Minha
família nunca foi muito católica. Meu pai era um cabloco das caatingas de
Remanso, umas paragens onde a igreja não se arriscava a dar às caras, pelo
menos por aqueles idos entre o final dos anos 30 e meados dos anos 50. Aliás,
religião nunca foi o forte de meu pai. Em seu universo linguístico não havia igrejas,
nem padres. Ele fazia suas orações ao deitar e ao levantar. Orações clássicas
como o “Pai Nosso” e a “Ave Maria”. Fora disso só uma missa em momentos
festivos ou lúgubres, como casamentos ou missas de sétimo dia, mesmo assim de
algum amigo muito chegado ou parente como irmão e mãe. Na verdade, o
catolicismo entrou em nossa casa através de minha mãe, esta sim, trazia a
insígnia da igreja em sua ação convertedora. Ela me levava à Igreja da
Liberdade, bairro mais populoso de Salvador. Ainda me lembro o nome da Igreja:
São Cosme e São Damião. Lá eu me batizei, aos onze anos de idade. Um dos
maiores conflitos no período da catequese obrigatória era o baba. “Baba”, em
Salvador, é a mesma coisa que futebol, pelada.
Fato
é que a “bendita” catequese era num domingo pela manhã, bem na horinha do baba.
Às vezes eu me escondia dentro do guarda-roupa para, pouco depois, sair às
escondidas para o tão desejado e imprescindível baba da semana. Lá, os
guerreiros do futebol, organizados em equipes, digladiavam-se em torno da bola,
que girava em nossas cabeças de segunda a segunda. Éramos bola. Girávamos
mundo. Éramos bola, mas também lama. Derretíamos na chuva, escorríamos até
parar no primeiro córrego que encontrássemos. Naquela época o Calafate era uma
rua cheia de minadouros que formavam córregos e fontes, onde as mulheres iam
lavar roupa e os meninos iam “lavar a alma”. Uma piaba era convertida em baleia
por nossa prodigiosa imaginação. Nela navegávamos os sete, oito, nove mares.
Inspirados no desenhos da TV, nos transformávamos em “Aquaman”, “Namor”, o
príncipe submarino, sereias e sereios, que combatiam os vilões dos oceanos
afora... Éramos de água também. Aliás, éramos formados pelos quatros elementos:
menino é água, menino é terra – quando se misturam é lama – menino é ar e, como
dizem as mães, “menino é fogo!”
E
aquele mundo era nosso santuário. Meninos-sacerdotes, celebrantes da vida
redonda, que rolava em nós.
Mas, quando se tratava de ir à igreja... Ó dor, ó vida! Ô
coisa chata! Salvo aquele padre sorridente e sempre bem humorado que nos
contava as histórias de um modo singular, como se nos guiasse por dentro da
trama para, ao final, oferecer-nos sua palavra entre as nossas, com a mesma
alegria e esperança, esperança esta que não estava em suas enunciações, mas em
seu próprio jeito de ser. E era somente aquele momento que me interessava.
Tanto é que quando o padre foi embora para outra comunidade eu nunca mais
apareci por lá, apesar dos reclamos de minha mãe. Creio até que freqüentei
bastante para um menino de lama como eu! Tinha domingos que eu saia vestido com
o short por baixo da calça, e, ao invés de ir para a São Cosme e São Damião,
fazia uma manobra não muito difícil e ia me divertir com meus colegas de bola e
de lama, cumprindo à risca aquele ritual sagrado dos domingos... A missa? Não.
O baba.
A
influência religiosa de minha mãe foi muito grande. Primeiro ela trouxe Deus,
depois trouxe a igreja pra dentro de nossa casa. Entretanto eu me despedi da
igreja e das missas não muito tempo depois, como era de se esperar. Só aos
dezessete anos é que comecei a participar de um grupo de jovens da igreja
católica. Tinha já certa noção do funcionamento da sociedade e das mazelas
causadas pelos governos, principalmente para as populações mais pobres. Ao participar
comecei a perceber a dificuldade que os colegas tinham em compreender a
dinâmica política da sociedade e em expressar sua opinião sobre o mundo. A
partir dali comecei a ampliar meus horizontes sociais e políticos que permeiam
as relações sociais. As interações em fatos como mutirões, passeatas, reuniões,
retiros, encontros, estudos e outras atividades da comunidade e pessoas como
colegas, padres, freiras, noviças e outros sujeitos dos muitos processos em que
fui participando, foram forjando-me uma relativa consciência crítica importante
para a minha formação humana. Embora muitas vezes eu ressalte o papel que as
instituições desempenham na reprodução da ideologia que mantém o status quo, seria ingenuidade política
não reconhecer o caráter contraditório e complexo dessas instituições.
Inclusive a contribuição que elas exercem sobre o processo emancipatório de
cada indivíduo é um aspecto contraditório, já ressaltado por muitos estudiosos:
ao mesmo tempo que, sem elas, não é possível a humanização, com elas a opressão
psíquica ao sujeito acaba por cerceá-lo de tal modo que este se encontra num
horizonte restrito. O que serviu para formá-lo, serve também para deformá-lo. O
ser histórico, algumas vezes se fecha no que o possibilitou. Com toda a
contribuição que a Igreja me possibilitou, sei que a preocupação maior desta
não é a transformação. Sob o discurso da salvação ela está preocupada com sua
reprodução.
Contudo,
tive a sorte de estar entre alguns adeptos de renovação concreta. Os sujeitos
da Teologia da Libertação. Leonardo Boff, Frei Betto, Dom Pedro Casaldáliga,
Dom Paulo Evaristo Arns, Dom Hélder Câmara eram meus inspiradores e meus
conspiradores. Houve um feliz encontro entre meu desejo de mudar o mundo e o
anseio de encontrar Deus e dialogar com Ele, o que chamo de oração. A minha
vivência na Igreja foi me formando numa práxis
cristã: fé e vida; Deus e homem juntos. A ética prevalecendo sobre a fé. A
ética tem prioridade sobre a fé. O que mais importa não são palavras, orações,
rituais e oferendas, típicas dos religiosos. Importa mais o comportamento
ético, as convicções, que não deixam de ser uma manifestação da fé autêntica, as
atitudes de respeito ao ser humano, as virtudes, a solidariedade. Essa vivência
fértil foi muito importante para uma identificação com os oprimidos da
sociedade. Nesse processo eu me descobri oprimido também, articulando com as
leituras do evangelho, relendo as histórias passadas por uma nova perspectiva,
uma nova forma de ver, de tentar me comunicar com Deus à luz das aflições, das
alegrias, das lutas, vitórias e derrotas dos excluídos da sociedade brasileira.
Com
essas novas vivências e interpretações eu ingressei na Universidade Católica do
Salvador, no curso de Pedagogia. O que eu procurava?
Bem, eu não sabia
direito. Queria fazer Sociologia e como a tal Universidade não oferecia o curso
referido no meado do ano, acabei optando por Pedagogia, visto que lida com
pessoas à procura (hoje em dia já tenho minhas dúvidas sobre que procura é
essa), mexe profundamente com o movimento da sociedade. Imaginava a
Universidade um espaço/tempo propício para reflexão, para o desvendamento dos
fatos e fenômenos sociais. Estava empolgado. Queria trabalhar a minha
consciência crítica, fornecendo-lhe argumentos teóricos e de pesquisa, para
sustentar e fortalecer a minha ação política.
Entretanto,
deparei-me com a mediocridade. Um currículo ultrapassado, desarticulação entre
as disciplinas, despreparo de alguns professores, instalações físicas
inadequadas, inexistência de laboratórios, biblioteca defasada e com poucas
unidades por título, além da ausência de um projeto político pedagógico
explícito, construído conjuntamente. Numa avaliação feita por uma instituição,
que já não me recordo, a UCSal. Ficou em último lugar. A despeito dos
indicadores utilizados na avaliação, ficar em última colocação é um forte indício
de que as coisas não andam bem. Longe das categorias pior/melhor as condições
de oferta de ensino pela universidade citada revelam por si mesmas que a minha
crítica não é movida por outros motivos senão a decepção com o que eu esperava.
Outra tradição negativa que a Universidade Católica tem é o fato de seus
dirigentes permanecerem no cargo durante gestões a fio.
Diante
desses pequenos problemas alguns estudantes do referido curso se uniram,
montaram chapa para eleição no Diretório Acadêmico e continuaram as
reivindicações do grupo anterior. Aline, Roberto, Edméa, Isabelle, Daniel, Misael, eu
e outros colegas de curso, nos unimos e elaboramos um jornalzinho, o “Práxis”, o qual serviu de instrumento
precioso de manifestação de nossas insatisfações, onde expúnhamos algumas
mazelas tanto a nível infra-estrutural, como a nível curricular e
epistemológico. Pena que foi o único número lançado até hoje. Entretanto foi um
abre-alas de nosso grupo na Faculdade de Educação. Mostrou a nossa cara, o
nosso modus operandi.
Como
havia dito, minha motivação estava assentada em minha participação na Católica
de Lá (a igreja). O desejo de mudar, de dizer a minha palavra, o meu verso, o
avesso, a aversão à hipocrisia daqueles que administram nosso dinheiro, nosso
suor, nossa educação, nossa saúde, nossa vida pública... Aversão aos
politiqueiros salafrários, muitos envolvidos em falcatruas, alguns no crime
organizado, que representam os interesses dos poderosos, embora tenham sido
eleitos pelos miseráveis. Não esqueço das pessoas que me ajudaram a pensar em
meus companheiros de classe, de gênero, de raça e de idade: Irmã Elena, Nelson
Santana, Dona Rita da Sussunga, padre Lorenzo, padre Renzo, Conceição da
Fazenda Grande, Marivalda, irmã Amparo e tantas outras pessoas, inclusive o
pessoal da PJMP (Pastoral da Juventude do Meio Popular), Janai, William, Beto,
Jailton, Marquinhos, Moisés, Valdimarina, Angélica, a poetisa, (in memoriam), Padre Carlos e tantos
outros, tantas outras, comprometidas com a utopia de um mundo mais justo, mais
humano, mais solidário. Assim, centrei fogo na Católica de Cá (universidade). CONTINUA...
Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia,
de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel