Os estudiosos do espaço
sideral descobriram que a gravidade não explica o aumento da velocidade em que
o universo continua se expandindo. Então eles criaram uma outra força para
explicar essa expansão crescente: a "massa escura". Isso é teoria:
cria conceitos articulados sistematicamente que procuram dar uma explicação
convincente para os fenômenos visíveis e não compreendidos pela percepção
imediata.
Na sociologia também nos
deparamos com fenômenos que escapam à nossa percepção e ao nosso entendimento
imediato. A maioria de nós, que lemos muito pouco ou quase nada, não consegue
compreender as linhas de força que determinam o nosso modo coletivo de conviver
em sociedade. Alguns pensam como um caos. Mas não é um caos. É um sistema
articulado que gera muitos epifenômenos que parecem produzidos pelo acaso, mas
não são. Alguns e algumas afirmam que o ponto de fuga dos epifenômenos é
associado ao conceito de capitalismo. E muitos, de fato, o são. A exploração
dos seres humanos tendo como critério principal a busca do lucro gera a pobreza
em sua maioria e a riqueza, em sua minoria quantitativa. A realidade global não
deixou de ser capitalista.
Mas no Brasil, apenas o
capitalismo não explica a concentração de renda brutal e outros fenômenos sociológicos
a ela associados. Assim, alguns sociólogos brasileiros, entre eles Bernardo
Sörj, José de Souza Martins e Josué de Castro, perceberam o que está na raiz do
preconceito, da discriminação e da intolerância no Brasil. O primeiro
identifica o patrimonialismo no Brasil como uma dessas manifestações amplas que
influenciam o nosso modo de buscar o lucro: retirando dinheiro do estado,
tratando os trabalhadores como escravos e criando uma realidade de favelas –
senzalas modernas – e de apartheid’s gerais que se desdobram no tráfico de
drogas, nos inumeráveis roubos, furtos, assaltos, assassinatos e crimes
diversos. José de Souza Martins percebe a força de uma modernidade às avessas
no Brasil, que associou o arcaico com o avançado, no sentido mais negativo
possível para as populações pobres de nosso país.
Essas forças invisíveis,
dê o nome que se dê a elas, produzem efeitos nefastos que se percebem na
corrupção desenfreada, nos buracos nas estradas, na morte prematura de milhares
de pessoas que se despedem da vida na saúde pública abandonada, nos
semianalfabetos que chegam à universidade, nos desempregados que entopem as
vias de carros e camelôs. Os prédios erguidos na Avenida Paralela, destruindo o
que resta da mata atlântica, antes de terem uma base sólida na engenharia
civil, têm seus fundamentos no tráfico de influência na prefeitura de Salvador,
neste caso no governo João Henrique (por favor, me processe maluquinho!).
Aqueles prédios que “floresceram” na famosa avenida foram projetados e adubados
pela corrupção engendrada em nossa sociedade patrimonialista. Suas janelas de
vidro são limpas com a força de trabalho das diaristas negras que moram no
subúrbio e nas periferias centrais, concedidas pelo esquema geral da exploração
preconceituosa da mais-valia da população negra.
O capitalismo aproveita
dessas culturas locais de exploração e discriminação, tais como o
patrimonialismo, e aprofunda sua presença global nas sociedades locais,
produzindo efeitos visíveis que servem de elementos interpretativos para a
geração de uma consciência coletiva submersa na aceitação passiva da exploração
brutal.
A extensa disseminação da
peonagem, a escravidão por dívida, nas novas fazendas da fronteira, abertas com
a onda de ocupação da Amazônia nas últimas décadas, mas não só nelas, nos fala
de uma dificuldade estrutural na expansão do modo capitalista de reprodução do capital. E, portanto,
naquilo que é o âmago do moderno. Aí as coisas combinam de modo estranho. [...]
As fazendas em que tem sido encontrado maior número de trabalhadores
escravizados pertencem justamente a grandes conglomerados econômicos, não raro
multinacionais. Na Fazenda Vale do Rio
Cristalino, quando ainda pertencia ao grupo alemão Wolkswagen, uma fazenda de criação de gado de corte para exportação
à Alemanha, a tecnologia empregada era da maior sofisticação. [...] Porém,
todas essas notáveis expressões da modernidade funcionavam com base no trabalho
de 500 escravos empregados no desmatamento e na formação de pastagens. (MARTINS,
2010, p. 30-31)
Pois
é: a tecnologia mais avançada não abre mão da escravidão no Brasil. Podem
dividir o Brasil em dois lados: norte-nordeste e sul-sudeste; podem ainda
dividi-lo em inúmeras ilhas, mas as forças que geram os maléficos fenômenos
sociais que vivemos atualmente continuarão firmes, produzindo “brasis” dentro
das ilhas nas quais seriam divididos os mais de 8 milhões de metros quadrados
de nosso território. Nas ilhas teríamos novos senhores, novos feitores, novos
capitães-do-mato. Nas ilhas teríamos oceanos de pobreza em meio a atóis de
riqueza. Nas ilhas teríamos novos brancos, novos negros e novos indígenas, por
que a energia sistemática que impulsiona as divisões não cessaria de exercer
sua ação. Essas ilhas já existem: são as prefeituras. As cidades são pobres,
tais como São Francisco do Conde, Camaçari, etc. E seus prefeitos e suas
prefeitas são ricos/as. Toda cidadezinha baiana e brasileira tem seus brancos –
não necessariamente brancos – os seus negros e indígenas, os seus pouquíssimos
ricos e sua multidão de pobres. Os brancos têm nome. São da família ou
quadrilha, seja lá o nome que se dê, tal e tal. Que se opõe, de fingimento ou
de verdade, à família/quadrilha tal e tal, que assaltam a cidade e oferecem as
migalhas para seus pobres ditos “cidadãos”. Vivemos uma sociabilidade falida,
mas que ainda aduba fortemente a nossa mentalidade tupiniquim.
Joselito da Nair, do Zé, de Ana Lúcia, de Rafael, de Tantas Gentes
e de Jesus, O Emanuel
Com o auxílio de
MARTINS, José de Souza. A sociabilidade do homem simples:
cotidiano e história na modernidade anômala. 2.ed. rev. e ampl. São Paulo:
Contexto, 2010.
SÖRJ, Bernardo. A democracia inesperada: cidadania,
direitos humanos e desigualdade social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
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