segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

ROLEZINHO NO PENSAMENTO

Estou de férias e ainda doente. Não sei o que está se passando comigo, mas não estou bem. Tenho ainda o compromisso de preparar a disciplina Filosofia da Educação para Luciene querida, que ensinou e ensina a muita gente a dizer que ama o outro, sem medo da pieguice. Aproveitei um tempinho para me divertir, dando um “rolezinho” no pensamento, a fim de compreender melhor esse fenômeno apresentado por jovens e adolescentes contemporâneos das maiores cidades brasileiras.
Bem, para responder a tal desafio utilizo-me dos referenciais teóricos do materialismo histórico dialético, que, apesar de tão combatido, ainda me parece a melhor referência de análise e síntese do fenômeno social do “rolezinho” nos shoppings centers das grandes metrópoles brasileiras. O “rolezinho”, visto pela dialética marxista, é fruto de múltiplas determinações, entre as quais, posso citar as seguintes:
1.    Modo de ocupação do espaço urbano pelo capital imobiliário nas grandes metrópoles, destruindo espaços públicos de lazer e de esporte;
2.    Aumento da violência nos grandes centros urbanos;
3.    Reificação permanente da mercadoria através da propaganda, colocando os produtos e suas marcas como sinais contemporâneos de sucesso, distinção e felicidade;
4.    Ascenção de grupos sociais ao mercado de consumo.
Irei concentrar-me na primeira determinação do “rolezinho”. O modo de ocupação do espaço urbano de Salvador foi destruindo a maioria dos espaços de encontro dos adolescentes, jovens e adultos das periferias da cidade. Quando eu me deslocava de ônibus pela cidade – quem se desloca de ônibus enxerga mais longe, pois está no alto - percebia todos os campinhos que havia nos trajetos por onde passava. Nos dias de sábado e de domingo o baba (partida de futebol amador) rolava e algumas dezenas de pessoas ocupavam esses espaços de esporte e lazer, nesse caso, preponderantemente masculinos. Esses campinhos desapareceram do mapa soteropolitano, sendo ocupados por viadutos, estações de metrô, edifícios e estradas. Para onde foram aquelas dezenas de pessoas que se encontravam no fim de semana para exercer sua atividade física e social? O poder público nem pensou nas consequências do desaparecimento desses espaços de encontro. Mas o poder privado pensou. Cada vez mais surgem campos de futebol “society”, feitos com grama sintética, bem menores que os extintos campinhos de barro, e a um preço por duas horas de utilização. O espaço social, público e gratuito do baba foi transformado em mercadoria, assegurado por um valor de troca que, certamente, impede adolescentes, jovens e adultos pobres de ingressarem em seus privados espaços de distinção.
O arquiteto Paulo Ormindo de Azevedo, no jornal A Tarde de ontem – domingo, 19/1/2014 – reclama desse modo destrutivo de ocupação, vindo ao encontro do meu raciocínio:
Cerca de R$ 420 milhões foram gastos em benefício do carro (recentemente em Salvador, Bahia), que não tem mais futuro, e nenhum centavo em favor de outros modais, do pedestre, do patrimônio histórico, da arborização e do tratamento das feridas que provocou. (AZEVEDO, 2014, p.A2)
Um dos desdobramentos disso é que os futuros craques de futebol só podem surgir se forem tutelados por um time de futebol, com um empresário nos calcanhares, marcando em cima e vislumbrando lucros com aquele moleque-mercadoria que se apresenta nos gramados privados de suas instituições. Outro desdobramento é que as moças e os rapazes, principalmente os mais pobres, não têm mais espaços públicos onde possam se encontrar para exercer sua ludicidade, sua capacidade criativa em comum, sua rebeldia necessária diante de um Brasil governado por facínoras, canalhas, corruptos, homens indigestos, com poucos resquícios de humanidade, de altivez e de liderança. Até a Igreja Católica fechou as portas para a juventude. Ou seja: para uma juventude que ela não pode controlar, nem impor suas condições de ser humano na contemporaneidade, sob pena de correr o risco de defrontar-se com a necessidade de ter de tomar posições políticas claras contra o modo de operar do sistema capitalista.

A rede virtual surge então como um espaço propício de encontro de jovens e adolescentes privados de espaço concreto. Nesse espaço eles criam, recriam, interpretam, redirecionam, criticam, manipulam suas próprias subjetividades, constroem caminhos alternativos de exercício da ludicidade, da solidariedade, do status quo, e projetam símbolos atravessados pelo modo como a nossa sociedade capitalista orienta seus valores através da propaganda, da incitação ao consumo, da projeção de um status quo baseado nos símbolos do consumo, com suas marcas de vida de gado. Nessa arquitetura possível de novos humanos, os jovens e adolescentes, com o exercício de si nos estreitos espaços que Salvador oferece para quem é pobre, para quem é negro, para quem não adentra nos padrões que podem passar despercebidos nos shopping’s, o rolezinho se configura como um movimento criativo e espontâneo de subjetividades tecidas nesse contexto de negação de espaços. É um fenômeno urbano da Geografia.

Quero me afastar aqui de uma ideologização dos jovens e adolescentes contemporâneos, como se eles e elas fossem os (as) revolucionários (as) do presente. Nada disso. São como são, são em função do seu chão, do seu modo, a seu modo, sob o modo e sem modos como nós nos exercemos. Mas apresentam a fatura desse modo que vivemos em comum. Questionam, aos seus modos e falta de modos, a escola, a igreja, a empresa, o emprego, o salário, o governo, o futuro, o trabalho, o caralho! E precisam encontrar-se nos espaços concretos possíveis que lhes restaram, para se verem, para atualizarem suas imagens e voltarem para avaliar o impacto dessas imagens nos espaços virtuais onde realizam suas fantasias, no pouco espaço concreto de “realidade” que sobrou.
Toda instituição luta para marcar o povo e se apropriar de sua força: Partidos, igrejas, bancos, governos, empresas. Todos (as) têm seus “ferros de marcar gado”, todos (as) têm seus currais, seus boiadeiros, seus capatazes e uns remetem aos outros. A apropriação do ser humano na contemporaneidade não é exclusiva, nunca foi. Somos tomados por ideias que, invariavelmente, nos levam ao consumo desenfreado. Nas entrevistas que vi num programa de televisão sobre o fenômeno do “rolezinho”, percebi que o dinheiro que esses jovens e adolescentes têm, utilizam-no para o consumo de marcas, onde realizam, com seus pais, sua entrada triunfal no mundo das aparências, aparentando, de fato, o que são neste momento histórico. Os garotos e as garotas estão em seu momento. Certo. Minha preocupação foi com seus pais, tão adolescentes quanto seus filhos, realizando, nesses últimos, suas adolescências tardias. Um dos pais se sentia orgulhoso de poder dar ao filho o acesso à “roupas de marca” e, certamente, vê-lo na internet com suas centenas de seguidoras e seguidores, exercendo uma liderança virtual com desdobramentos políticos e sociais ainda não bem compreendidos. Uma mãe afirmava que aparência é tudo no mundo contemporâneo. E, para meu desgosto, talvez esteja certa. Não sou contra pais que foram jovens e adolescentes pobres e negados, como eu, terem acesso ao poder de compra e de propiciar aos filhos e às filhas algum conforto e acesso que nunca tiveram. Não gosto da ideia de fazerem isso sem nenhuma reflexão e ponderação.  
Os shoppings reagem com repressão e discriminação contra os “rolezinhos”. Mas onde os jovens irão se encontrar se a propaganda de incentivo ao consumo, a destruição dos espaços públicos de encontro e a transformação de quase tudo em mercadoria indicam os shoppings como espaços privilegiados de encontro? O rolezinho expressa a contradição do capital em Salvador e demais cidades do mesmo porte. O “rolezinho” só pode ser compreendido nessa “totalidade concreta” que o método dialético oferece.

Nada é isolado. Isolar um fato, um fenômeno, e depois conservá-lo pelo entendimento neste isolamento, é privá-lo de sentido, de explicação, de conteúdo. É imobilizá-lo artificialmente, matá-lo. É transformar a natureza – através do entendimento metafísico num acúmulo de objetos exteriores uns aos outros, num caos de fenômenos (LEFÈBRE, 1975, p.238)


A produção do “rolezinho”, portanto, não é uma fabulação de desocupados, de adolescentes vagabundos, com tendências ao crime, mas um fenômeno que o próprio capitalismo e sua ocupação gananciosa do espaço propicia. O rolezinho é um fenômeno social produzido por adolescentes e jovens que procuram espaços possíveis e concretos de socialização no seio das contradições da ocupação urbana no mundo brasileiro contemporâneo, principalmente em cidades como Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro, entre outras. O mundo virtual remete ao real e vice-versa, um alimentando-se do outro, um escondendo o outro e escondendo-se do outro, num jogo de aparências, um reconfigurando o outro, num processo intermitente de construção de novidades, sendo uma dessas, o “rolezinho”. Bom. Agora “vou dar um “rolé” por aí.” 

Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel
Com a ajuda de
AZEVEDO. Paulo Ormindo de. Violações urbanas. Jornal A Tarde, Salvador, domingo, 19/01/2014.
LEFRÈBRE, Henri. Lógica formal, lógica dialética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,1975.

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