sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

CATÓLICA DE LÁ, CATÓLICA DE CÁ



Minha família nunca foi muito católica. Meu pai era um cabloco das caatingas de Remanso, umas paragens onde a igreja não se arriscava a dar às caras, pelo menos por aqueles idos entre o final dos anos 30 e meados dos anos 50. Aliás, religião nunca foi o forte de meu pai. Em seu universo linguístico não havia igrejas, nem padres. Ele fazia suas orações ao deitar e ao levantar. Orações clássicas como o “Pai Nosso” e a “Ave Maria”. Fora disso só uma missa em momentos festivos ou lúgubres, como casamentos ou missas de sétimo dia, mesmo assim de algum amigo muito chegado ou parente como irmão e mãe. Na verdade, o catolicismo entrou em nossa casa através de minha mãe, esta sim, trazia a insígnia da igreja em sua ação convertedora. Ela me levava à Igreja da Liberdade, bairro mais populoso de Salvador. Ainda me lembro o nome da Igreja: São Cosme e São Damião. Lá eu me batizei, aos onze anos de idade. Um dos maiores conflitos no período da catequese obrigatória era o baba. “Baba”, em Salvador, é a mesma coisa que futebol, pelada.

Fato é que a “bendita” catequese era num domingo pela manhã, bem na horinha do baba. Às vezes eu me escondia dentro do guarda-roupa para, pouco depois, sair às escondidas para o tão desejado e imprescindível baba da semana. Lá, os guerreiros do futebol, organizados em equipes, digladiavam-se em torno da bola, que girava em nossas cabeças de segunda a segunda. Éramos bola. Girávamos mundo. Éramos bola, mas também lama. Derretíamos na chuva, escorríamos até parar no primeiro córrego que encontrássemos. Naquela época o Calafate era uma rua cheia de minadouros que formavam córregos e fontes, onde as mulheres iam lavar roupa e os meninos iam “lavar a alma”. Uma piaba era convertida em baleia por nossa prodigiosa imaginação. Nela navegávamos os sete, oito, nove mares. Inspirados no desenhos da TV, nos transformávamos em “Aquaman”, “Namor”, o príncipe submarino, sereias e sereios, que combatiam os vilões dos oceanos afora... Éramos de água também. Aliás, éramos formados pelos quatros elementos: menino é água, menino é terra – quando se misturam é lama – menino é ar e, como dizem as mães, “menino é fogo!”

E aquele mundo era nosso santuário. Meninos-sacerdotes, celebrantes da vida redonda, que rolava em nós. Mas, quando se tratava de ir à igreja... Ó dor, ó vida! Ô coisa chata! Salvo aquele padre sorridente e sempre bem humorado que nos contava as histórias de um modo singular, como se nos guiasse por dentro da trama para, ao final, oferecer-nos sua palavra entre as nossas, com a mesma alegria e esperança, esperança esta que não estava em suas enunciações, mas em seu próprio jeito de ser. E era somente aquele momento que me interessava. Tanto é que quando o padre foi embora para outra comunidade eu nunca mais apareci por lá, apesar dos reclamos de minha mãe. Creio até que freqüentei bastante para um menino de lama como eu! Tinha domingos que eu saia vestido com o short por baixo da calça, e, ao invés de ir para a São Cosme e São Damião, fazia uma manobra não muito difícil e ia me divertir com meus colegas de bola e de lama, cumprindo à risca aquele ritual sagrado dos domingos... A missa? Não. O baba.

A influência religiosa de minha mãe foi muito grande. Primeiro ela trouxe Deus, depois trouxe a igreja pra dentro de nossa casa. Entretanto eu me despedi da igreja e das missas não muito tempo depois, como era de se esperar. Só aos dezessete anos é que comecei a participar de um grupo de jovens da igreja católica. Tinha já certa noção do funcionamento da sociedade e das mazelas causadas pelos governos, principalmente para as populações mais pobres. Ao participar comecei a perceber a dificuldade que os colegas tinham em compreender a dinâmica política da sociedade e em expressar sua opinião sobre o mundo. A partir dali comecei a ampliar meus horizontes sociais e políticos que permeiam as relações sociais. As interações em fatos como mutirões, passeatas, reuniões, retiros, encontros, estudos e outras atividades da comunidade e pessoas como colegas, padres, freiras, noviças e outros sujeitos dos muitos processos em que fui participando, foram forjando-me uma relativa consciência crítica importante para a minha formação humana. Embora muitas vezes eu ressalte o papel que as instituições desempenham na reprodução da ideologia que mantém o status quo, seria ingenuidade política não reconhecer o caráter contraditório e complexo dessas instituições. Inclusive a contribuição que elas exercem sobre o processo emancipatório de cada indivíduo é um aspecto contraditório, já ressaltado por muitos estudiosos: ao mesmo tempo que, sem elas, não é possível a humanização, com elas a opressão psíquica ao sujeito acaba por cerceá-lo de tal modo que este se encontra num horizonte restrito. O que serviu para formá-lo, serve também para deformá-lo. O ser histórico, algumas vezes se fecha no que o possibilitou. Com toda a contribuição que a Igreja me possibilitou, sei que a preocupação maior desta não é a transformação. Sob o discurso da salvação ela está preocupada com sua reprodução.

Contudo, tive a sorte de estar entre alguns adeptos de renovação concreta. Os sujeitos da Teologia da Libertação. Leonardo Boff, Frei Betto, Dom Pedro Casaldáliga, Dom Paulo Evaristo Arns, Dom Hélder Câmara eram meus inspiradores e meus conspiradores. Houve um feliz encontro entre meu desejo de mudar o mundo e o anseio de encontrar Deus e dialogar com Ele, o que chamo de oração. A minha vivência na Igreja foi me formando numa práxis cristã: fé e vida; Deus e homem juntos. A ética prevalecendo sobre a fé. A ética tem prioridade sobre a fé. O que mais importa não são palavras, orações, rituais e oferendas, típicas dos religiosos. Importa mais o comportamento ético, as convicções, que não deixam de ser uma manifestação da fé autêntica, as atitudes de respeito ao ser humano, as virtudes, a solidariedade. Essa vivência fértil foi muito importante para uma identificação com os oprimidos da sociedade. Nesse processo eu me descobri oprimido também, articulando com as leituras do evangelho, relendo as histórias passadas por uma nova perspectiva, uma nova forma de ver, de tentar me comunicar com Deus à luz das aflições, das alegrias, das lutas, vitórias e derrotas dos excluídos da sociedade brasileira.

Com essas novas vivências e interpretações eu ingressei na Universidade Católica do Salvador, no curso de Pedagogia. O que eu procurava?
Bem, eu não sabia direito. Queria fazer Sociologia e como a tal Universidade não oferecia o curso referido no meado do ano, acabei optando por Pedagogia, visto que lida com pessoas à procura (hoje em dia já tenho minhas dúvidas sobre que procura é essa), mexe profundamente com o movimento da sociedade. Imaginava a Universidade um espaço/tempo propício para reflexão, para o desvendamento dos fatos e fenômenos sociais. Estava empolgado. Queria trabalhar a minha consciência crítica, fornecendo-lhe argumentos teóricos e de pesquisa, para sustentar e fortalecer a minha ação política.

Entretanto, deparei-me com a mediocridade. Um currículo ultrapassado, desarticulação entre as disciplinas, despreparo de alguns professores, instalações físicas inadequadas, inexistência de laboratórios, biblioteca defasada e com poucas unidades por título, além da ausência de um projeto político pedagógico explícito, construído conjuntamente. Numa avaliação feita por uma instituição, que já não me recordo, a UCSal. Ficou em último lugar. A despeito dos indicadores utilizados na avaliação, ficar em última colocação é um forte indício de que as coisas não andam bem. Longe das categorias pior/melhor as condições de oferta de ensino pela universidade citada revelam por si mesmas que a minha crítica não é movida por outros motivos senão a decepção com o que eu esperava. Outra tradição negativa que a Universidade Católica tem é o fato de seus dirigentes permanecerem no cargo durante gestões a fio.

Diante desses pequenos problemas alguns estudantes do referido curso se uniram, montaram chapa para eleição no Diretório Acadêmico e continuaram as reivindicações do grupo anterior. Aline, Roberto, Edméa, Isabelle, Daniel, Misael, eu e outros colegas de curso, nos unimos e elaboramos um jornalzinho, o “Práxis”, o qual serviu de instrumento precioso de manifestação de nossas insatisfações, onde expúnhamos algumas mazelas tanto a nível infra-estrutural, como a nível curricular e epistemológico. Pena que foi o único número lançado até hoje. Entretanto foi um abre-alas de nosso grupo na Faculdade de Educação. Mostrou a nossa cara, o nosso modus operandi.

Como havia dito, minha motivação estava assentada em minha participação na Católica de Lá (a igreja). O desejo de mudar, de dizer a minha palavra, o meu verso, o avesso, a aversão à hipocrisia daqueles que administram nosso dinheiro, nosso suor, nossa educação, nossa saúde, nossa vida pública... Aversão aos politiqueiros salafrários, muitos envolvidos em falcatruas, alguns no crime organizado, que representam os interesses dos poderosos, embora tenham sido eleitos pelos miseráveis. Não esqueço das pessoas que me ajudaram a pensar em meus companheiros de classe, de gênero, de raça e de idade: Irmã Elena, Nelson Santana, Dona Rita da Sussunga, padre Lorenzo, padre Renzo, Conceição da Fazenda Grande, Marivalda, irmã Amparo e tantas outras pessoas, inclusive o pessoal da PJMP (Pastoral da Juventude do Meio Popular), Janai, William, Beto, Jailton, Marquinhos, Moisés, Valdimarina, Angélica, a poetisa, (in memoriam), Padre Carlos e tantos outros, tantas outras, comprometidas com a utopia de um mundo mais justo, mais humano, mais solidário. Assim, centrei fogo na Católica de Cá (universidade). CONTINUA...

Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel

Nenhum comentário:

Postar um comentário

joselitojoze@gmail.com