sexta-feira, 18 de junho de 2010

Felicidade não é Mercadoria

O ser humano precisa de muito pouco para viver. Na verdade o ser humano não vive, convive. Vive com, sempre, caso contrário não seria humano, pois, como sabemos, através dos estudos de psicologia, de antropologia, de sociologia e de arqueologia entre outros, o homo sapiens sapiens é humanizado no processo sócio-cultural em que se insere e é inserido assim que nasce. Assim, o ser humano precisa de muito pouco para sobreviver. Um pouco de alimento, umas poucas roupas, água, teto, proteção, afeto e convivência salutar. Seria perfeito se tudo fosse assim simples. A felicidade estaria dada sem muito consumo, sem muita destruição, sem fruição demasiada. Mas não o é. A felicidade é reconstruída por uma lógica individualista e consumista que cria necessidades cada vez maiores e frustrações ainda maiores e mais potentes na causa das infelicidades ambulantes que espiam as vitrines do shopping’s dos grandes centros urbanos. Nesse contexto a própria felicidade se torna um produto, uma mercadoria a ser consumida, com prazo de validade e demais atributos que uma mercadoria tem, principalmente o lucro, embutido não em seu valor de uso, mas em seu valor de troca.

No processo sócio-cultural numa sociedade capitalista há um defeito gravíssimo na formação humana. A ontogênese se torna esse monstro chamado indivíduo que nunca sacia o seu desejo, que corrompe a sua vontade, inclinando-a para o consumo egoísta. A criatura sócio-histórica desta contemporaneidade torna-se um Frankenstein que a tudo devora e assombra com sua peculiar selvageria, ocupando os espaços de maneira egoísta, pensando apenas no seu prazer imediato, invadindo sinais vermelhos, agredindo a convivência. Criatura deplorável, gestada cotidianamente no ventre desse mundo também deplorável em suas estruturas sociais e econômico-culturais. A felicidade desse mundo, desse tempo e do ser que nele é humanizado, se assim se pode dizer, é uma felicidade grotesca, assim como o é o Frankenstein. A felicidade imediata, pronta para ser consumida, usada e jogada fora, pois uma felicidade assim tem duração breve. Dura o tempo em que o indivíduo ainda sente os efeitos fugazes de sua ação. E não refiro-me apenas às drogas. Envelhece rápido, principalmente quando novas felicidades são fabricadas, substituindo velozmente as felicidades anteriores, que são abandonadas num canto da casa e da memória.

O grande problema é que a felicidade passou do momento para o produto. O produto envelhece ou é substituído por outro e a memória esquece, deixando a subjetividade insaciável, sem tempo para lembrar deliciosamente do tempo que passou, mas que na verdade, continua habitando eternamente nossa memória poética. Cito Carlos Heitor Cony, que em seu livro “Quase Memória”, nos apresenta com sua singularidade poética, seu pai carinhoso e cheio de segredos a desvendar. Seu pai e o próprio Cony se tornam eternos, pelos menos para mim e para meu filho. Mas, infelizmente, o produto como mediação para a memória esvazia de sentido a subjetividade que tenta lembrar e não encontra referências seguras para tal. A nossa humanidade vai-se empobrecendo e tudo a nossa volta vai sendo demolido e reconstruído ao sabor das demandas criadas pela propaganda. Outro dia a noite fria me lembrou o aconchego de meus pais na cama com colcha de retalhos que acolhia a todos nós. Não havia produtos, não havia laptop’s, como esse no qual escrevo, nem televisores de LCD com full HD, que eu nem sei o que é. Mas havia uma coisa bem melhor, havia algo que não passou para mim e nem vai passar nunca. A noite fria me lembrou aquele gosto bom de pai, mãe, irmão e colcha de retalhos, mal iluminada pelo candeeiro, que sempre aciona as velhas e sempre novas histórias pela memória de meus pais que a oralidade oferecia afetuosamente.

Pensando desse jeito, e sentindo de um jeito inexplicável, posso afirmar que tenho felicidades imensas. E portador dessas felicidades eu as distribuo ao meu filho, à minha mulher e aos meus irmãos. Conto histórias para meu filho e me divirto com ele ao ler os gibis atuais nessas noites que esfriam o tempo e esquentam nossa relação humana quando a noite chega. Conto-lhe algumas histórias que meus pais me contaram e, enquanto conto, revivo aquele sentimento de proteção, de pertencimento, de encontro entre seres humanos dialogando curiosos sobre o mundo que outrora se apresentava para nós e também o construíamos. Penso ser este o maior presente de pai que deixo para o meu filho: um presente a ser desembrulhado com espanto, desejo e admiração por toda a sua vida, para que consiga, quem sabe, continuar sendo feliz e assim convivendo depois que a morte me carregar para o mistério do sem-fim. Eu não desejo que meu filho se lembre de mim como aquele que comprou um Playstation 2, ou que lhe fez todas as vontades mesquinhas, mas como um pai amoroso e rigoroso que lhe contou histórias felizes e compartilhou com ele novas histórias também felizes que marcarão nossa convivência.

Há uma música que tem um trecho que é elucidativo para o que estou tentando dizer aqui: “Felicidade é uma cidade pequenina, uma casinha, uma colina, qualquer lugar que se ilumina quando a gente quer amar”. Para mim isso é a mais pura verdade. Quando fui mais pobre que sou, sofria, como sofre todo aquele que não conhece o futuro. Ou pensa que sofre. Agora penso que tive muitos momentos insubstituíveis que me tocaram a subjetividade, que assimilou desse modo e assim se apresenta, nesses momentos de escrita e reflexão. Como afirmei, minha casa era pequena e a colcha era de retalhos. O candeeiro acompanhava bruxuleando aquelas histórias ricas de humanidade que meus pais traziam em sua linguagem. Marcaram eternamente a minha existência e me proporcionaram pequenas felicidades, que reverberam por todos os tempos em que existo. Terminei de perceber que tanto faz assistir o jogo da seleção numa LCD de 40 polegadas quanto na minha velha TV de 14 que fica em meu quarto. Não é o tamanho da TV nem outras qualidades que vão mudar minha emoção, minha memória, meu desejo de estar com quem quero, relembrando e esperando. Saio do sofá da sala, onde a TV de 29 tela plana exibe o mundo da copa, deito na cama, me cubro, imagino com quem amo que o frio da África do Sul adentrou janela adentro e torço assistindo no quarto a copa do mundo em minha TV de 14 polegadas. Ritual do passado que a memória deseja renovar em gestos concretos, felicidade pequenina “[...] qualquer lugar que se ilumina quando a gente quer amar”.

Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas gentes e de Jesus, O Emanuel.

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