Estou
de férias e ainda doente. Não sei o que está se passando comigo, mas não estou
bem. Tenho ainda o compromisso de preparar a disciplina Filosofia da Educação
para Luciene querida, que ensinou e ensina a muita gente a dizer que ama o
outro, sem medo da pieguice. Aproveitei um tempinho para me divertir, dando um “rolezinho”
no pensamento, a fim de compreender melhor esse fenômeno apresentado por jovens
e adolescentes contemporâneos das maiores cidades brasileiras.
Bem,
para responder a tal desafio utilizo-me dos referenciais teóricos do
materialismo histórico dialético, que, apesar de tão combatido, ainda me parece
a melhor referência de análise e síntese do fenômeno social do “rolezinho” nos shoppings centers das grandes metrópoles
brasileiras. O “rolezinho”, visto pela dialética marxista, é fruto de múltiplas
determinações, entre as quais, posso citar as seguintes:
1. Modo
de ocupação do espaço urbano pelo capital imobiliário nas grandes metrópoles,
destruindo espaços públicos de lazer e de esporte;
2. Aumento
da violência nos grandes centros urbanos;
3. Reificação
permanente da mercadoria através da propaganda, colocando os produtos e suas
marcas como sinais contemporâneos de sucesso, distinção e felicidade;
4. Ascenção
de grupos sociais ao mercado de consumo.
Irei concentrar-me na
primeira determinação do “rolezinho”. O modo de ocupação do espaço urbano de
Salvador foi destruindo a maioria dos espaços de encontro dos adolescentes, jovens
e adultos das periferias da cidade. Quando eu me deslocava de ônibus pela
cidade – quem se desloca de ônibus enxerga mais longe, pois está no alto -
percebia todos os campinhos que havia nos trajetos por onde passava. Nos dias
de sábado e de domingo o baba (partida de futebol amador) rolava e algumas
dezenas de pessoas ocupavam esses espaços de esporte e lazer, nesse caso,
preponderantemente masculinos. Esses campinhos desapareceram do mapa
soteropolitano, sendo ocupados por viadutos, estações de metrô, edifícios e
estradas. Para onde foram aquelas dezenas de pessoas que se encontravam no fim
de semana para exercer sua atividade física e social? O poder público nem
pensou nas consequências do desaparecimento desses espaços de encontro. Mas o
poder privado pensou. Cada vez mais surgem campos de futebol “society”, feitos com grama sintética,
bem menores que os extintos campinhos de barro, e a um preço por duas horas de
utilização. O espaço social, público e gratuito do baba foi transformado em
mercadoria, assegurado por um valor de troca que, certamente, impede
adolescentes, jovens e adultos pobres de ingressarem em seus privados espaços
de distinção.
O arquiteto Paulo Ormindo de
Azevedo, no jornal A Tarde de ontem – domingo, 19/1/2014 – reclama desse modo
destrutivo de ocupação, vindo ao encontro do meu raciocínio:
Cerca
de R$ 420 milhões foram gastos em benefício do carro (recentemente em Salvador,
Bahia), que não tem mais futuro, e nenhum centavo em favor de outros modais, do
pedestre, do patrimônio histórico, da arborização e do tratamento das feridas
que provocou. (AZEVEDO, 2014, p.A2)
Um dos desdobramentos disso
é que os futuros craques de futebol só podem surgir se forem tutelados por um
time de futebol, com um empresário nos calcanhares, marcando em cima e
vislumbrando lucros com aquele moleque-mercadoria que se apresenta nos gramados
privados de suas instituições. Outro desdobramento é que as moças e os rapazes,
principalmente os mais pobres, não têm mais espaços públicos onde possam se
encontrar para exercer sua ludicidade, sua capacidade criativa em comum, sua
rebeldia necessária diante de um Brasil governado por facínoras, canalhas,
corruptos, homens indigestos, com poucos resquícios de humanidade, de altivez e
de liderança. Até a Igreja Católica fechou as portas para a juventude. Ou seja:
para uma juventude que ela não pode controlar, nem impor suas condições de ser
humano na contemporaneidade, sob pena de correr o risco de defrontar-se com a
necessidade de ter de tomar posições políticas claras contra o modo de operar do
sistema capitalista.
A rede virtual surge então como um espaço propício de encontro de jovens e adolescentes privados de espaço concreto. Nesse espaço eles criam, recriam, interpretam, redirecionam, criticam, manipulam suas próprias subjetividades, constroem caminhos alternativos de exercício da ludicidade, da solidariedade, do status quo, e projetam símbolos atravessados pelo modo como a nossa sociedade capitalista orienta seus valores através da propaganda, da incitação ao consumo, da projeção de um status quo baseado nos símbolos do consumo, com suas marcas de vida de gado. Nessa arquitetura possível de novos humanos, os jovens e adolescentes, com o exercício de si nos estreitos espaços que Salvador oferece para quem é pobre, para quem é negro, para quem não adentra nos padrões que podem passar despercebidos nos shopping’s, o rolezinho se configura como um movimento criativo e espontâneo de subjetividades tecidas nesse contexto de negação de espaços. É um fenômeno urbano da Geografia.
Quero me afastar aqui de uma ideologização dos jovens e adolescentes contemporâneos, como se eles e elas fossem os (as) revolucionários (as) do presente. Nada disso. São como são, são em função do seu chão, do seu modo, a seu modo, sob o modo e sem modos como nós nos exercemos. Mas apresentam a fatura desse modo que vivemos em comum. Questionam, aos seus modos e falta de modos, a escola, a igreja, a empresa, o emprego, o salário, o governo, o futuro, o trabalho, o caralho! E precisam encontrar-se nos espaços concretos possíveis que lhes restaram, para se verem, para atualizarem suas imagens e voltarem para avaliar o impacto dessas imagens nos espaços virtuais onde realizam suas fantasias, no pouco espaço concreto de “realidade” que sobrou.
Toda instituição luta para
marcar o povo e se apropriar de sua força: Partidos, igrejas, bancos, governos, empresas.
Todos (as) têm seus “ferros de marcar gado”, todos (as) têm seus currais, seus
boiadeiros, seus capatazes e uns remetem aos outros. A apropriação do ser humano
na contemporaneidade não é exclusiva, nunca foi. Somos tomados por ideias que,
invariavelmente, nos levam ao consumo desenfreado. Nas entrevistas que vi num
programa de televisão sobre o fenômeno do “rolezinho”, percebi que o dinheiro
que esses jovens e adolescentes têm, utilizam-no para o consumo de marcas, onde
realizam, com seus pais, sua entrada triunfal no mundo das aparências,
aparentando, de fato, o que são neste momento histórico. Os garotos e as
garotas estão em seu momento. Certo. Minha preocupação foi com seus pais, tão
adolescentes quanto seus filhos, realizando, nesses últimos, suas adolescências
tardias. Um dos pais se sentia orgulhoso de poder dar ao filho o acesso à “roupas
de marca” e, certamente, vê-lo na internet com suas centenas de seguidoras e
seguidores, exercendo uma liderança virtual com desdobramentos políticos e
sociais ainda não bem compreendidos. Uma mãe afirmava que aparência é tudo no
mundo contemporâneo. E, para meu desgosto, talvez esteja certa. Não sou contra pais que foram jovens e adolescentes pobres e negados, como eu, terem acesso ao poder de compra e de propiciar aos filhos e às filhas algum conforto e acesso que nunca tiveram. Não gosto da ideia de fazerem isso sem nenhuma reflexão e ponderação.
Os shoppings reagem com repressão e discriminação contra os “rolezinhos”.
Mas onde os jovens irão se encontrar se a propaganda de incentivo ao consumo, a
destruição dos espaços públicos de encontro e a transformação de quase tudo em
mercadoria indicam os shoppings como espaços privilegiados de encontro? O
rolezinho expressa a contradição do capital em Salvador e demais cidades do
mesmo porte. O “rolezinho” só pode ser compreendido nessa “totalidade concreta”
que o método dialético oferece.
Nada é isolado. Isolar um fato, um fenômeno, e depois conservá-lo pelo entendimento neste isolamento, é privá-lo de sentido, de explicação, de conteúdo. É imobilizá-lo artificialmente, matá-lo. É transformar a natureza – através do entendimento metafísico num acúmulo de objetos exteriores uns aos outros, num caos de fenômenos (LEFÈBRE, 1975, p.238)
A produção do “rolezinho”, portanto,
não é uma fabulação de desocupados, de adolescentes vagabundos, com tendências
ao crime, mas um fenômeno que o próprio capitalismo e sua ocupação gananciosa
do espaço propicia. O rolezinho é um fenômeno social produzido por adolescentes
e jovens que procuram espaços possíveis e concretos de socialização no seio das
contradições da ocupação urbana no mundo brasileiro contemporâneo,
principalmente em cidades como Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro, entre
outras. O mundo virtual remete ao real e vice-versa, um alimentando-se do
outro, um escondendo o outro e escondendo-se do outro, num jogo de aparências, um reconfigurando o outro, num processo intermitente
de construção de novidades, sendo uma dessas, o “rolezinho”. Bom. Agora “vou
dar um “rolé” por aí.”
Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel
Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel
Com a ajuda de
AZEVEDO. Paulo Ormindo de. Violações urbanas. Jornal A Tarde, Salvador, domingo, 19/01/2014.
LEFRÈBRE, Henri. Lógica formal, lógica dialética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,1975.