Neste editorial acima, do Jornal
A Tarde, é muito fácil, para quem tem um pouco de estudo na área, identificar a
ideologia que perpassa o discurso
que defende a economia de livre mercado como solução para os principais
problemas sociais, políticos e econômicos que afetam o Brasil na
contemporaneidade, contrapondo a ação ineficiente e corrupta do Estado à suposta eficiência do capital privado através da iniciativa empresarial, operando num
mercado livre no qual, patrões e empregados, ricos e pobres, se unam num
esforço coletivo e empreendedor, para “transformar e retomar a competitividade
do país sem tutela do Estado em excessos” (A TARDE, EDITORIAL, 2018, p.A3).
Leitores desavisados e
acostumados a pensar pelas reflexões alheias, facilmente caem na armadilha da falsa consciência disseminada por esse
texto, passando a pensar que o Estado, de fato, é o leviatã que devora suas
capacidades produtivas e o impede de desenvolver-se em função do livre
exercício de suas capacidades, tornando-se assim, mais um a desejar e exigir um
Estado Mínimo, conforme propõem os
ideólogos neoliberais, não sabendo, entretanto, que estão atirando nos próprios pés.
Os/As autor (es)/a (s)texto se aproveita (m) de um traço herdado do
colonialismo português no Brasil, o patrimonialismo,
que aqui se fortaleceu e consolidou, fenômeno no qual o público e o privado se
confundem, gerando as sementes da corrupção – que neste momento são expostas ao
grande público, mas sempre existiu no Brasil – com o objetivo principal de
retirar do Estado prerrogativas de regulação e mediação que somente este
aparelho de poder pode fazer, tais como a proteção do trabalhador diante da
exploração do patrão, raiz principal da desigualdade social e dos principais
problemas políticos, sociais e econômicos desse país continental.
A função da ideologia é justamente gerar essa falsa consciência que
esconde e mascara os aspectos mais duros e antagônicos do domínio, contribuindo
para a aceitação passiva e a integração política e social dentro dos princípios
do domínio que se quer efetivar e estabilizar, no caso, o Estado Mínimo do
pensamento neoliberal na realidade.
[...] porque
falsa consciência, a crença ideológica não é uma base independente do poder e a
sua eficácia e sua estabilidade dependem, em última análise, das bases efetivas
da situação de domínio (para Marx, as relações de produção). [...] A averiguação do caráter ideológico de uma crença política
permitiria, na verdade, tirar conclusões significativas sobre a relação de
poder a que a crença se refere: por exemplo, sobre sua potencial
conflitualidade e sobre sua estabilidade. (BOBBIO, MATEUCCI, PASQUINO, p.586, 1995)
A crença ideológica acima se refere ao neoliberalismo
e aos seus pressupostos, como o exercício das potencialidades individuais num
ambiente de liberdade de mercado em um contexto político e econômico de Estado
Mínimo, o que não significa Estado Frágil, pois, para manter o domínio todo grupo hegemônico utiliza da coerção - feita pelo aparelho de repressão do Estado - para manter os seus concorrentes e seus subordinados na condição de subordinação. Na Síria, Bashar al Assad não perdeu o domínio sobre o território porque, embora tenha perdido o poder ideológico, não perdeu o poder político, que é, em última instância, o poder da força militar, o poder que mantém o domínio. Sua sorte, diferente de Muammar al Gaddafi, foi estar numa região estratégica, tanto para os interesses russos, quanto para os interesses americanos. Caso a Rússia não entrasse na guerra, o destino de Assad estaria selado, tal como ocorreu com Gaddafi. Quando o poder ideológico não mais convence ninguém, os dominantes acionam seu aparelho de repressão, mobilizando tanques, bombas e tiros como força de convencimento eficaz contra aqueles que desejam mudar o sistema de dominação, ou, no mínimo, trocar de dominador.
Entretanto, produz falsa consciência quando deixa de mostrar que somente
pela existência entre ricos e pobres já se evidencia a injustiça histórica do
capital privado que se acumula sobre o trabalho coletivo, sob as bênçãos do
Estado que o Editorial quer eliminar, pois, repito, Estado Mínimo é mínimo para
as classes populares e os/as trabalhadores/as e máximo para o capital e seu
processo de acumulação.
Se o homem
fosse apenas atividade criadora e produtora de si mesmo e do mundo que o cerca,
é certo que toda apropriação privada seria fonte de violência e dominação do
homem sobre o homem. (Padre Henri Chambre).
E assim o é:
de fato, “toda apropriação privada é fonte de violência e dominação do homem
sobre o homem”. Quando um ser humano não quer produzir a riqueza para outro, através do trabalho, o poder ideológico, disseminado na sociedade, o classifica rapidamente de "vagabundo", de "desajustado", atingindo-o em seu caráter moral. Depois, o poder da força, a polícia atua sobre seu corpo, aprisionando-o como "meliante". Enquanto esperava o cinema com Ana e Lucília, fui comprar um chopp, e fiquei observando os rostos das
funcionárias e dos funcionários que estavam no atendimento. Vi duas coisas bem
nítidas: insatisfação e cansaço. Para não dizerem que foi uma percepção
subjetiva, sem nenhum caráter empírico, revelei para algumas delas o que percebia,
o que foi por elas confirmado, peremptoriamente. Aquela
afirmação do Editorial de que:
O
embate entre a classe trabalhadora e patrões, entre ricos e pobres, é enfadonho
em demasia no atual cenário econômico, político e social do Brasil. A “guerra”
não existe, cravou o empresário Flávio Rocha. [...] Rocha elucidou uma fugaz
percepção de que empregado e ‘chefe’ devem, juntos, recender a economia
nacional. (A TARDE, EDITORIAL, 2018 p. A3)
O embate existe e a guerra continua sempre, desde que
continue a dominação de um ser humano, o ‘patrão’, o ‘chefe’, sobre os demais
seres humanos, os ‘trabalhadores’. E com a Reforma Trabalhista, aprovada
recentemente, essa guerra tende a se tornar mais cruel, com um grande contingente
de subempregados, praticamente sem direito a férias, espremido entre contratos
retalhados por hora, por dia, por semana, por mês. Enquanto o empresário ganhou
uma ampla vantagem legal para impor sua vontade sobre os trabalhadores e as
trabalhadoras que lutam por uma existência minimamente digna. É essa vantagem legal
que vai respaldar a exploração perversa do/a trabalhador/a nesse Brasil
contemporâneo.
A ideologia disseminada no texto
publicado, e aqui comentado, produz falsa consciência quando desdenha da luta
de classes entre ricos e pobres. Especulo que, talvez, só não tenha desdenhado
do racismo por deduzirem o impacto que uma opinião dessas teria no cenário
soteropolitano e baiano para a referida empresa de comunicação que, conforme
venho analisando, está cada vez mais conservadora. “[...] Reacender a economia
nacional” para que? Para o patrão ficar cada vez mais rico e o empregado cada
vez mais pobre, como ocorre quase sempre? Não é o capital que paga o trabalho, é o trabalho que paga o capital. Como reacender a economia nacional se
o Brasil, através de sua diplomacia subserviente aos Estados Unidos, não
consegue ampliar sua participação no mercado internacional? É culpa do
trabalhador também a subserviência dos nossos neoliberais governos?
O discurso do Editorial se
aproveita de uma realidade atual, da corrupção dos/as nossos/as representantes
políticos e da má gestão do Estado, que prejudica muito mais os mais pobres, e nem, ou pouco, afeta os ricos, para levantar a bandeira do Estado Mínimo,
constituindo-se mais uma bandeira de um punhado de empresários que desejam a
dominação política, muito embora neguem e afirmem ser a sua bandeira mais uma bandeira a ser hasteada, como se fosse a
bandeira universal dos interesses do país, o que revela a contradição logo no
início do texto que a ideologia pretende ocultar para convencer os leitores do
referido jornal.
Existem
bandeiras demais [e eles erguem mais uma] tremulando pelos rincões de um pouco
competitivo Brasil, bombardeado de apontamentos sobre o destravamento da economia
nacional. São bandeiras que tremulam sob desacreditados conceitos de
representar “realidades”, defender a luta de classes (ricos X pobres), do
protecionismo governamental ou emoldurar o levante de empregos diante da “ensandecida”
máquina do neoliberalismo. (A TARDE, EDITORIAL, p.A3)
Ora, é neoliberalismo sim a bandeira que o jornal
levanta em seus marcos institucionais, deixando-a tremular sob os auspícios de
sua direção gerêncial. Eles negam o que afirmam, sob a mentira descarada da união
entre ricos e pobres e entre patrões e empregados, sob o apelo de uma suposta
união nacional tendo como objetivo maior “reacender a economia”. É pura falácia!
A não ser que esse “reacendimento” dessa economia seja como sempre foi:
queimando as energias vitais dos/as trabalhadores/as, aumentando a
produtividade para que seus patrões fiquem mais ricos, vivam mais tempo, tenham
mais tempo, e matem o nosso tempo nas fornalhas que nosso trabalho escravizado
por leis severas, mantém acesas. A economia já está livre, mas os/as
trabalhadores/as ainda se encontram mais escravizados, e queimando no fogo do inferno das boas intenções neoliberais que o jornal A Tarde publica.
Joselito Manoel de Jesus, Professor e Poeta. Com o apoio de:
BOBBIO, N.; MATTEUCI, N.; PAQUISNO, G. Dicionário de Política, Vol I.8. ed.
Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília, 1995.
EDITORIAL. Estímulo
à economia livre. A Tarde, Salvador. Página A3, 6/3/2018.