No
final do século, encontramos-nos perante a desordem tanto da regulação social
como da emancipação social. O nosso lugar é em sociedades que são
simultaneamente autoritárias e libertárias. (Boaventura
de Sousa Santos)
O
autor acima citado, discutindo a transição paradigmática, elege duas dimensões privilegiadas
para assim o fazer: a dimensão epistemológica e a dimensão societal. Segundo
ele
A transição epistemológica ocorre entre
o paradigma dominante de ciência moderna e o paradigma emergente que designo
por paradigma de um conhecimento prudente para uma vida decente. A transição
societal menos visível ocorre do paradigma dominante – sociedade patriarcal;
produção capitalista; consumismo individualista e mercadorizado; identidades-fortaleza;
democracia autoritária; desenvolvimento global desigual e excludente – para um
paradigma ou conjunto de paradigmas de que por enquanto não conhecemos senão as
“vibrations ascendentes” de que falava Fourier (SANTOS, 2001, p.16)
Essa transição, com suas dimensões, estão ocorrendo neste
momento, gerando um desafio enorme em nossa capacidade de entendimento. Alguns
recorrem, com o avanço do evangelismo de resultados, a explicações do fim do
mundo na base do maktub, e assim se
resignam ao “inevitável” armagedom, apontado os dedos para os pecadores que, segundo eles e elas, perecerão por não aceitar o deus deles/as. Outros fingem não ver o que acontece a sua
volta, mesmo porque não entendem e, desse modo, se acomodam em viver nesse “caos”
como se não houvesse amanhã. Alguns, porém, recorrem à reflexão sistematizada
porque desconfiam que as partes só podem ser apreendidas coerentemente por um
todo complexo que lhe dê explicação em seu conjunto de ocorrências, aparentemente sem nexos.
Há uma mudança de paradigmas que está
provocando no mundo reações que geram inúmeros acontecimentos que exigem
decifração sob pena de sermos devorados pelo sem-sentido que pode nos levar à
loucura coletiva. As mudanças começaram antes da segunda guerra mundial e agora
estão se acelerando, o que dificulta nossa forma de entender, exigindo outro
entendimento para além da luta do “bem contra o mal” que alguns idiotas querem
nos impor como discurso “verdadeiro e justificável”. Ou superamos esse
maniqueísmo fácil e tolo, ou sucumbiremos em guerras que nos estraçalharão
eternamente num inferno terreno. Somos bons e maus e, assim sendo, como posso
combater o mau alheio se preciso travar uma grande batalha dentro de mim mesmo?
Como eliminar meu/minha inimigo/a se ele/a apresenta dimensões de bondade que
me faltam? Quais foram os critérios de escolha dos/as meus/minhas inimigos/as?
Quem me ensinou a identificar e a odiar aquele que eu penso que escolhi para
inimigo?
Saiu recentemente um estudo do Fundo das
Nações Unidas da Infância (Unicef) que mostra que o Brasil bate recorde na
morte de adolescentes e jovens negros, principalmente no Nordeste, tendo
Fortaleza e a minha cidade de Salvador como as primeiras colocadas nesse
holocausto sinistro. Segundo o repórter responsável pela matéria
Os dados mais recentes,
de 2014, divulgados ontem [11/10/2017], mostram que o Índice de Homicídios na
Adolescência (IHA) brasileiro alcançou a marca de 3,65 pessoas entre 12 e 18
anos assassinadas para cada grupo de mil jovens.
A pesquisa analisou os
homicídios de jovens nos 300 municípios com mais de cem mil habitantes e se
baseia nos dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade do Ministério da
Saúde. (ANTÔNIO JÚNIOR, 2017, p.B5)
E muitos de nós somos levados a pensar, na base
ideológica do “bandido bom é bandido morto”, que se eles morreram é porque
mereciam, na medida em que é muito difícil morrer um “inocente” nessa guerra
urbana, na qual o tráfico se torna o maior responsável, como se o tráfico de drogas
fosse uma entidade maligna que explica por si só, a tragédia anunciada e proclamada.
E então se reforçam as condições ideológicas
para o fortalecimento do sujeito-polícia como o herói que vai restituir a ordem
perdida ou, quando muito, nos proteger da desordem da orda barbaria que invade
nosso "território de segurança e bem-estar", o que o mesmo Santos denominou de "zonas civilizadas", em contraposição às "zonas bárbaras". Quando eu era menino ouvia discursos
pronunciarem uma frase que me deixava esperançoso: “- polícia é polícia,
bandido é bandido. Os dois não se misturam". As linhas de fronteira estavam bem
delineadas. A polícia era a ordem e o bandido a desordem. E quando eu me refiro
à polícia incluo todas as forças armadas. Mas o sujeito-polícia e o
sujeito-ladrão com o tempo foram interpenetrando as fronteiras proibidas, e os
bárbaros, desde aquele momento, já estavam invadindo nosso “sagrado” território
moral, portando a farda como se da ordem fossem. Já não se contrapõem tanto assim nessa ordem em frangalhos, falida,
apodrecida, sobre a qual tentamos nos agarrar. Já se confundem entre
tiros e fugas, entre planos e assaltos, entre pontos de drogas e munições. Os
filmes de José Padilha, Tropa de Elite e Tropa de Elite, o inimigo agora é outro,
retrata isso.
E o estado-regulador entrou em colapso. Não
consegue mais responder à “novidade que veio dar à praia” (Gilberto Gil). Os
arrastões, feitos por adolescentes, em sua maioria negros, são assustadores sim,
mas expressam o grito da barbárie - não dos novos “bárbaros” – esses sujeitos
gerados pelas ausências criminosas de um estado burguês que estraçalha tanto o
policial pobre que recebe uma merreca para combater o pobre revoltado, e o
pobre revoltado que assume a violência e o crime como caminhos únicos desse
labirinto mortal no qual, como ratos em um experimento maquiavélico, fazemos atrás da comida
e da sobrevivência. Nesse sentido, o sujeito-polícia e o
sujeito-ladrão-traficante, fazem parte da mesma desordem, a desordem burguesa
e, no caso do Brasil, criminosamente racista.
O sujeito-polícia, deixou de ser o herói,
mesmo porque, para grande parte da população, ele não representa mais a ordem,
mas compõe a mesma desordem que aflige uma cidadania de papel (Dimenstein), com
sua suposta autoridade agressiva e violenta, tentando obter respeito com a arma na mira da cidadania questionadora de seus métodos de capitão-do-mato. Ao lado do sujeito-ladrão, o
sujeito-polícia atua, com balas perdidas oferecidas aos cidadãos. Essa "ordem" foi engolida pela desordem burguesa deste momento histórico e não vai ser esta
que nos proporcionará esperança. Não vai ser essa democracia autoritária, nem
esse neopatriarcalismo na forma humana de um Bolsonaro posando de herói nacional, com sua violência à ponta
da arma, que vai nos dar esperança. A nova ordem precisa ser gestada num novo
paradigma. Quem sabe não seja um paradigma prudente, desarmado, no qual nossos/as adolescentes tenham escola pública de qualidade, saúde pública, lazer e arte,
que caracterizam uma vida decente e dissolvem os sujeitos-morimbundos de uma dimensão societal que insiste em voltar no tempo. Brasil Nunca Mais!
Joselito Manoel de Jesus, Professor, Poeta e insone
Com o auxílio de
JÚNIOR, Marco Antônio. Brasil bate recorde na morte de jovens negros. A Tarde, quinta-feira,
12/10/2017. Salvador, Bahia.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. Vol.1
3. ed. São Paulo: Cortez, 2001.
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