Dos animais nada espero além da sua própria animalidade
inscrita no âmbito natural. Os animais não são seres políticos e nem éticos e,
por isso mesmo, seria grande debilidade mental levar um leão aos tribunais por
ter devorado um gnu. Não pode ser classificado como homicídio, porque é da
ordem natural da relação presa-predador inscrita na natureza, bem como não se
julga a morte de milhões de galinhas, porcos, peixes e bois para alimentação
humana. As ordens jurídica e política são da ordem do humano, porque somente os
seres humanos, reza a lenda, têm capacidade de decisão, de opção, de escolha e,
portanto, somente a eles pode ser imputado a responsabilidade por essa
condição.
O único animal que fala é o ser humano, o ser de
linguagem. E aí está a sua maior força e a sua maior fraqueza. A linguagem lhe
permite simbolizar o mundo, construindo-o permanentemente, nomeando-o e
constituindo-se a si próprio. Contudo, a linguagem também lhe cobra um preço
pela sua ousadia em ter começado a falar, a decidir e a escolher.
Uso
uma expressão trazida por Lacan de que, quando somos colocados na linguagem,
pagamos isso como se fosse o pecado original. E carregamos tendo que suportar
um pecado que não tem deus que tire. (SOUZA, 2016, p. A6)
Tal como Prometeu, punido por revelar o segredo do fogo
aos mortais, com uma águia lhe comendo o fígado todos os dias, assim também o
ser humano é punido constantemente pela sua consciência amarrada inevitavelmente
à ética, ou não?
Quer
dizer, mais que um ser no mundo, o ser humano se tornou uma Presença no mundo,
com o mundo e com os outros. Presença que, reconhecendo a outra presença como
um “não-eu” se reconhece como “si própria”. Presença que se pensa a si mesma,
que se sabe presença, que intervém, que transforma, que fala do que faz mas
também do que sonha, que constata, compara, avalia, valora, que decide, que
rompe. E é no domínio da decisão, da avaliação, da liberdade, da ruptura, da
opção, que se instaura a necessidade da ética e se impõe a responsabilidade. A
ética se torna inevitável e sua transgressão possível é um desvalor, jamais uma
virtude. (FREIRE, 2002, p.20)
O nosso grande problema de cada dia no Brasil de hoje e
de desde sua invasão pelos portugueses, é quando a transgressão da ética não
mais provoca reflexão, nem mais produz o sentimento de culpa nem de vergonha
nos seres de mau caráter, mas revela um cinismo descarado que enoja os que
ainda acreditam e defendam a ética como reguladora dos nossos atos. A “águia”
não come mais o “fígado” daqueles/as que roubam, dos/as ardilosos/as que
enganam utilizando o nome de Deus para enriquecimento, daqueles/as que matam,
daqueles/as que mentem, daqueles que causam sofrimento aos outros.
Mas, acredito eu, um problema maior ainda é quando a maioria
se cala diante de tanto cinismo, de tanta usurpação, de tanta impunidade. A
ordem jurídica não mais consegue pronunciar sua justiça, ao contrário, ela foi
montada para beneficiar os ladrões, os assassinos, corruptos, os
estelionatários, os negociantes da morte, entre outros. A ordem política brasileira
é visivelmente a expressão institucional dessa situação. Ela própria é erguida
sobre o financiamento criminoso de campanhas eleitorais; Essa ordem política é
também a expressão da representação manipulada dos grandes empresários e
investidores brasileiros e mundiais que aqui garantem a reprodução da miséria
geral em função de mesquinhas farturas particulares. Mas, quando a maioria se
cala, há um consentimento social da malandragem que impede a águia de bicar o
fígado geral de nossa nação. A racionalidade humana carrega a possibilidade de
transgressão da ética, carrega uma maldade intencional buscando a concentração
de poder e renda, destrói a vida dos seus semelhantes em função do seu desejo
mesquinho de ser “o dono do pedaço” não se contentando apenas com o seu pedaço,
retira o pedacinho do outro, produzindo uma falsa fartura, a que foi produzida
pela penúria do próximo, não pela honestidade de seu trabalho.
Do mesmo modo, somos impedidos, por truculentos e astutos
silenciamentos, de falar. Um desses silenciamentos começa na redução de nossa
capacidade de compreensão, de avaliação, de escolha, enfim, de opção. Com uma
educação sofrível as pessoas vão tendo um “encurtamento
simbólico” (SOUZA, 2016) e, portanto, a redução de sua capacidade de fala.
A criticidade vai cedendo lugar para a aceitação e legitimação passiva de sua
condição de roubado, de explorado, de assaltado por um sistema político e jurídico
que o reduz à humanidade precária, ou, em casos piores, à desumanização
degradante. Eu soube pela diarista que trabalha aqui em casa, Indaiá, que um
candidato a reeleição para prefeito de Salvador, era aguardado pela população
local como um deus. Ela revelou com espanto que muitos corriam para tocá-lo,
para fazer selfie, para abraçá-lo. Fruto
desse encurtamento simbólico, muitos seres humanos vão perdendo sua humanidade,
sua capacidade de opção, de reflexão e, como desdobramento disso, erguendo
ídolos, produzindo mitos e recriando condições para perpetuação de um mundo
cheio de seres cuja humanidade vai sendo encurtada desde o seu nascimento.
E vivemos a era onde os desvalores campeiam. Estamos em
ano de eleições para prefeituras e vereadores no Brasil e, nesse momento de
minha fala, muitas falas iguais estão sendo pronunciadas ao vento. Dizem elas
que os políticos fizeram muito e ainda vão fazer muito mais. Dizem que eles e
elas, candidatos atuais, são as melhores pessoas do mundo, os bons maridos e
esposas, os bons filhos e filhas, os bons pais e mães, os bons amigos e as boas
amigas, principalmente dos/as amigos/as mais pobres e simples. O encurtamento
simbólico aceita essa mentira midiática geral. Mas "o louvor não é belo na boca do pecador.” (Eclesiástico, 15,9). Um
modo bastante legal de reduzir o encurtamento simbólico sem precisar frequentar
uma escola falida é inserir-se no movimento social, é participar de grupos de
pessoas que pronunciam o mundo, que partilham significados e constroem sentidos
outros sobre esta coisa desordenada que é nosso mundo contemporâneo.
De
maneira completamente diferente será experimentada a fome pelos membros de uma
coletividade unida por vínculos materiais objetivos (batalhão de soldados,
operários reunidos no interior da usina, trabalhadores numa grande propriedade
agrícola de tipo capitalista, enfim toda uma classe social desde que nela tenha
amadurecido a noção de “classe para si"). Nesse caso, dominarão na
atividade mental as tonalidades do protesto ativo e seguro de si mesmo; é aí
que se encontra o terreno mais favorável para um desenvolvimento nítido e
ideologicamente bem formado de atividade mental. (BAKHTIN, 2002, p. 116)
A nossa inserção em grupos e movimentos que amadurecem
noções fundamentais de nossa especificidade no mundo, movimentos negros,
movimentos feministas, movimentos gays, associações de moradores, sindicatos,
associação de pais e mestres, pastorais sociais das igrejas, grupos religiosos
que refletem eticamente sua religiosidade no mundo, entre tantos outros, são
espaços em que o simbólico amplia suas possibilidades interpretativas, tendo
reflexos importantes na criticidade da humanidade construída em seus espaços e,
reduzindo assim, os efeitos nocivos do encurtamento simbólico, do
empobrecimento e da proibição da fala, melhorando nossa capacidade de opção
política, de decisão eleitoral, de escolha do nosso destino comum. Quem sabe não seremos as águias comendo o figado dos nossos representantes políticos?
Joselito do Zé, da Nair, do Rafael, de Ana Lúcia, de
Tantas Gentes falando e de Jesus, o Emanuel.
Com o auxílio de:
BAKHTIN,
M. (VOLOCHINOV). Marxismo e filosofia da
linguagem. Trad. M. Lahud, Y. F. Vieira. 9. ed. São Paulo: Hucitec/Annablume,
2002.
BÍBLIA SAGRADA. Eclesiástico 15, 9.
FREIRE, Paulo.
Pedagogia da autonomia: saberes
necessários à prática educativa. 24. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002
SOUZA, Aurélio. A
psicanálise convida o suicida a falar. Biaggio Talento. Jornal A Tarde. Salvador, p. A6 11 set. 2016.