terça-feira, 16 de julho de 2019

Domínio Evangélico

Ando triste. Sorrio, mas é apenas disfarce. Os dias se vão sombrios porque a mentira, o cinismo e a perversidade dos poucos ricos deste país encontra terreno para se expandir na apatia, ou na própria concordância dos pobres, manipulados por ideologias rasteiras. Isso é triste. Muito triste. Um povo inteiro vai voltar a passar fome, vai voltar a pedir nos sinais de trânsito, alguns vão, na hora mais dolorosa da fome, arriscar-se nas ruas da cidade em busca de sobrevivência. E ainda agradecerão as esmolas que lhes amenizem a fome e a fraqueza, que os aproximam velozmente da morte precoce. É triste.
Imaginava eu, que apenas as elites de nosso país eram perversas. Mas hoje vejo com tristeza que a classe média carrega tantos preconceitos que se transformam em exclusões. Um sujeito da classe média não admite que alguém da classe pobre divida a mesma viagem de avião, que frequente os mesmos espaços sociais, que vista a mesma roupa, que coma a mesma refeição, que tenha sonhos parecidos. Que tristeza toma conta de mim nesta hora! Como eu posso ser bem sucedido se quem está ao meu lado, na mesma construção de nação e de mundo, passa necessidades básicas e é impedido de ser bem sucedido? Como posso ser feliz se o porteiro do prédio está infeliz? Se a diarista está desesperada pensando em como pagar um dentista para sua filha? Como? Como posso pensar num deus que divide o mundo em bons e maus e legitima toda essa covardia contra os mais pobres do meu país? E todas essas pessoas rezam e creem num deus, um deus feito sob medida para as necessidades materiais de cada um, num ateísmo cínico que projeta deus como um banco, uma imobiliária, uma concessionária, um hospital, como um seguro de vida e de pós-morte.
Deus me foi apresentado pela minha mãe. E esse deus lhe foi apresentado pelos seus pais, vindo de uma longa tradição colonial de um deus branco, ocidental, homem, hetero, sem feminilidade e com uma vigilância extrema sobre seus filhos e suas filhas, “pecadores originais”. Depois esse deus tomou uma face mais amorosa, misericordiosa e justa com a Teologia da Libertação. E aí eu comecei a enxergar Deus, Aquele que anda no meio do povo, Emanuel: O Deus-Conosco. Mas Deus foi perseguido pela própria Igreja Católica, através de João Paulo II e de Ratzinger, o cardeal alemão que fingia não ver nem ouvir os clamores das crianças abusadas por padres e bispos católicos. E aí deus entrou em declínio. E foi reapropriado por forças ainda mais obscuras de nosso país: os neopentecostais.
Surgiram e se fortaleceram falsos pastores: Edir Macedo, Silas Malafaia, Bispa Sônia, Valdemiro Santiago, R. R. Soares, Marco Feliciano, David Miranda e uma série de outros menos conhecidos que começaram a lucrar alto com o abuso da fé das pessoas simples. E uma onda evangélica, como um tsunami, assolou o país de norte a sul, como uma epidemia altamente contagiosa, atingindo milhões de seres humanos e tornando-as soldados a postos para as “ordens divinas” de seus falsos pastores guias, que se tornaram donos de invejável poder econômico.
E esses falsos “pastores” deram o passo seguinte: o poder ideológico. Começaram a comprar bens materiais de alta incidência na sociedade, como redes de televisão e rádio. A fé rendeu-se ao materialismo tão criticado nos discursos desses abastados pastores, que acumulam bens em cima da ignorância, da ingenuidade e, também, da perversidade de um povo. Esse poder ideológico alimenta o racismo, o fascismo, a ignorância, o negacionismo científico e a hipocrisia de modo geral. E deram mais um passo importante: o do poder político. Começaram a eleger pastores como Marco Feliciano, Márcio Marinho, "Irmão Lázaro", "Flor de Lis" e indivíduos a eles associados intimamente, como Magno Malta, entre tantos/as outros/as. E esse poder está sendo acumulado, eleição após eleição, intimidando governos, ameaçando as decisões cruciais das autoridades que atrapalham os seus negócios e caracterizando um domínio teocêntrico perigoso para as liberdades individuais, para a arte, a cultura, a educação e o desenvolvimento social de nosso país.
Com a eleição de Bolsonaro, o mais obscuro presidente de nosso tempo, essa rede de poder se fortaleceu e um obscurantismo perigoso toma conta do país. O apelo à violência através do uso de armas, a destruição da natureza, a perseguição às universidades públicas, a entrega do país ao capital privado norte americano, a extinção de direitos fundamentais dos trabalhadores e a violência contra mulheres e homossexuais são desdobramentos de um sistema de governo aberrante, montado sob a égide de um evangelismo miliciano e militar que conduz esse Brasil a um colapso que em breve vai mostrar-se concreto para aqueles que acreditam em palavras fáceis e enganosas de pastores, políticos, grandes empresários e milicos.
E agora, nesta encruzilhada da existência, eu, mesmo sendo dito por alguns como “bem sucedido”, me encontro mal, porque meu país sucumbe sob o silêncio daqueles e daquelas que pagarão o preço mais caro de nossa história: a da exclusão a níveis desumanos. Não se passarão dois anos e veremos grande parte de nossa gente vagando nas ruas à procura de sobrevivência. Já ocorre, mas ainda em níveis que não incomodam. Mas vai aumentar. Quem não quis compartilhar um assento de avião e bateu panelas em suas varandas, vai ter de dividir o medo de viver entre os que têm fome e os que vão ser alimentos para estes, como num walking dead surrealista. E deus sairá ainda mais fortalecido, porque os pastores que causaram esta situação, vão orar pelos fiéis sem pão e sem lar, afirmando que se trata das palavras da escritura que "deverão se cumprir". No lombo dos outros, claro.
Eu ainda rezo, para ver se alcanço um lugar, uma montanha, um beco, um deserto, uma avenida, uma viela da periferia, onde Deus possa ouvir a minha tristeza. Não mais um deus católico. Não um deus pentecostal. Não mais. Mas Deus, inclusive o Deus Africano, o Asiático, o de todas e de todos, o Deus da Justiça contra mentirosos, hipócritas e gananciosos, do Amor à diversidade que a própria natureza expressa. É para esse Deus que eu ainda rezo e para Ele que entrego minha tristeza e minha ira.
 Joselito Manoel de Jesus, Professor