Lembro-me daqueles São Joões que a minha memória poética guarda carinhosamente nos lugares mais claros e abertos de meus sentimentos. Nesses lugares de mim, há fogueiras acesas, cantigas, fogos de artifício, danças e, como dizia Manuel Bandeira, risos. Lembro-me bem que a gente se juntava, meninos de fogo, Eu, Binho, Bertinho, Cacau, Fernando, Buzigo, Zito, entre outros, e saíamos de casa em casa, visitando a pretexto de comer canjica, milho assado, amendoim e tomar um tiquinho de licor. As casas ficavam abertas, com luzes acesas em frente e o forró “comendo no centro” – expressão utilizada por meu pai e muitas outras pessoas para dizer que uma coisa estava muito boa. Expressando o exemplo joanino de solidariedade e partilha - alguns dos fundamentos para se construir um mundo novo - os pais dos coleguinhas abriam as portas e janelas de suas casas e as iluminavam, colocando no centro uma mesa forrada, geralmente com tecido quadriculado, cheia de fartura oferecida para os esperados e desejados visitantes.
Esperávamos os festejos juninos com ansiedade. Aprendíamos que nossas casas também deveriam estar enfeitadas e abertas, com fartura sendo oferecida para quem entrasse. A fartura a que me refiro era abundante, a despeito da pobreza em que nos encontrávamos. No São João, mais do que no Natal, nossos pais sempre davam um jeito de apresentar a casa como uma dádiva aos olhos e ao apetite. Alguém sempre fazia uma fogueira e aquele fumaceiro, aliado à fumaça dos fogos de artifício e à temperatura fria, para os padrões de Salvador, incensava o nosso mundo dos males e criava o clima mágico daqueles dias cheios de graças. A fogueira espantava o frio e aquecia nossa esperança e nossas mãos, que esfregávamos e passávamos no rosto frio daquelas noites. “Olha pro céu meu amor, vê como ele está lindo...” Daqui da terra olhávamos para o céu procurando balões, que àquela altura ainda eram permitidos. A gente vestia calças com retalhos costurados em cima dela, lembrando e celebrando nossas origens interioranas. Éramos, sem preconceitos, todos matutos, comumente chjamados de "tabaréus". Tinha quadrilha com tamanco de madeira e paqueras infantis. “Anarriê! Rapazes cumprimentam as damas! Olha a chuva!” E toda aquela simbólica forma da gente se apresentar unia, aproximava e criava um certo espírito de comunidade que celebra a vida.
Era tanta alegria! Mais tarde, nos despedíamos e retornávamos às nossas casas, onde encontrávamos nossos pais conversando alegremente com os vizinhos, contando histórias divertidas, curiosas e assombradas, que nos arrepiavam os ossos e entretiam nossa presença cheia de curiosidade, medo e diversão. Ficávamos como que hipnotizados com as histórias do adultos e esperávamos o desfecho de cada história que a oralidade dos nossos ancestrais nos presenteava. Era melhor que cinema. Hoje o cinema nem me causa mais curiosidade. Os desfechos e as “culhudas” já são bem conhecidas. Lembro de uma história que minha mãe contara sobre uma filha que bateu no rosto da mãe. Ela, como era de se esperar por aquelas datas, fora amaldiçoada e, toda sexta-feira à noite, transformava-se num pássaro gigante, com garras mortais que arrastavam o que estivesse pela frente e saia gritando de forma horrenda: - “Eu sou Aquela! Eu sou Aquela! Eu sou Aquelaaaaaa!” As pessoas que moravam no povoado eram obrigados a entrar no curral e ali dormirem até o fenômeno tenebroso cessar, pois, segundo minha mãe, o curral, onde ficavam bois e vacas, era abençoado. Aquilo assombrava-me muito. Depois dessa e de outras histórias, que a gente não cansava de ouvir, íamos dormir e rezávamos exageradamente alguns Pais Nossos e Ave-Marias como forma de proteção daquelas maldições tão distantes e, ao mesmo tempo, tão próximas.
O São João era assim. Não tinha mega, nem demasia. Havia fartura para ser partilhada. Não tinha banda, nem tinha festas particulares só para jovens que se encontram distantes de suas famílias, aliás, preferem desencontrar-se delas. Há menos histórias, partilhas, causos, solidariedade e um forrozinho bom de fazer gosto. Agora o São João, pelo menos o que está na moda, virou lugar para poucos dançarem, para poucos se divertirem, para poucos usufruírem. O mundo atual é apenas dos mais jovens, dos mais espertos, dos mais cínicos. As casas, suas fogueiras, suas luzes, apagaram-se com o vento do capital que depreda, precariza, mancha, individualiza, fragmenta e apaga as luzes que aqueles dias acendem ainda em mim. Viva São João!!!
Joselito da Nair, do Zé, de Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel