segunda-feira, 20 de novembro de 2017

DEUS SEM PARTIDO

Quem me apresentou Deus foi minha mãe. Acredito que a maioria de todas as mães da década de 70 do século XX tenham apresentado aos/às seus/suas filhos/as a ideia do divino e do sagrado. Não porque as mães sejam sacerdotisas, mas porque, no contexto cultural de minha infância o machismo não permitia aos nossos homens-pais terem a sensibilidade para falar diretamente de Deus conosco, creio eu. Isso deveria ser “trabalho de mulher.” Eu, sinceramente, não lembro muito do que minha mãe falou de Deus, mas lembro que ela me falou com carinho. Não lembro de quem me falou do diabo pela primeira vez. O diabo nunca fez muito sucesso comigo. Mas o inferno... Ah. O inferno foi “um inferno”! Lembro do inferno e do poder dos diabos de levar as almas dos “desobedientes” para pracolá com um filme que assisti numa igreja Batista. No filme os “cãos” vinham pegar a alma de uns jovens motoqueiros que morreram num acidente, arrastando-os inferno adentro, deixando um rastro horripilante de terror em forma de gritos horrendos. O filme foi um sucesso! Eu e a maioria da plateia “aceitamos Jesus” no finalzinho, antes mesmo das letrinhas subirem tela acima. O garfo do diabo me empurrou para os braços de Jesus. Mas agora fiquei pensando: será que naquele dia, não foi uma combinação entre ambos que o pastor e sua assistência armou pra gente?

Durante minha existência Deus e o diabo foram se fazendo presente. Deus foi adquirindo seus contornos sisudos, com sua barba grande e sua vigilância enorme. Deus é grande! O diabo também foi ficando cada vez maior, à medida que meus hormônios foram me adolescendo. O pecado dos homens que exercem seus podres poderes não era discutido. Somente o nosso, adolescentes com hormônios fervilhando nossa sexualidade potente. Não havia lugar para me esconder de Deus e do seu foucaultiano Olho Panóptico. Mas os espermatozoides pediam movimento! A exigência biológica e a imposição “celestial” brigaram durante muitos anos como um hobbit fugindo do olho vigilante de Sauron. E aquilo me fez sofrer. Eu era um culpado, um cristão menor que não conseguia conter meus próprios instintos. Que perversidade as igrejas fazem conosco! Nesse caso, não há diferença alguma entre deus e o diabo. Eu procurava sombras e esconderijos, mas havia um olho em mim. Um olho que uma cirurgia diabólica inscrita na moral social dominante, colocou dentro de mim. Era me confessando num dia e “pecando” num outro. E o inferno estava logo ali, bem quentinho, com um diabo preparando minha alma para churrasco.

Até aquele momento, não havia elementos históricos ao meu alcance para questionar uma coisa: o paraíso era branco! O candomblé me dava arrepios! Os atabaques me deixavam inquieto. A família falava daquele som como se fosse uma celebração diabólica. E eu acreditava piamente nisso. Por incrível que pareça, e aí lá se vão as contradições da vida, contradições que formam brechas de esperança, o candomblé foi reaparecendo de modo respeitoso em minha subjetividade através de um padre, muito rigoroso eu o achava, mas que revelou-me a experiência de Deus de outro padre com o Candomblé. Falou-me rapidamente dos orixás, dos ritos e da profunda fé do povo de santo, etc, mas o suficiente para que eu entendesse que Deus não tinha partido. Deus era muito maior do que me disseram e do que imaginava. Me falaram de um deus pequeno e mesquinho. Me contaram de um deus que tinha cor e raça: um deus branco europeu, que parecia não ter saído do povo judeu. Esse deus no qual eu acreditava estava mais para um Odin ou Zeus, e Jesus estava mais para Thor ou Hércules, do que para aquele humilde pescador cujo julgamento é suave e cujo fardo é leve.

Esta semana peguei aleatoriamente uma revista dos Testemunhas de Jeová e procurei um negro em suas imagens. Não achei. Não havia, naquela revista daquele número, uma família negra! Deduzi que o céu desses camaradas é branco. Esses deus deles tem partido: é capitalista, branco e macho. O macho, adulto, branco, sempre no comando (Caetano Veloso) tem um deus sob medida para suas crenças políticas, sociológicas, biológicas, histórica, gráficas e geográficas. Um deus republicano! Um deus industrial e urbano, um deus financeiro que empresta (abençoa) somente para os que se filiaram às suas agências. Um deus que tem horror à Débora, a Esther, a Sara, à Simone de Beauvoir e às mulheres fortes e sábias de modo geral. Esse é o deus de Trump, o deus de Silas Malafaia, do Pastor Waldomiro, de deputados pastores, o deus da Veja, da Rede Globo, etc.

Deixei de acreditar nesse deus que me fizeram acreditar a ponta de garfo ardente. Comecei a perceber que Deus era bem maior do que eu pensava, repito. Bem maior. Comecei a rever Jesus na estrada, na favela, na roça, na taba, no Candomblé, na floresta, nas passeatas, na roda de samba, na capoeira, na ciranda, nas tranças que a existência foi fazendo em minha cabeça. Eu deixei de pegar o ônibus pro inferno cristão. Saltei bem antes. E comecei a caminhar com meus próprios pés em direção à Deus. Um Deus de todas as cores, inclusive negro. Um Deus de olhos puxados e cabeça raspada, um Deus de cabelos trançados e cachimbo na boca. Um Deus vestido ora à Ghandi, ora à Nelson Mandela. Um Deus que dança com sua gente e que celebra a humanidade que ele criou e que continua se recriando, surpreendendo-o a cada século; Deus, que só me censura se eu ofender e agredir ao outro, à outra; Deus, que as vezes se finge distraído para que eu não me sinta constrangido com sua onipresença; Deus, que não tem partido, mas sempre toma partido em favor dos excluídos, dos que morrem afogados no meio do deserto oceânico, fugindo das guerras provocadas pelos homens brancos gananciosos que querem beber toda água doce, mas nunca se saciam; Deus, que está ao lado das mulheres, dos/as homossexuais, dos adolescentes e jovens negros assassinados sistematicamente pela indústria da morte que funciona nas favelas suas máquinas assassinas.

Não há consciência humana no Brasil e no mundo se não há uma consciência negra. Negar a consciência negra, apagando-a dentro de uma suposta concepção superior de consciência – geralmente branca – é negar a história humana e ocultar ideologicamente o racismo praticado todos os dias, todos os anos de nossa existência coletiva, “pacificando” a guerra que ocorre todos os dias de nosso tempo histórico . E, negar a história humana, é negar à justiça o seu apelo à verdade, é mentir, é ocultar, é recriar as bases para que um deus com partido, com cor, causador de exclusão, sofrimento e dor retome seu antigo apogeu, criando fiéis cujo racismo não será pecado, mas o aborto causado em função de um estupro, um pecado imperdoável. Eu creio em Deus, mas não mais num deus pequeno, restrito, tacanho e mesquinho. Deus, de fato, é grande, mas não do tamanho do racismo religioso e cristão, nem da cor branca que a sociedade salva antecipadamente no seu paraíso privado. Esse deus, esse deus... É o diabo!


Joselito Manoel de Jesus, O Filho de Deus, O Negão.     

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