O super homem e um mito criado há muito tempo. Ele está entre os deuses e os seres humanos. Muito acima dos homens, um pouco abaixo dos deuses. Os super's fazem essa mediação e são diferentes dos heróis de sangue e ossos. Todas as sociedades tem seus heróis e seus mitos, imaginados em situações limítrofes, onde os seres humanos sentem-se impotentes diante das ameaças assombrosas dos tempos imaginados como finais. Nesses momentos, em que o super humano se faz desejado, ele é arquitetado esteticamente pelos diferentes grupos sociais e, finalmente, imposto como unidade simbólica que funciona como um calmante da psiquê social assustada com os monstros devoradores de homens e de mundos.
O super homem e a mulher maravilha nos salvam e nós queríamos ser como eles(as), o modelo que resolve imaginariamente os super problemas que ultrapassam nossas frágeis e vãs tentativas de ordenar o real de acordo com nossas ideologias. Inevitável e dialeticamente surge, como uma necessidade, o super vilão, o bode expiatório que representa o mal que nos aflige e cresce cada vez que tentamos enfrentá-los com linguagens, políticas, técnicas que, de tão antigas, só reproduzem e aumentam os problemas. Segundo Boaventura de Sousa Santos enfrentamos problemas modernos para os quais não há soluções modernas. Não há soluções para os problemas sociais colocados na contemporaneidade, utilizando-se princípios, diretrizes e metodologias reguladoras, que orientam a elaboração e implementação das políticas sociais. O velho e sempre atual maniqueísmo e suas categorias bom/mau, herói/vilão, verdade/mentira, não funciona mais como eixos para enfrentar os desafios postos na atualidade. Nem os anjos têm ao certo a medida da maldade. Já dizia Renato Russo e sua Legião Urbana. Se nem os anjos sabem, imagine nós!
Lao Tsé já afirmava que quando nomeamos o belo damos nascimento ao feio. Nesse sentido, a criação do super humano cria, como um dispositivo psíquico automático, o super vilão, a super vilã, afinal, alguém tem que pagar pelo grande mal que representa. É uma armadilha. Criamos o mal, com nossos hábitos, nossos comportamentos, nossos preconceitos, com nosso racismo, nossas baixezas e vilanias mais indecentes. Mas o diabo tem um truque: o bode expiatório. Funciona assim: se o mal é culpa de um super vilão, representado como feio, louco e degradado, que ameaça a pseudo ordem, nós, os “inocentes” e libertos de toda a culpa, estamos livres para continuarmos nossa medíocre condição humana, criando males e males que vão se somando às catástrofes que vão nos assolando. Deus é abandonado e a tal da conversão, tão alardeada, aguarda o grande final apoteótico entre Deus e o diabo, no palco e no momento indefinido, com um desfecho muito bem definido há muito tempo atrás: a vitória do bem contra o mal, do verdadeiro pelo falso, do certo contra o errado, do bom contra o mau, enfim, de Deus contra o satanás. A humanidade fica como expectadora abobalhada do grande espetáculo: o Armagedom.
Super Homem contra Lampião
Foi num livro da área de Sociologia. Lampião com suas indumentárias e características, com a “peixeira” na mão, levava o Super Homem preso, trazido pelas mãos do mais destemido e sanguinário de todos os cangaceiros do Nordeste: o Capitão Virgulino Ferreira da Silva. Aquela cena me encantou. E encantou-me justamente porque eu tinha o Super Homem em alta conta. Ele era meu herói também. Dos “Superamigos”, que tinham uma sala de justiça, sala onde ficavam os heróis maiorais do mundo à espera do pedido de socorro dos humanos tão frágeis e decadentes. Entre eles, Super Homem era o favorito de muitas crianças, incluindo-se eu. Mas não fiquei muito sentido com aquela prisão. Achei, talvez, o que Hanna Arendt chama de o milagre da ação humana. Um ser humano, nenhuma superioridade detectada, sem super poder algum, enfrenta o maior de todos os imaginários heróis e, imaginariamente também, impõe a sua força simbólica que, na cabeça de um menino cheio de imaginações, constitui poderes insuspeitos que a crítica sociológica tornou possível com desconstrução encantadora, trazendo-lhe de volta a possibilidade de agir para libertar-se de monstros bem conhecidos que o perscrutavam cotidianamente: a pobreza extrema, a fome, a violência, o alcoolismo, o desemprego, a invisibilidade que os familiares de sua mãe e seu pai lhe imputava, e aos seus irmãos do mesmo modo. Aquele menino não gostava da idéia e da condição de ser o homem invisível. Aquele que ninguém convida para uma festa de aniversário, que suas tias não viam como criança, mas como moleque; aquele que seus primos não viam como parceiro de brincadeiras, mas como incômodo; aquele que ninguém via quando havia passeios ao cinema, à praia ou à sorveteria. E, nesses momentos (momento histórico-pessoal), o milagre acontece. Um certo "lampião" usa sua inteligência, sua sagacidade e suas forças insuspeitas como saída daquela super prisão social a que já nascera encarcerado. A gente vai se fazendo líquido para poder escorrer por entre as brechas do cárcere. O encarcerado não pode ser sólido. Foi uma desconstrução não muito dolorosa, ver o “super” sendo humilhado pelo Capitão Virgulino. Este último também era um herói contado e tecido ao redor da cama de meu pai: “Setenta”, cangaceiro mais lingüístico que histórico. Lampião, um ser humano que teve sua cabeça decepada pela “volante”, prendia e humilhava o “homem de aço”. Fantástico!
Eu assisti ao último filme do Super Homem. Tem uma cena que ilustra toda a película. Bandidos de altíssima periculosidade, utilizando armas de grosso calibre, enfrentam a polícia local, prevalecendo-se de seu poder bélico. Pela construção da cena, a polícia é apresentada com uma fragilidade inacreditável, quase que indefesa, diante a forma como os bandidos foram apresentados: super vilões. Dois policiais com expressão débil – bons atores! – surgem à frente dos bandidões. O bandidão-mor, percebendo sua presença, gira a metralhadora sobre a base e aciona o gatilho sem piedade contra os frágeis agentes da lei. Então a morte dispara na velocidade da bala em direção ao alvo. E eis que, numa velocidade espantosa, o Super Homem coloca sua carcaça de aço frente às balas, salvando os bobões fardados, como foram convenientemente apresentados simbolicamente, criando dois mitos além do herói do filme: o mito dos policiais frágeis e o mito dos bandidos super poderosos. Colocados em sua fragilidade, os policiais representam a humanidade impotente diante das ameaças poderosas do mal. A força armada da humanidade, a expressão maior do poder político, não tem poder suficiente contra a firmeza e a tenacidade dos bandidões e a tecnologia do terror que eles dominam.
Entretanto, penso que o Super Homem é um covarde. Um sujeito com uma carcaça de aço, dotado de super poderes, enfrentar homens comuns é uma covardia. É como um país altamente desenvolvido tecnologicamente enfrentando um país bem menos desenvolvido. O Super Homem é a metáfora da covardia humana, que, para prevalecer seus interesses enquanto país, constroem bombas e armas super poderosas para destruírem todos aqueles que se opuserem aos seus planos de dominação. E taí a grande sacada! O Super Homem é o próprio bandidão! É o poder que não gosta de ser contrariado, é a força que não dialoga, mas que age imperativamente, sem remorso, contra os pobres diabos que preferem morrer lutando, a morrer a míngua, destituídos de sua dignidade humana. Recente leitura de um artigo de Juan Goytisolo no Jornal A Tarde (página B8 de Domingo, 21/02/2010) demonstra o "efeito super homem" no Afeganistão. "Nas zonas rurais do Afeganistão, as famílias vendem as filhas ao seu futuro marido e há matrimônios que se consumam quando a noiva tem 11 anos. Estas meninas morrem frequentemente durante o parto..."; "Segundo dados das Nações Unidas, entre 70% e 80% das mulheres são forçadas por sua família a casar com um homem que não desejam. E 84,2% das mulheres são analfabetas." Outro trecho do artigo de Goytisolo afirma que "[...] a tão celebrada 'missão de paz' - construção de estradas, escolas, abastecimento de água e eletricidade - tem se degradado paulatinamente nos últimos três anos." Esses dados demonstram que o "efeito super homem" não foi bom para os humanos do Afeganistão. Ao contrário, a presença do mito por lá funcionou às avessas e, entre uma criptonita e outra, os talibãs retomam o terreno invadido pelo poderoso senhor da carcaça de aço.
Os policiais não são frágeis, nem os bandidos são poderosos. “Fernandinho Beira-Mar”, “Marcola” e “Perna” estão devidamente encarcerados. Os policiais bobões e fracos são figurações apelativas do filme - para que o Super pareça mais super e mais bondoso do que efetivamente é -, não existem de fato. A polícia brasileira, por exemplo, é cheia de “xerifões” que não hesitam em apertar os gatilhos principalmente contra negros da periferia e pobres amarelos dos subúrbios, mas também contra muitas pessoas que, ocasional e acidentalmente, discordam de sua arrogância corporativa. A chacina ocorrida na periferia de Vitória da conquista, Bahia, evidencia esse traço da polícia que junta corpos em sua busca sedenta de vingança. Evidentemente que os bandidões existem, mas eles não são bem o que a gente construiu no imaginário coletivo. Os bandidões são alguns banqueiros, juízes, políticos, governadores, bispos e padres pedófilos. Esses, a Polícia Federal não tem poder para enfrentar e colocar na cadeia. Esses bandidões utilizam armas invisíveis, segredos de Estado, estão protegidos por uma rede de poder que suas instituições teceram no silêncio da maldade. A impunidade super secreta da lei, que recompensa o mal e se alastra corrupção afora, germina e cresce no seio da sociedade brasileira. Deus não existe nesse jogo. O ateísmo impera.
Agora já não é normal, o que dá de malandro regular, profissional. Malandro com aparato de malandro oficial, malandro candidato a malandro federal; malandro com retrato na coluna social, malandro com contrato, com gravata e capital, que nunca se dá mal... (CHICO BUARQUE, Homenagem ao Malandro http://letras.terra.com.br/chico-buarque/45135/, acessado em 01 de fevereiro de 2010, 15:01 h)
Os bandidos reais são frágeis. Uma operação policial bem feita acaba qualquer castelo de areia. “Marcola”, “Fernadinho Beira Mar” e “Perna” não são super vilões. São na verdade frutos de nossa sociedade, desdobramentos de nossos vícios. Do mesmo modo, nossos policiais não são coitadinhos fardados, ou à paisana, que defendem a ordem do bem. Alguns ainda fazem isso, ou tentam. Muitos também são cruéis, arrogantes, desonestos, corruptos, assassinos. O mal que nos assola é o mal que criamos em nosso cotidiano. Não é um super mal, uma entidade diabólica que nos espreita. É um mal bem humano, que alimentamos todos os dias, um mal que gestamos e parimos quando criamos a falsa díade do super bem contra o super mal e lhe conferimos, miticamente, uma identidade, abrindo mão de nossa responsabilidade humana e do poder de nossa ação na construção de um mundo melhor que este, que construímos com nossos pequenos e eficazes poderes.
Autoria: Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel
Não sou a favor dos talibãs!
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