Em torno da greve dos caminhoneiros e seus
desdobramentos, a realidade material que dita o ritmo de nossa história é
interpretada a partir de diferentes lugares sociais, ideológicos e políticos,
gerando tantas interpretações que nos conduzem a um caos no qual a compreensão
se perde em seus emaranhados fios, não nos permitindo obter uma visão de
totalidade que nos permita identificar os contornos definidores desse processo
e, a partir do exercício coerente de nosso entendimento, nos posicionarmos
melhor diante dele. As veias e vias de nossa singular América Brasil estão
obstruídas, e, o diagnóstico desse fenômeno, embora complexo, nos exige o
esforço da reflexão, pois sem esta, nos perderemos em seus circunstanciais
desdobramentos, reduzindo nosso potencial político individual e coletivo na
condição de passivos telespectadores da realidade capitalista contemporânea que
nos pede decifração, sob pena de sermos por ela devorados.
Eu pretendo abordar esta greve a partir dos
poucos instrumentos teóricos de que disponho, tais como a relação entre
objetividade e subjetividade na definição de um problema que é outra categoria
teórica, numa perspectiva filosófica dialética materialista, mesmo reconhecendo
as insuficiências de uma abordagem que categoriza a compreensão em função da
luta de classes e seus desdobramentos, arrisco-me a entrar nessa ordem do
discurso por também reconhecer que a realidade não deixou de ser capitalista,
que não estamos numa suposta “sociedade do conhecimento” e que os/as
verdadeiros/as produtores/as da riqueza desse país são espoliados por políticas
nocivas – como esta praticada pela Petrobrás nesse governo ilegítimo - que
visam atender interesses corporativos e financeiros internacionais em
detrimento do povo brasileiro.
Adotando
as contribuições teóricas de Dermeval Saviani, afirmo que não são condições
subjetivas, ou interpretações isoladas de um sindicato, ou de um grupo
espontâneo de trabalhadores e trabalhadoras que produzem uma manifestação
política consistente e coerente, mas condições objetivas, materiais,
verdadeiramente problemáticas para a população. Quando um fenômeno está
associado diretamente com a nossa produção da existência – como é o caso da
greve dos caminhoneiros desses 2018 anos da civilização ocidental –, gerando
desabastecimento de alimentos, combustíveis, materiais hospitalares, este se
constitui num verdadeiro problema, no sentido filosófico do termo, pois
problema é “uma questão cuja resposta se desconhece e se necessita conhecer”,
uma necessidade que deve ser atendida, sem o que, não podemos conviver.
(SAVIANI, 1993, p.25). Segundo este autor
Algo que eu não sei não
é um problema; mas quando eu ignoro alguma coisa que eu preciso saber, eis-me,
então, diante de um problema. Da mesma forma, um obstáculo que é necessário
transpor, uma dificuldade a ser superada, uma dúvida que não pode deixar de ser
dissipada são situações que se nos configuram como verdadeiramente
problemáticas. (SAVIANI, 1993, p.26)
Nesse sentido, problematizar a realidade, é
uma atitude filosófica, que procura estranhar o que nos parece natural,
correto, inquestionável. A filosofia tem sua importância social na medida em
que nos leva a nos assustar com a realidade, a desconfiar das verdades que a
justificam, das ordens institucionais que a legitimam, identificar as
contradições que a configuram, observando a relação entre subjetividade e
objetividade e entre outras, entre as partes e o todo e nos exigindo uma práxis
política revolucionária contra o fluxo sistemático de submissão e exploração do
ser humano, tendo a emancipação política como horizonte. Desse modo, a greve
dos caminhoneiros no Brasil neste ano de 2018 é um problema, porque é um
desdobramento político de uma totalidade mais ampla que atinge a sobrevivência
desta e de toda cadeia produtiva que afeta diretamente e indiretamente a
população brasileira, principalmente a mais pobre, exigindo o desvendamento das
tramas estruturais de sua condição, sob pena de repetir a história, “como os
nossos pais”.
Subjetividade e Objetividade na Greve dos Caminhoneiros
Diante das inúmeras interpretações sobre o
mesmo fenômeno, gerando também inúmeros entendimentos, cabe aqui a discussão
breve sobre a relação entre objetividade e subjetividade na determinação do
problema pois, segundo o já citado Saviani (1993) “Diríamos, pois, que o
conceito de problema implica tanto a conscientização de uma situação de
necessidade (aspecto subjetivo) como uma situação conscientizadora da
necessidade (aspecto objetivo). Se o problema fosse definido por necessidades
de caráter meramente subjetivas não haveria PROBLEMA, ou seja: tudo seria
problema, desde o estacionamento dos caminhoneiros no acostamento das rodovias
até o desabastecimento geral do país. Para recuperar a objetividade do problema
é preciso a reflexão, para “interrogar o real, pensar a experiência, elevá-la à
condição de experiência compreendida, para buscar sua gênese e sentido.”
(BRZEZINSKI, 2002, p.7). Para Saviani (1993) seria sair da pseudo
concreticidade para a concreticidade, do concreto sentido para o concreto
pensado. Ou seja, se caímos no subjetivismo espontaneista e imediatista nossa
interpretação do fenômeno é alienante, porque confunde a aparência do fenômeno
com sua essência, não conseguindo perceber as contradições econômicas,
políticas, sociais e culturais que o determinam, aceitando-o enquanto
inevitabilidade do acaso e pondo um ponto final à história.
As condições criadas
pela divisão do trabalho e pela propriedade privada introduziram um
“estranhamento” entre o trabalhador e o trabalho, na medida em que o produto do
trabalho, antes mesmo de o trabalho se realizar, pertence a outra pessoa que
não o trabalhador. Por isso, ao invés de realizar-se no seu trabalho, o ser
humano se aliena nele; em lugar de reconhecer-se em suas próprias criações, o
ser humano se sente ameaçado por elas; em lugar de libertar-se, acaba enrolado
em novas opressões. (KONDER, 1995, p.30)
A greve dos caminhoneiros nos mostra que a
história não acabou e que a realidade objetiva, mesmo diante de tantos
subjetivismos, se impõe quando a contradição entre capital e trabalho se
exacerba de tal modo que não há outra saída senão a luta política, expressa
inicialmente neste movimento grevista. Há, dentro desta mesma greve, uma luta
de classes, de caráter setorial, entre os caminhoneiros autônomos e as empresas
de transporte de caminhões. Os primeiros sofrem diretamente o aumento constante
e abusivo do diesel, sentido na pele a piora de suas condições de existência, ameaçado
pelo trabalho que faz em função do contexto cada vez mais precário de seu
trabalho. Os segundos vêm suas margens de lucro caírem, reduzindo seu processo
de acumulação e, por isso, agindo sorrateiramente, na provocação do denominado
“locaute”.
Em função da nova política de preços da maior
estatal do Petróleo no Brasil, acionada por um governo obediente aos ditames
internacionais de acumulação, cujos desdobramentos atingem o setor de
transportes de cargas rodoviárias no país, estão dadas as condições materiais
para a greve dos caminhoneiros, que por agora se desenrola. A contradição
produzida pelo acúmulo de capital internacional via o setor energético dos
combustíveis fósseis, na América Brasil e em toda a América do Sul, provoca o
conflito inevitável com aqueles e aquelas que transportam a riqueza e utilizam
desse combustível como elemento fundamental do seu trabalho específico. É nessa
perspectiva que podemos interrogar o real a fim de buscar sua gênese e sentido.
Desse modo, só podemos compreender os atuais
movimentos políticos se identificamos as condições objetivas que asseguram a
possibilidade da greve dos caminhoneiros e da certa "aprovação
social" que se segue, independente das inúmeras interpretações subjetivas
que são elaboradas. É identificando a contradição elementar entre capital e
trabalho que vamos percebendo e analisando os movimentos do Estado, neste
governo profundamente neoliberal, com paliativos que, logo logo, apesar das
mentiras da rede Globo e demais emissoras, mostrarão sua ineficácia, porque
protege o acúmulo do capital como um sagrado mantra, provocando ainda mais
exclusão quando articulada a outras políticas nefastas como a reforma
trabalhista e a reforma da previdência, condições materiais que desencadearão
novas greves, não apenas dos caminhoneiros, ainda este ano. Este tempo que este
governo ilegítimo acha que ganhou, para tentar consolidar suas posições
neoliberais com outros setores da burguesia brasileira, não vai dar tempo para
que ele governe essa contradição capital. Nos preparemos, pois.
Joselito
Manoel de Jesus, Professor.
Com o auxílio
de:
BRZEZINSKI.
Iria. Profissão professor: identidade e profissionalização docente. In Iria
Brzezinski (org.). Profissão professor: identidade e profissionalização
docente. Brasília: Plano Editora, 2002.
KONDER,
Leandro. O que é dialética. São Paulo: editora Brasiliense, 1995.
SAVIANI,
Demerval. Educação: do senso comum à consciência filosófica. São Paulo: edit.
Aut. Associados, 1993.