Estou atônito. Tudo está ocorrendo
numa velocidade que minha percepção parece inútil. Depois do desaparecimento
dos quintais fiquei órfão desse espaço geográfico pequeno e imenso que também
me pariu.
Do trampolim do meu quintal
eu dava saltos no universo
em meu caderno de chão
eu rabiscava os meus versos.
No caminho de formiguinhas
que trilhavam sete anões
eu namorava a bruxa má
e aprendia muitas lições.
(Joselito Zé)
E tudo foi precipitando-se
velozmente sobre mim de modo que tive de refugiar-me nas ocupações múltiplas da
produção da existência a fim de proteger-me do mundo em convulsão. Depois do
quintal eu não tive mais paz. Chegaram os blocos, as areias e o cimento e foram
afunilando, reduzindo, enforcando os quintais que, desesperados, foram
sucumbindo como espaço de socialização infantil e juvenil. A produção do espaço
aniquilou o espaço da imaginação, dos ensaios criativos de vida que as crianças
elaboram enquanto o mundo trabalha sua incessante máquina de construção e
destruição de formas culturais singelas que existem em pequenos espaços de
vida, tais como os quintais. O poder atropela. E o futuro, com suas portas que abrem sozinhas, chegou aos shoppings, e não mais espanta
nenhuma criança. Tudo parece dado, claro e autoexplicável, contribuindo para a
perda de força da Filosofia.
Entretanto, a
capacidade de espanto deve ser exercida sempre por cada um de nós, a fim de
enfrentarmos a força destruidora da naturalização. O racismo, por exemplo,
exercido sem tréguas durante tantos séculos, foi sendo naturalizado a ponto de
aceitarmos milhares de corpos de jovens negros como parte das estatísticas
anuais e, ao mesmo tempo, nos espantarmos quando algum jovem branco é
assassinado, ou é preso por envolvimento no mundo do crime. A recuperação da
capacidade de filosofar nos faz perguntar: por que esse fenômeno existe? Por
que o movimento negro não faz uma reflexão contínua, profunda e duradoura sobre
isso? Por que a possibilidade de um homem negro em Alagoas morrer por homicídio é altíssima
enquanto que, no mesmo estado, a possibilidade de um homem branco ser assassinado é baixíssima?
Como o racismo é reproduzido tão eficazmente no tecido social, apesar de todas
as denúncias, lutas, movimentos contrários? Como a gente aprende a ser racista?
Quem é o (a) nosso (a) professor (a) e qual a sua eficiente didática no ensino discreto
do racismo? Como é que começa a negação do povo negro ao acesso à educação, à
saúde, à segurança, etc.? Há uma espécie de labirinto social que direciona o
(a) jovem negro (a) para determinadas vias e não para outras? Quem são os
principais responsáveis por esta construção sutil, porém eficiente? Os Governos
que representam os interesses de setores organizadíssimos da sociedade? Grupos
de poder político, econômico e ideológico que se organizam na Bahia tendo como
critério fundamental de discriminação a cor da pele? Qual o papel das redes de tv da Bahia nesse
processo? E os jornais de Salvador? Como associam a violência nas periferias,
onde os negros são as principais vítimas, com a questão do racismo? O que a universidade
baiana tem feito diante de estatísticas tão sombrias para os jovens negros da
Bahia? O que anda fazendo a Secretaria de Educação sobre tal problema? Como a negritude é representada em suas práticas discursivas? O que a
classe média negra faz? Protege seus filhos na rede de inclusão a que tiveram
acesso? Fingem que agora pertencem a outro nível social e que tais questões já
foram superadas por ela? Será que conseguem voltar à periferia para provocar
tais discussões e criar potenciais de comportamento para o combate ao racismo? Como
os (as) policiais são preparados (as) pelos seus professores? Como eles (as)
apreendem a relação entre cor da pele e violência? Será que conseguem perceber
a formação do marginal pela estrutura política, jurídica, econômica e cultural
de nossa sociedade baiana e brasileira? Como é que funciona a fábrica de marginais e a indústria do homicídio na Bahia? Por que é tão difícil prender e manter
na cadeia um sujeito de pele branca? Parecem perguntas fáceis. E são. Mas as
respostas são muito mais difícieis, porque nos implica a todos (as) nesse
trágico fenômeno. São essas e muitas outras questões que me vêm à tona, embora
saiba que muitas outras ficam na latência gritante de minha própria
contradição, mas que, se refletidas num plano mais amplo de nossa sociedade
pode trazer emancipação de muitos do racismo que nos envolve.
Estamos num ano
eleitoral. Devemos levantar dados, colocar policiais para defender, além do
turista, o povo de nossa terra, que nunca foi uma boa terra para o seu povo.
Precisamos acender nossas luzes nessa escuridão do mundo, que na propaganda se
mostra sorridente, iluminado, colorido, afável e convidativo, mas que nas
práticas concretas das relações sociais, tira a máscara e exerce seus podres
poderes com o exercício da força impiedosa de uma arma oficial, principalmente contra quem tem a pele negra.
Joselito da
Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel
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