quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

ESTUDAR, REFLETIR, REZAR (intertextualizando com comer, rezar, amar, na perspectiva da interação verbal bakhtiniana) ou CARTA PARA MINHA SANTINHA


Minha Santinha, vou enunciar minha oração.
Ouve a minha prece, entende a minha expressão.
Quando eu me expresso sempre, 
mesmo sem querer, ou sem saber,
 eu revelo a minha posição.
 
Sendo assim, Tu me vês
em minha constituição ideológica,
da orientação social que me expressa
como sujeito coletivo que, muitas vezes,
cai em contradição.

Penso que falo como um pecador e, assim constituído, a resignação penitente vem como tom ideológico de expressão do meu ser, recolho-me na vergonha do pecado e interpreto todos os acontecimentos negativos em minha vida como castigo do Céu.

Dessa forma, o efeito político em meu ser é devastador, pois não consigo me mobilizar para lutar contra as infames estruturas sociais que me esmagam. Contudo, imediatamente, uma memória não tão longínqua vem me contar, através de Chico Buarque, uma certa interpretação.

Você que inventou esse estado
e inventou de inventar
toda a escuridão
Você que inventou o pecado
esqueceu-se de inventar o perdão

 Então, por essa interpretação crítica de uma parte de nossa história, eu não posso me sentir, desse modo, culpado. Eu me nego a aceitar a condição de um produto subjetivo precário e submisso dessa invenção social que nossa história produziu intencionalmente, pois se tivéssemos sido colonizados pelos asiáticos ou pelos africanos certamente teríamos tido outra noção de pecado, ou quem sabe nem enunciaríamos essa palavra para designar essa invenção linguístico-histórica.

Portanto, posso romper com todas as invenções que me empobrecem e me encarceram em suas tramas infernais. Mas, para isso, é preciso me educar sempre. Pois a educação, mesmo em suas contradições, me leva a entender muitas das tramas linguísticas que me afetam. Sei que, compreendendo esses vetores de poder, através de um intenso e permanente processo educacional, posso, mesmo em meio às contradições, colocar-me numa posição social favorável ideologicamente, o que me fortalece na arena de poder da minha condição humana quando me constituo como sujeito social num grupo bem organizado politicamente, seja através do sindicato de minha categoria profissional, seja no diretório acadêmico da minha escola e da minha universidade, seja nas associações e grupos formados para refletir e fortalecer a luta pela emancipação humana de todos os grilhões que a história "inventou".  E, mesmo dentro desses grupos e associações, combater os sujeitos discursivos que apresentam-se contraditórios às nossas lutas.

Portanto, minha santinha, eu não vou mais rezar como um pecador. Não posso mais bradar nem na condição de um “degredado filho de Eva”, nem do modo “suspirando, gemendo e chorando”. Humildade é uma coisa, mas colocar-se sempre no lugar do fraco, do dependente que sempre precisa da ajuda do forte é outra. Eu não aceito essa invenção que as estruturas eclesiais, associadas aos grupos políticos e econômicos hegemônicos, impuseram aos negros, aos índios, à população brasileira que foi se constituindo nessa rede tramada para nos aprisionar nesse pecado que eles nos trouxeram em suas caravelas. Eu estou desinventando esses enunciados que me encarceram neste “vale de lágrimas”, para meu fortalecimento político que reforça minhas posições ideológicas.

Aqui rezo, minha santinha, como um filho da história, parido permanentemente pelas práticas discursivas que me engendram cotidianamente com os meus e as minhas contemporâneos (as). Minha fé adquire um status completamente diferente agora.

Amém.

Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, da Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel.  

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