A empresa São Luiz é dona da rodovia que leva as pessoas
à Jacobina e toda a região adjacente. Os motoristas se sentem os capitães da
nave onde os súditos devem, obedientes, calarem-se no desconforto oferecido pela
empresa, sem poderem reclamar. Por causa disso na terça-feira, 19/11/2013, no horário das 23:59, tive
uma discussão com um motorista da Empresa São Luiz, detentora do direito
exclusivo de transporte coletivo de pessoas na região que envolve uma capitania
hereditária: Capim Grosso, Jacobina, Senhor do Bonfim, Juazeiro, Campo Formoso,
Caldeirão Grande, Miguel Calmon e todas as cidades e povoados que ficam neste
trajeto. Aqui no Brasil e na Bahia é assim: a tão proclamada concorrência que o
capitalismo propõe é atravessada pela cultura patrimonialista, que doa – ao
povo baiano e brasileiro que doer – imensas faixas de território rodoviário de poder
para quem apoia o governo nas eleições com suas verbas generosas. Desde que sou
criança, e já tenho 44 anos, essas empresas existem. Nunca ouvi falar em
abertura de licitação e em concorrência na prestação de serviços de transportes
público e coletivo nas capitanias rodoviárias da Bahia. Com o município é a mesma
coisa. Os poderosos reunidos com seu “podres poderes” no SETPS, mandam e
desmandam no serviço – serviço ou exploração do povo? – de transporte público
de Salvador.
O ônibus estacionou meia hora antes da partida. O
motorista da São Luiz conferiu as passagens e a maioria dos passageiros
adentrou o transporte. Mas o tempo foi passando e o ar condicionado desligado,
com as janelas fechadas foi gerando mal-estar. Alguns passageiros foram abrindo
as janelas. Uma passageira solicitou minha ajuda e eu abri a dela, pois a minha
já havia sido aberta pela pessoa que estava na poltrona da janela. Então desci
e falei com o motorista, a princípio educadamente, sobre o problema. Ele
respondeu-me que a regra era ligar o ônibus somente 05 minutos antes da saída.
Tudo bem. Um grande problema é que as regras só valem para os “fracos de alma”.
Disse-lhe, já em tom de descontentamento, que alguns passageiros já haviam
aberto a janela e que eu abriria a minha também, devido ao abafo e ao mal-estar
provocado por ele. Ele respondeu-me rispidamente que o problema era meu. Então
eu o chamei de filho da puta e começou uma discussão nada agradável, com
aquelas ofensas que só pessoas fora de sintonia sabem fazer. Depois falou que
chamaria a polícia e eu falei que se fosse preso por algo tão tolo ele sofreria
as consequências imprevisíveis de uma pessoa extremamente ofendida em sua
dignidade.
Alguns motoristas da São Luiz são despreparados, embora haja
outros muito gentis e preparados para lidar com os problemas que surgem. Eu não
havia discutido com motorista algum, desde quando entrei como professor da UNEB
em Jacobina, a não ser quando fomos denunciar na AGERBA os mosquitos que vinham
nos picando de Salvador a Jacobina e vice-versa, embora nenhuma providência
tivesse sido tomada. O que percebo, no fundo de toda essa cena é a questão do
poder. Não sejamos tolos. O poder é um jogo que pode tornar-se perigoso se não
houver bom senso. Foucault estava certo: a gente denomina de poderosos aqueles
e aquelas que estão no centro dos holofotes da política, mas devíamos estar
atentos também ao exercício efetivo do poder que ocorre em nosso cotidiano e
que percorre todo o tecido social. Na relação professor-aluno há exercício do
poder, não apenas e exclusivamente do professor, como alguns alunos e alunas
querem acreditar, mas dos alunos e das alunas também. A relação entre médico e
paciente é outra relação de poder perigosíssima, nesse caso, geralmente do
médico, que escapa, quase sempre, ileso das negligências, perversidades e atrocidades
cometidas no espaço de poder do hospital ou do posto de saúde.
Claro, toda relação humana é uma relação de poder, que pode
ser mais democrático, sensível e humano ou mais autoritário, insensível e
desumano. Um motorista de um ônibus também exerce imenso poder. Alguns utilizam-se
das regras e do modo como o sistema de transporte é construído para
posicionar-se autoritariamente frente ao passageiro, impondo-lhe sua vontade,
muitas vezes afetada pela sua vida pessoal. Um motorista assim não pode ficar
atrás de um volante, porque nem todos os passageiros passam. Alguns, como eu,
ficam. E não ficam bem. Eu utilizo a escrita como arma de defesa, outros podem
utilizar outras armas, talvez menos eficientes, mas mais letais, mais eficazes
e, nesse caso, a polícia chega tarde, aliás, a polícia sempre chega depois,
como nos filmes idiotas onde um herói ou uma heroína resolvem tudo e o som das
sirenes surge no horizonte dos nossos ouvidos, sempre no final do filme. Eu
percebi o jogo da motorista. Ele não queria reclamação ou contrariedade. Não
está preparado para lidar com o público e suas necessidades, pois, sendo a
empresa na qual ele trabalha dona da capitania hereditária BR 324-Miguel
Calmon, via Jacobina, não há opção para o passageiro, que deve curvar-se à
inevitabilidade de um serviço ruim de transporte coletivo, garantido por uma
AGERBA conivente com esses descasos, talvez por motivos políticos eleitorais.
A menção do motorista de chamar a polícia por uma discussão
banal é sintoma de uma sociedade acostumada a silenciar, a impor uma vida de gado para as pessoas e a
acionar o capitão do mato contra o escravo que se liberta da tirania e funda o
seu quilombo numa poltrona de um ônibus da São Luiz. Mas o que o motorista desconhece é que
o escravo não é escravo, foi escravizado, mas se liberta com fúria e, nessa
fúria, não esquece o insulto. Por isso este texto passa a existir, por causa de
uma memória que rejeita o ultraje e o desrespeito e arregaça os teclados contra
isso. Eu não sou um tipo de homem que queima calado no inferno de um ônibus
fechado. Eu sou um tipo de homem que reclama o desconforto e briga pela
restauração da sua dignidade em qualquer espaço de poder, seja ele exercido por motoristas, por taxistas,
por policiais, por professores, por governadores ou pelo diabo que os carreguem.
Joselito de Jesus