quinta-feira, 21 de novembro de 2013

ENQUANTO TODOS OS HOMENS E TODAS AS MULHERES EXERCEM SEUS PODERES



A empresa São Luiz é dona da rodovia que leva as pessoas à Jacobina e toda a região adjacente. Os motoristas se sentem os capitães da nave onde os súditos devem, obedientes, calarem-se no desconforto oferecido pela empresa, sem poderem reclamar. Por causa disso na terça-feira, 19/11/2013, no horário das 23:59, tive uma discussão com um motorista da Empresa São Luiz, detentora do direito exclusivo de transporte coletivo de pessoas na região que envolve uma capitania hereditária: Capim Grosso, Jacobina, Senhor do Bonfim, Juazeiro, Campo Formoso, Caldeirão Grande, Miguel Calmon e todas as cidades e povoados que ficam neste trajeto. Aqui no Brasil e na Bahia é assim: a tão proclamada concorrência que o capitalismo propõe é atravessada pela cultura patrimonialista, que doa – ao povo baiano e brasileiro que doer – imensas faixas de território rodoviário de poder para quem apoia o governo nas eleições com suas verbas generosas. Desde que sou criança, e já tenho 44 anos, essas empresas existem. Nunca ouvi falar em abertura de licitação e em concorrência na prestação de serviços de transportes público e coletivo nas capitanias rodoviárias da Bahia. Com o município é a mesma coisa. Os poderosos reunidos com seu “podres poderes” no SETPS, mandam e desmandam no serviço – serviço ou exploração do povo? – de transporte público de Salvador.
O ônibus estacionou meia hora antes da partida. O motorista da São Luiz conferiu as passagens e a maioria dos passageiros adentrou o transporte. Mas o tempo foi passando e o ar condicionado desligado, com as janelas fechadas foi gerando mal-estar. Alguns passageiros foram abrindo as janelas. Uma passageira solicitou minha ajuda e eu abri a dela, pois a minha já havia sido aberta pela pessoa que estava na poltrona da janela. Então desci e falei com o motorista, a princípio educadamente, sobre o problema. Ele respondeu-me que a regra era ligar o ônibus somente 05 minutos antes da saída. Tudo bem. Um grande problema é que as regras só valem para os “fracos de alma”. Disse-lhe, já em tom de descontentamento, que alguns passageiros já haviam aberto a janela e que eu abriria a minha também, devido ao abafo e ao mal-estar provocado por ele. Ele respondeu-me rispidamente que o problema era meu. Então eu o chamei de filho da puta e começou uma discussão nada agradável, com aquelas ofensas que só pessoas fora de sintonia sabem fazer. Depois falou que chamaria a polícia e eu falei que se fosse preso por algo tão tolo ele sofreria as consequências imprevisíveis de uma pessoa extremamente ofendida em sua dignidade.
Alguns motoristas da São Luiz são despreparados, embora haja outros muito gentis e preparados para lidar com os problemas que surgem. Eu não havia discutido com motorista algum, desde quando entrei como professor da UNEB em Jacobina, a não ser quando fomos denunciar na AGERBA os mosquitos que vinham nos picando de Salvador a Jacobina e vice-versa, embora nenhuma providência tivesse sido tomada. O que percebo, no fundo de toda essa cena é a questão do poder. Não sejamos tolos. O poder é um jogo que pode tornar-se perigoso se não houver bom senso. Foucault estava certo: a gente denomina de poderosos aqueles e aquelas que estão no centro dos holofotes da política, mas devíamos estar atentos também ao exercício efetivo do poder que ocorre em nosso cotidiano e que percorre todo o tecido social. Na relação professor-aluno há exercício do poder, não apenas e exclusivamente do professor, como alguns alunos e alunas querem acreditar, mas dos alunos e das alunas também. A relação entre médico e paciente é outra relação de poder perigosíssima, nesse caso, geralmente do médico, que escapa, quase sempre, ileso das negligências, perversidades e atrocidades cometidas no espaço de poder do hospital ou do posto de saúde.
Claro, toda relação humana é uma relação de poder, que pode ser mais democrático, sensível e humano ou mais autoritário, insensível e desumano. Um motorista de um ônibus também exerce imenso poder. Alguns utilizam-se das regras e do modo como o sistema de transporte é construído para posicionar-se autoritariamente frente ao passageiro, impondo-lhe sua vontade, muitas vezes afetada pela sua vida pessoal. Um motorista assim não pode ficar atrás de um volante, porque nem todos os passageiros passam. Alguns, como eu, ficam. E não ficam bem. Eu utilizo a escrita como arma de defesa, outros podem utilizar outras armas, talvez menos eficientes, mas mais letais, mais eficazes e, nesse caso, a polícia chega tarde, aliás, a polícia sempre chega depois, como nos filmes idiotas onde um herói ou uma heroína resolvem tudo e o som das sirenes surge no horizonte dos nossos ouvidos, sempre no final do filme. Eu percebi o jogo da motorista. Ele não queria reclamação ou contrariedade. Não está preparado para lidar com o público e suas necessidades, pois, sendo a empresa na qual ele trabalha dona da capitania hereditária BR 324-Miguel Calmon, via Jacobina, não há opção para o passageiro, que deve curvar-se à inevitabilidade de um serviço ruim de transporte coletivo, garantido por uma AGERBA conivente com esses descasos, talvez por motivos políticos eleitorais.
A menção do motorista de chamar a polícia por uma discussão banal é sintoma de uma sociedade acostumada a silenciar, a impor uma vida de gado para as pessoas e a acionar o capitão do mato contra o escravo que se liberta da tirania e funda o seu quilombo numa poltrona de um ônibus da São Luiz. Mas o que o motorista desconhece é que o escravo não é escravo, foi escravizado, mas se liberta com fúria e, nessa fúria, não esquece o insulto. Por isso este texto passa a existir, por causa de uma memória que rejeita o ultraje e o desrespeito e arregaça os teclados contra isso. Eu não sou um tipo de homem que queima calado no inferno de um ônibus fechado. Eu sou um tipo de homem que reclama o desconforto e briga pela restauração da sua dignidade em qualquer espaço de poder, seja ele exercido por motoristas, por taxistas, por policiais, por professores, por governadores ou pelo diabo que os carreguem.

Joselito de Jesus

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