora é de Jesus, as vezes ela é do bar. Ela pode ser uma
professora , outras vezes executiva, algumas vezes pode ser santa, outras,
muito atrevida. Ela assume posições que eram exclusivas do homem numa sociedade
machista, e é preciso muita coragem para enfrentar toda uma prática discursiva
que constitui um campo de força a lhe imprensar numa parede criada para fechá-la
num espaço carcerário. E é também preciso ser muito homem para aprender a namorar uma mulher que é toda mulher. É preciso ter coragem para abraça-la e com ela apreender o admirável mundo novo, enfrentando seu velho mundo que agoniza em si mesmo. É preciso amar não um objeto, mas outra pessoa, com seus gostos, seus jeitos, suas formas, suas interações e conexões, que requerem diferentes atitudes e gestos, revelando a beleza de sua complexidade feminina.
Como ela não é uma essência, escapa com os
sentidos que ela mesma cria com coragem. E isso incomoda muitos homens e até algumas
mulheres, que se veem ameaçadas por aquela que se mostra com toda a liberdade
possível de seu ser! Como algumas delas resistem à "metamorfose ambulante" [Raul Seixas] ou
mesmo não conseguem alcançar aquelas novas mulheres, elas retornam para suas "velhas opiniões formadas sobre tudo". Algumas delas ainda justificam a violência
machista que intoxica a família inteira em seus dispositivos de opressão e de
subjetivação, vestindo-as e despindo-as num mesmo estupro porta adentro e porta
afora.
Portanto, a posição filosófica pós-crítica é muito importante para que novas práticas educativas reconheçam e operem com as possibilidades de ser de todas as pessoas, principalmente as mulheres, senhoras de si, não conservando-as em formas antigas, mas admirando-as no uso de seus instrumentos e recursos com os quais identificam dispositivos de poder nos discursos e ações a fim de questioná-los, colocá-los em xeque, seguindo o movimento fatal da rainha, que não se limita a “quadrados perfeitos” num xadrez construído pela masculinidade tóxica.
Joselito Manoel de Jesus, Da Nair e de todas as mulheres que sofreram e sofrem violências masculinas no silêncio conveniente da “sagrada família”.
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