O mito do super homem sempre fascinou-me. É composto por um arquétipo antiqüíssimo. O primeiro é o sonho do ser humano em voar. Voar, alcançar o espaço amplo, sem fronteiras nem topografias irregulares e perigos mediatos que ameacem a transição do humano nos diferentes espaços sociais e geopolíticos. Mais do que dar saltos, o vôo é a liberdade suprema do homem, que se atira no azul sem porto e navega, superando espaços e reduzindo tempos. Superar a gravidade significa muito mais que superar a lei de Newton, é assombrar a própria humanidade, transcendendo-a, através do abandono do ser humano com seu encontro outrora inevitável com a queda. “A possibilidade de arriscar é que nos faz homens, vôo perfeito no espaço que criamos...” Damário da Cruz, nosso poeta recentemente falecido, voou sempre que pode em seus espaços criados através dos riscos que assumiu deliberadamente na busca incessante de sua humanidade plena. É assim, na verdade, que voamos: poeticamente criando espaços novos a partir de nossa iniciativa heróica e produzindo, como enxerga Hanna Arendt, o milagre humano.
O outro grande sonho da humanidade é o de ter poder suficiente para enfrentar perigos, ameaças, problemas, e resolvê-los todos com eficiência e desenvoltura. Gostaríamos de ser um “super” e superar nossas limitações, criando um mundo novo de forma mais rápida e surpreendente, reduzindo assim a nossa ansiedade. Esquecemos que, se a idade da Terra fosse proporcionalmente apresentada em 24 horas, a passagem do ser humano por Ela até agora só duraria 02 minutos. E nesses “dois minutos” já criamos todas as condições para destruir este planeta várias vezes, tanto por uma hecatombe nuclear, tanto pela destruição ecológica. Nenhum animal conseguiu tal feito, o que nos faz super’s enquanto espécie. E depois da Ciência esse poder foi enormemente ampliado. Com a ciência e a tecnologia criamos espaços novos de forma revolucionária. Só no assombroso século XX, em menos de 100 anos, superamos a barreira do som com aviões supersônicos; fomos ao espaço, pisamos na lua, mandamos satélites por toda a Via Láctea, investigamos o longínquo universo e suas inúmeras galáxias. Construímos submarinos e fomos às funduras do oceano; investigamos e descobrimos o micro universo que nos compõe até chegar ao mapa da vida: o DNA; construímos edifícios gigantescos que furam o céu e máquinas de matar poderosíssimas, aliás, ficamos viciados em matar, em explodir.
Tornamo-nos super’s em matar a natureza e ao próprio ser humano. Mas não conseguimos, com a nossa “espada científica”, resolver problemas aparentemente mais simples: o de reduzir o trabalho e o de distribuir a renda. É como afirma Cristovam Buarque, não necessariamente com as mesmas palavras: nunca fomos tão integrados culturalmente mas, ao mesmo tempo, nunca fomos tão desintegrados socialmente. A ciência, como previu Rosseau, não construiu um mundo melhor. Seu poder foi utilizado para a morte, para a destruição. Tornou-se instrumento do Capital e, servindo à busca do lucro, tornou-se uma ciência inconseqüente e perversa. A ciência, desde sua origem, abandonou a poesia e encontrou o seu próprio limite. Tornou-se um mito, tanto quanto todos os mitos que ela mesma execrou. Sem poesia a ciência naufraga em seu próprio oceano de descobertas, pois a poesia revigora, questiona, assombra e encanta a ciência e dá sentido à construção de novos espaços, desde que tais espaços sirvam verdadeiramente à humanidade. É o que pergunta o genial Gilberto Gil em sua música “Queremos saber”.
Queremos saber
o que vão fazer
com as novas invenções
queremos notícia mais séria
sobre a descoberta da antimatéria
e suas implicações
na emancipação do homem
das grandes populações
homens pobres das cidades
das estepes, dos sertões
queremos saber
quando vamos ter
raio laser mais barato
queremos de fato um relato
retrato mais sério
do mistério da luz
luz do disco-voador
pra iluminação do homem
tão carente e sofredor
tão perdido na distância
da morada do Senhor
Nossa suposta capacidade de ser super’s, com a utilização da ciência como instrumento de poder, revelou que nossa razão é também insanidade, loucura, pois aumentou nossa distância de um mundo utópico, deixando o ser humano “tão carente e sofredor, tão perdido na distância da morada do Senhor.” E ainda criamos o Super Homem e a Mulher Maravilha como metáfora dessa humanidade poderosa, que almeja o controle de tudo, mas que não consegue controlar a própria vontade auto destruidora. “Não faço o bem que quero, mas o mal que não quero”, afirmava o angustiado apóstolo Paulo em uma de suas cartas.
O super homem é uma farsa ideológica e infantil. Ele precisa de uma carapaça de aço, em virtude de sua origem extraterrena para enfrentar balas, canhões, foguetes e trovões sabendo que sua intervenção aparentemente heróica será bem sucedida. Até bala no olho o “cabra” já levou na ficção científica e não teve nem um arranhão. O super homem pode ser um mito, mas está muito longe de ser um herói, pois o verdadeiro herói não pode deixar de ser humano, pois, a condição de seu heroísmo é a ameaça real da morte que o herói desafia em nome de suas crenças, valores e convicções. O herói leva sobretudo sua coragem e suas convicções baseadas em seus valores e enfrenta, em primeiro lugar, seus próprios medos, em nome, quem sabe, de uma humanidade reconciliada consigo mesma.
Em oposição ao mito do super homem proponho o mito da super humanidade que o herói encarna. A super humanidade é possível a qualquer humano, com suas fraquezas e “desgracenças”. A super humanidade é o milagre humano da revolução que nossas crenças, valores e sentimentos produzem em nós e ensejam a ação inesperada que constitui a essência do milagre. Aquele filme de Kevin Costner, “Dança com Lobos”, tem uma cena, logo no início do filme, onde o milagre humano acontece, mesmo que de forma controversa. A passagem de cavalo e cavaleiro pelo corredor de balas inimigas enviando a morte como mensagem, cujo cavaleiro busca a morte como solução para o destino perneta que se avizinhava, a partir da constatação seca de um médico negligente, disparou o orgulho dos demais soldados e produziu o milagre humano que desencadeou o inesperado e suscitou forças insuspeitas que deram um fim àquela batalha. Nesse sentido, muitas pessoas cheias de super humanidades podem ser citadas nesse breve espaço de linhas: Madre Teresa de Calcutá, Nelson Mandela, Irmã Dulce, Santo Dias, Joana Angélica, os Revoltosos Malês, Paulo Freire, entre tantas outras pessoas cheias de super humanidade, que buscam a vida em plenitude, mesmo que arrisquem as suas em vôos inesperados e surpreendentes, que nos admiram e nos espantam de alegrias, pois há sempre, mesmo que aparentemente frágil, a possibilidade de enfrentar os perigos, ameaças e hecatombes, armados apenas de convicções, de valores e de atitudes inesperadas que revelam a coragem desafiante da super humanidade que reside em nós. A nossa condição humana pode transcender em vôo e construir o espaço não previsto pela fatalidade e pelo determinismo que o poder e a insanidade científica, política e religiosa nos impõe como desgraças inevitáveis.
Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel