A tinta pinta o asfalto
Enfeita a alma motorista
É a cor na cor da cidade
Batom no lábio nortista
O olhar vê tons tão sudestes
E o beijo que vós me nordestes
Arranha céu da boca paulista
Chico César (Beradêro)
O respeitado
filósofo, ensaísta e comentarista do Jornal da TV Cultura, Luiz Felipe Pondé,
sinalizou no domingo último, em relação às manifestações de rua contra a
corrupção no Brasil, que nos estados em que há um maior desenvolvimento econômico
há maior organização e envolvimento da população nos protestos e que, ao
contrário, nos estados menos desenvolvidos, como os da Região Nordeste, que
precisam muito do estado, a população geralmente está ao lado do governo. Embora
alguns possam ver nessa breve análise algo que coloca o Sul e o Sudeste acima
do Norte e do Nordeste em termos de consciência e participação política, como
se nós, da parte de cima do Brasil, fôssemos responsáveis por esta crise que
assola o país inteiro, percebo justamente o contrário. Toda crise, inclusive as que virão, foram provocadas pelo nosso modo desigual de produção. Logo, a crise e as crises não vêm do Norte-Nordeste, nem dos programas "Bolsa-Família", nem do "Minha Casa, Minha Vida". Vêm do Sul-Sudeste, das políticas do "Só-Pra-Nós, Nada-Para-Eles e Elas".
Por
sermos negados por políticas de exclusão, desde os sucessivos governos de uma “política
do café com leite”, nós, nordestinos e nortistas, fomos impedidos de desenvolver
nossas forças e capacidades produtivas, sendo relegados ao atraso econômico e
político, abandonados que fomos às mãos do “coronelismo” e seus jagunços, que
até pouco tempo ainda resistia em nossa região. Assim, NÃO NOS DESENVOLVEMOS
PORQUE SOMOS INFERIORES, PREGUIÇOSOS E POUCO SÉRIOS COMO OS PAULISTAS QUEREM
NOS IMPUTAR. Até pouco tempo a Bahia tinha apenas uma universidade federal,
enquanto Minas Gerais tinha nove! Sem industrialização e sem necessidade de um now how tecnológico, que as universidades públicas poderiam elaborar, ficamos à deriva no mar da dependência econômica, da seca produzida e
da ausência de lideranças políticas que tivessem capacidade política e
iniciativa empreendedora para encabeçar um planejamento amplo baseado em
princípios políticos, culturais e econômicos que nos unissem em torno de grandes
projetos. NÓS NÃO NOS DESENVOLVEMOS PORQUE FOMOS IMPEDIDOS DE NOS DESENVOLVER
por políticas que beneficiaram apenas o eixo sul-sudeste!
Foram
os braços dos nordestinos e dos nortistas que ergueram os arranha-céus de São
Paulo! Foi o suor dos nortistas e dos nordestinos que tornou os traços do
arquiteto Niemeyer concretos na Brasília de Kubitschek! É o suor de nordestinos
e nortistas que sustenta o funcionamento dos bares, restaurantes, hotéis,
residências, universidades e toda uma economia do sudeste! Foi dessa nossa história que
Belchior cantou seu canto de tristeza e identidade:
A minha história é talvez
É talvez igual a tua, jovem que desceu do norte
Que no sul viveu na rua
Que ficou desnorteado, como é comum no seu tempo
Que ficou desapontado, como é comum no seu tempo
Que ficou apaixonado e violento como você
Eu sou como você
Eu sou como você
Eu sou como você que me ouve agora
Eu sou como você
Como você
No
governo do mineiro Kubitschek, endeusado por muitos como o “grande estadista
brasileiro”, houve um investimento maciço no fomento à criação de indústrias –
no seu projeto de crescer 50 anos de progresso em 5 anos de governo –
principalmente em São Paulo e outros estados do Sul-Sudeste. Ao invés de
investir num processo de industrialização nacional, a partir de demandas já
existentes no processo de substituição de exportações, Kubitschek preferiu
investir nas grandes multinacionais, tendo como efeito nefasto a entrega do
controle de grande parte da economia a esses gigantes da indústria estrangeira. A Gurgel, única empresa de automóveis genuinamente nacional, foi engolida pelas multinacionais confortavelmente instaladas em nosso território dos outros.
As multinacionais (empresas estrangeiras) com o tempo agravaram a
economia, tomando setores de lucro e ascensão, como as indústrias
automobilísticas, de cigarros, farmacêutica e mecânica. Com isso o investimento
aparentemente rentável para a gestão presidencial mudou de configuração, as
empresas estrangeiras dominavam o mercado brasileiro garantindo grandes lucros,
muitas vezes, mais altos que o que eles investiam no Brasil. Embora, esses
procedimentos fossem opostos às Leis locais, as multinacionais burlavam. (http://www.infoescola.com/historia-do-brasil/plano-de-metas/)
Eu
não vou legitimar um discurso técnico-científico, liberal e privatista, que defende um desenvolvimento, por eles e elas elaborado, à fórceps da nossa gente, negada por
séculos, como se ser "lá eles e elas" fosse o nosso ideal de humanidade. Minha experiência vê o estado muito mais a serviço do capital privado do que da nossa gente. Justamente quando o estado começa a cuidar da gente, o capital reclama e quer nos convencer que isso está nos levando à acomodação. O capital privado quer somente o lucro. O prejuízo que eles causam, a destruição da natureza e do ser humano que eles provocam são omitidos por sua ideologia. Esse discurso
reforça as desigualdades existentes e omite as injustiças históricas cometidas
contra o Norte-Nordeste.
Eu e Ana conhecemos um divertido professor da Universidade Federal do Rio
de Janeiro lá em Mendonza, Argentina. Lá pras tantas, depois de nos referirmos
à arrogância portenha, ele contou uma anedota sobre argentino e... nordestino. Contou-nos
que a mistura entre um argentino e um cearense dá como resultado um porteiro
que pensa que é o dono do condomínio. Só não disse baiano porque sabia que a
gente era baiano.
Assim como Marx e Engels - não Marx e Hegel - referem-se à divisão social do trabalho no âmbito dos quadros capitalistas, aqui no Brasil criamos, por políticas de distribuição desigual da riqueza, a divisão regional do trabalho. Cearenses, baianos, paraibanos, piauienses, sergipanos, pernambucanos, etc, estão para porteiros, empregadas domésticas, diaristas, motoristas, serventes, pedreiros, trocadores (como se chama cobrador de ônibus por lá), etc. E paulistas, cariocas, catarinenses, paranaenses, etc, estão para que? O
Brasil está dividido, não por que queremos ou gostamos. Muito muito pelo contrário. Queremos porteiros paulistas, serventes catarinenses, pedreiros cariocas, diaristas gaúchas, eletricistas e encanadores mineiros. Queremos também baianos médicos, cearenses administradores, paraibanos empresários, sergipanos investidores, pernambucanos gerentes, alagoanos advogados, etc. Somos a favor da união, da igualdade, da correção dessa injustiça produzida e
reproduzida historicamente por falsas ideologias sudestinas e sulistas que desejam
penalizar os empobrecidos com a exclusão ainda maior daqueles/as que foram vítimas
da concentração de recursos nesse país.
Portanto,
nós nordestinos, devemos reagir com veemência a toda e qualquer ilação sobre
nosso desenvolvimento atrasado no qual preconceitos racistas e étnicos são
utilizados para justificar nossa condição, num momento em que forças
conservadoras querem voltar atrás na história, para que o estado continue servindo apenas aos seus interesses. Nosso atraso é fruto da concentração
de poder e de recursos do estado brasileiro nas regiões sudeste e sul, não por
conta de elementos culturais do nosso povo, afinal, cultura por cultura, nossa
cultura nordestina é de uma riqueza que impressiona o país inteiro. Foi justamente na cultura
que criamos, mesmo a contragosto e perseguição das elites - principalmente na dimensão religiosa, espaços para expressar nossa identidade contextualizada, em cordel, contos, cantigas, danças, formas de organização e solidariedade, lendas e mitos que indígenas e africanos nos oferecemos de presente, isso sem falar nas reinterpretações que fazemos de elementos de outras culturas, mesmo sem recursos
do estado, criamos produtos maravilhosos por mulheres e homens cheios de
vitalidade que a esperança humana concebe.
Joselito
Manoel de Jesus, professor, pardo, poeta, da nação nordestina de coração.
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