terça-feira, 14 de novembro de 2017

A caminho do inferno

O bom do envelhecimento é ir se tornando humilde, cada vez mais. Além disso, eu estou sentindo que não preciso mais de tanta coisa comigo. Estou deixando cair ao longo do caminho o peso desnecessário, que nunca valeu a pena carregar comigo. De fato, Saint-Exupéry estava certíssimo: “O essencial é invisível aos olhos, só se vê bem com o coração”. Como ver com o coração? Ah. É coisa difícil. É preciso fazer aquele exercício proposto por Gilberto Gil, “se quiser falar com Deus”.

Se eu quiser falar com Deus
Tenho que ficar a sós
Tenho que apagar a luz
Tenho que calar a voz
Tenho que encontrar a paz
Tenho que folgar os nós
Dos sapatos, da gravata
dos desejos, dos receios
tenho que esquecer a data
tenho que perder a conta
Tenho que ter mãos vazias
Ter a alma e o corpo nus
Se eu quiser falar com Deus
Tenho que aceitar a dor
tenho que comer o pão
que o diabo amassou
Tenho que virar um cão
Tenho que lamber o chão
dos palácios, dos castelos
suntuosos do meu sonho
Tenho que me ver tristonho
Tenho que me achar medonho
E apesar de um mal tamanho
Alegrar meu coração
Assim, fazendo esse exercício espiritual, podemos abrir um olho em nosso coração, porque o próprio coração já estará aberto para ver pela primeira vez o que sempre foi visto com olhos marcados pela ignorância, pela maldade pela vontade de submeter o outro, a outra, aos nossos caprichos. 

Por isso temos que nos achar medonhos. Quem se acha medonho? Poucas pessoas. Porque a feiúra, o pecado, a mesquinhez, a violência, a agressão a fofoca, é sempre o outro, a outra, que fazem e cometem. E a gente é belo, não é mesmo? Nós somos “os escolhidos”. Somos nós que merecemos o paraíso e não “o pão que o diabo amassou”. Ora, se não aceitarmos a dor de que somos iguais, ou até piores, que os outros e as outras, e que também contribuímos com a degradação do mundo, jamais poderemos ver com o coração, muito menos falar com Deus. Como é que Deus vai ouvir algo que não é sincero? Se não temos “as mãos vazias, a alma e o corpo nus”?  

É muito difícil esse exercício de aproximação com Deus. “Aceitar Jesus”, como dizem uns por 
aí e por acolá, é a coisa mais fácil que existe. Cruzamos uma linha imaginária, depois de um ritual simples de passagem, entre "o mundo" e o Reino de Deus; entre o mal e o bem, entre a “carne” e o espírito; entre o injusto e o justo e, a partir daí, começamos a apontar o dedo para os outros, os do lado de lá daquela fronteira que foi criada para excluir. Pegam suas pedras nas mãos e se preparam para atirar nos “pecadores”, naqueles e naquelas que andam no pecado, no “mundo”. E se, por alguma esperteza, no seio da história humana, alguém desenhou essa fronteira pra lá do seu pecado? E se essa cartografia espiritual começou errada, desde o princípio e, de repente, a gente descobre que Deus anda mais do lado de lá que do lado de cá? De que Deus não está nem aí para qual agremiação eu pertenço como gado, nessa vida imbecil de seguir pastores que me pedem dinheiro para provar minha fé? De que Deus quer ver “minhas mãos vazias, minha alma e meu corpo nus”. E "apesar de um mal tamanho, alegrar meu coração", porque o encontro com Deus se dá quando abrimos mão de nossas vaidades, de nossa necessidade de controlar a nós, os outros, as outras, o destino e tudo o mais, para encontrarmos a felicidade face a face, na alegria do coração, que nos desarma e nos acalma na profunda realização de nossa existência.  

Aí o MBL iria atirar suas imprecações contra o próprio Deus. Porque a nudez é tabu. A nudez será castigada. Porque alguns seres humanos querem ser “anjos” e não conseguem ser o que são, porque seus olhos estão cerrados pela ignorância e pela arrogância. Eu queria estar no momento dessas pessoas encontrarem com Deus, se conseguirem. Ia ser uma decepção! Então seguiriam alegremente o diabo, com uma arma na mão, uma bíblia na outra, cantando as glórias da racionalidade que o diabo pregaria, rumo ao inferno, que, como diria Sartre, é sempre o outro”.


Joselito Manoel de Jesus, Professor, Poeta e Corredor de Rua.    

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