Nesse país
tão cristão, há tantos cristãos que, desconfio que, se o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) fizer uma séria “recontagem
de votos”, teremos mais cristãos que seres humanos. Com tantos jovens negros
assassinados nas periferias de Salvador, Bahia, deve haver mais soldados
que cristãos, muito embora isso seja paradoxal do ponto de vista do racional IBGE.
Porque um soldado não pode ser cristão, já que ele é o braço armado do estado.
E na cidade mais negra do Brasil, os números também devem mentir, porque devem
ser soldados brancos, orgulhosos de sua raça, limpando Salvador de sua juventude negra. Ou,
então, podemos inferir que um soldado não tem cor, não tem religião, nem tem
fé. Quando aquele ser coloca a farda, ele se torna um agente do estado e, como
tal, sua humanidade se submete às ordens de um poder inquestionável, um poder
controlado, não pelos brancos (não é isso?), mas pelo estado incolor, inodoro e, principalmente,
insípido que o caracteriza. E o estado, convenhamos, não tem nada a ver com a
misericórdia e a piedade divina. E o estado, por ser “incolor”, prende, arrebenta
e mata apenas marginais, sujeitos que roubam o povo, todos negros e pobres, como cantava Gil e Caetano. Embora me pareça muito
estranho o braço armado do estado não arrebentar nem prender, muito menos matar, e o braço jurídico do estado não manter presos os brancos
congressistas que roubam o povo de todo o território nacional.
Que deus é
esse? Que lei é esta? Que fé conveniente é esta que se apresenta como uma propaganda
comercial, como qualquer outra. Com a teologia da prosperidade inventaram um
deus conveniente para cada um. Há um deus que traz meu marido ou minha mulher
de volta; há outro deus que me faz ter sucesso no trabalho; existe um deus que
faz meu/minha filho/a deixar o vício das drogas e há um deus emergente que cura
milagrosamente meu/minha filho/a do homossexualismo, o deus-cura-gay. A fé
virou moeda de troca: se eu fizer isso, deus me dará aquilo; se eu rezar três
a quatro vezes ao dia aumento a minha possibilidade de obter melhorias divinas
na minha situação financeira, que foi o meu pecado, e não o injusto, desigual e
cruel sistema econômico e político desse mundo que me jogou nessa condição.
A partir daí
vamos criando definições como “abençoado”, que seria aquele/a que está em
melhores condições financeiras, políticas e econômicas. Nesse caso, deus está
diretamente proporcional à minha posição no mercado. Se tenho um carro, foi
deus quem me deu. Quem não tem carro certamente foi o diabo quem providenciou o transporte coletivo. Se tenho
uma casa para morar, foi deus quem me deu. Quem mora embaixo da ponte ou nos
alugueis da cidade, foi deus quem vetou, por que quem mora de aluguel é mais
pecador do que eu. Diziam que a fé não tinha como ser medida. Agora, com a
teologia da prosperidade, tem. A medida da fé pode ser em dólar, em real, em
euro, em posses que expressam o quanto de fé eu tenho. Pensando no carro ano
2012 que restam 18 parcelas ainda a pagar e nas tantas outras coisas cujo dono é o banco do Brasil e o bando do Brasil, minha fé deve ser bem pequena, quase
um ateu. Nada de poupança, dois empréstimos... Huuum. Minha situação tá mal com
esse deus emergente das lucrativas igrejas da fé de resultados financeiros. Num
país de uma cristandade tão forte, devo ser um herege. Dá até pra medir minha
distância desse deus: uns dois a três milhões... de dólares. Porque real não é
moeda pra se medir nada com respeito, quando mais tendo um presidente como
Temer.
Creio que
muitos “cristãos” devem se imaginar um “Noé”, ou um “Moisés”, os novos super-heróis
das novelas, filmes e seriados na base do eu, o bem, o belo e o bom, contra
todos os maus. Haverá algum filme de algum santo negro? E quem seriam esses "maus"? Esse é o grande problema desta falsa
dialética: os maus são os negros que professam a umbanda e o candomblé; os homossexuais
e travestis que contrariam nossas medidas exatas do corpo e do seu gozo; os/as
ativistas políticos que reclamam desse suposto estado sem cor e sem raça, sem sexo
e sem graça, que torna a nossa vida uma desgraça. Os maus seriam as pessoas que
não acreditam em Deus, principalmente nesse deus de resultados imediatos
inventado para atender a cada cliente, conforme suas necessidades específicas –
desemprego? Separação? Problemas familiares? Problemas de ereção? Temos um deus
para o seu caso! Ligue já! Assista nossa programação e venha à nossa igreja, a
única que tem um pastor/padre especializado em seu problema e que tem ligação
direta com as repartições celestes. Os maus também são os pequenos traficantes, jovens negros que, ali no bairro, matam e morrem a sua esperança numa vida melhor. Os consumidores brancos são "vítimas" do tráfico e merecem o apoio e a misericórdia divina.
É tão fácil
usufruir desse deus! É tão prático “aceitar Jesus”! Um deus que vai me dar tudo
que eu quero. É tão difícil reconhecer e abandonar a hipocrisia! É tão fácil
apontar abençoados e amaldiçoados aqui e ali, é tão difícil identificar que
somos preguiçosos e covardes em reconhecer que nosso cristianismo é falso e
superficial! Num Brasil com tantos cristãos, não deveria haver mais tantos
assassinatos; num Brasil com tantos cristãos não deveria haver tanto
feminicídio; num país com tantos cristãos não deveria ocorrer tanta especulação
financeira. Num Brasil com tantos cristãos não deveria haver mais pedofilia,
como no caso do assassinato de Lucas Terras entre tantos outros e outras. Num
país com tantos cristãos não deveria haver tanta corrupção; num território
assim “abençoado” é muito estranho essas coisas ocorrerem. E assim, esse nosso
cristianismo de resultados do terceiro milênio vai nos salvando da pobreza, da
doença, da violência, da morte, da separação, porque deus financia o homem
justo com automóveis, apartamentos com piscinas, contas milionárias, harmonia
na família e sucesso no trabalho e, com isso tudo, não tem "abençoado" que
reclame, muito embora, segundo o IBGE, o número de “abençoados” cristãos venha caindo assustadoramente com a nova política econômica do estado incolor,
inodoro e insípido politicamente. Essa política econômica deve ser coisa do "diabo".
Joselito Manoel de Jesus, Sem religião alguma.