Minha Santinha, vou enunciar
minha oração.
Ouve a minha prece, entende
a minha expressão.
Quando eu me expresso sempre,
mesmo sem querer, ou sem saber,
eu revelo a minha posição.
Sendo assim, Tu me vês
em minha constituição ideológica,
da orientação social que me expressa
como sujeito coletivo que, muitas vezes,
cai em contradição.
Penso que falo como um pecador e, assim constituído, a
resignação penitente vem como tom ideológico de expressão do meu ser, recolho-me na
vergonha do pecado e interpreto todos os acontecimentos negativos em minha vida
como castigo do Céu.
Dessa forma, o efeito político em meu ser é devastador,
pois não consigo me mobilizar para lutar contra as infames estruturas sociais
que me esmagam. Contudo, imediatamente, uma memória não tão longínqua vem me
contar, através de Chico Buarque, uma certa interpretação.
Você que inventou
esse estado
e inventou de
inventar
toda a escuridão
Você que inventou o
pecado
esqueceu-se de
inventar o perdão
Então, por essa interpretação crítica de uma parte de
nossa história, eu não posso me sentir, desse modo, culpado. Eu me nego a
aceitar a condição de um produto subjetivo precário e submisso dessa invenção social que nossa
história produziu intencionalmente, pois se tivéssemos sido colonizados pelos
asiáticos ou pelos africanos certamente teríamos tido outra noção de pecado, ou
quem sabe nem enunciaríamos essa palavra para designar essa invenção linguístico-histórica.
Portanto, posso romper com todas as invenções que me
empobrecem e me encarceram em suas tramas infernais. Mas, para isso, é preciso
me educar sempre. Pois a educação, mesmo em suas contradições, me leva a
entender muitas das tramas linguísticas que me afetam. Sei que, compreendendo
esses vetores de poder, através de um intenso e permanente processo educacional, posso,
mesmo em meio às contradições, colocar-me numa posição social favorável
ideologicamente, o que me fortalece na arena de poder da minha condição humana
quando me constituo como sujeito social num grupo bem organizado politicamente,
seja através do sindicato de minha categoria profissional, seja no diretório acadêmico
da minha escola e da minha universidade, seja nas associações e grupos formados
para refletir e fortalecer a luta pela emancipação humana de todos os grilhões que a história "inventou".
E, mesmo dentro desses grupos e associações, combater os sujeitos discursivos que apresentam-se contraditórios às nossas lutas.
Portanto, minha santinha, eu não vou mais rezar como um
pecador. Não posso mais bradar nem na condição de um “degredado filho de Eva”, nem
do modo “suspirando, gemendo e chorando”. Humildade é uma coisa, mas colocar-se sempre no lugar do fraco, do dependente que sempre precisa da ajuda do forte é outra. Eu não aceito essa invenção que as
estruturas eclesiais, associadas aos grupos políticos e econômicos hegemônicos, impuseram aos negros, aos índios, à população brasileira
que foi se constituindo nessa rede tramada para nos aprisionar nesse pecado que
eles nos trouxeram em suas caravelas. Eu estou desinventando esses enunciados que
me encarceram neste
“vale de lágrimas”, para meu fortalecimento político que reforça minhas
posições ideológicas.
Aqui
rezo, minha santinha, como um filho da história, parido permanentemente pelas
práticas discursivas que me engendram cotidianamente com os meus e as minhas
contemporâneos (as). Minha fé adquire um status completamente diferente agora.
Amém.
Joselito
da Nair, do Zé, do Rafael, da Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O
Emanuel.