sábado, 26 de março de 2016

CONTRA A DITADURA E CONTRA A VIDA DE GADO

 Nesse contexto em que nosso país se encontra dividido de um extremo a outro, alguns brasileiros clamam pela volta da ditadura como solução definitiva para o problema da corrupção no país. Com um Congresso Nacional no qual a maioria dos seus representantes está envolvida com a corrupção, independente de cores partidárias, com os escândalos envolvendo empresas estatais, políticos e empresários, com a crise que abala a economia brasileira e com as manobras políticas de setores conservadores da sociedade para tentar a impossibilidade de voltar atrás na história, o apelo ao regime de exceção na condução da política brasileira vai beneficiar apenas os grupos sociais, políticos e culturais que sempre foram agraciados com o acúmulo escandaloso do capital em nosso território. Logo, o exercício do poder político num contexto ditatorial só beneficiará as camadas sociais privilegiadas da população brasileira na economia, na política, na ciência e, principalmente, nos serviços sociais, resultando num país distorcido, com um povo empobrecido, mas lutador e esperançoso na divisão equânime dos bens produzidos coletivamente.

Os poderes na arena social

Para entendermos sistematicamente as afirmações acima é preciso compreender o que é o poder. A política, para produzir seus efeitos de forma eficaz precisa do exercício organizado do poder. Demonstrando a distinção entre os poderes sociais econômico, ideológico e político, Bobbio (1995, p.956) afirma que:

Esta distinção entre três tipos principais de poder social se encontra, se bem que expressa de diferentes maneiras, na maior parte das teorias sociais contemporâneas, onde o sistema social global aparece direta ou indiretamente articulado em três subsistemas fundamentais, que são a organização das forças produtivas, a organização do consenso e a organização da coação.  
O poder, segundo Bobbio (1995) é a capacidade de um indivíduo, grupo ou instituição de modificar o comportamento de outro indivíduo, grupo ou instituição, segundo os seus interesses. O poder econômico é a capacidade de um indivíduo, grupo ou instituição de modificar o comportamento de outro indivíduo, grupo ou instituição, segundo os seus interesses, utilizando para isso as vantagens dos recursos econômicos disponíveis. O poder ideológico é a capacidade de um indivíduo, grupo ou instituição de modificar o comportamento de outro indivíduo, grupo ou instituição, segundo os seus interesses, utilizando-se das ideias, crenças, valores, modos de ser e de estar no mundo, que beneficiam e legitimam o grupo dominante na sociedade. O poder político é a capacidade de um indivíduo, grupo ou instituição de modificar o comportamento de outro indivíduo, grupo ou instituição, segundo os seus interesses, utilizando-se do uso da força, do aparato policial, das forças armadas, dos jagunços, dos paramilitares, ou seja: de qualquer grupo armado a serviço do grupo dominante.
A organização das forças produtivas – o poder econômico –, a organização do consenso – poder ideológico – e a organização da coação – poder político – constituem a base fundamental do “sistema social global”. Num regime de exceção como é a ditadura, o poder da coação, de prender e arrebentar, como diria um ex-presidente, cujo nome não pronuncio atendendo ao pedido do maldito saudoso, é legitimado pelo domínio absoluto do estado sobre a sociedade. Nesse modelo opressor do estado, o poder econômico age sem controle da população, atendendo de modo privilegiado aos interesses dos grandes grupos econômicos. O poder ideológico é utilizado através de meios como jornais nacionais, jornais impressos, revistas, propagandas do estado no rádio e na televisão, escolas, poder judiciário, universidades e, entre outros meios, as igrejas, como forma de legitimar o domínio e a opressão, convencendo a população brasileira da suposta necessidade do exercício do poder centralizado no estado, dominado por grupos privilegiados, no qual a população apenas aparece como gado a ser conduzido pela falsidade ideológica história adentro.

Vocês que fazem parte dessa massa
que passa nos projetos do futuro.
É duro tanto ter que caminhar
e dar muito mais do que receber
e ter que demonstrar sua coragem
À margem do que possa parecer
E, com o exercício do poder ideológico, articulado ao poder político e ao econômico, nosso povo vai voltando a ser uma massa crente nos “projetos do futuro”, nunca nos projetos do presente. O país deixa de ser nosso agora, para ser deles “sempre”. Nesse sentido eu valorizo a contribuição do “Príncipe do Gueto” em Salvador. "Depois de nós é nós de novo!" O poder ideológico é o mais nefasto, porque a gente começa a ver o outro, nosso algoz, como o ideal a ser seguido: ideal de beleza, de trabalho, de organização familiar, etc. e, ao mesmo tempo, começamos a nos ver como exemplo de trabalho, de família, de religiosidade e de beleza, entre outros, mal sucedido a ser negado e abandonado. Por isso, o importante papel dos movimentos sociais na atuação contra-ideológica. O movimento negro na Bahia, por exemplo, tem uma importância ímpar nesse processo quando reconstrói a percepção da negritude em condições ideológicas favoráveis a essa imensa parcela da população baiana e brasileira. A noite da beleza negra, para escolha da Deusa do Ébano, por exemplo, é uma das iniciativas importantíssimas como posicionamento ideológico crítico da negritude em nossa sociedade. O movimento dos sem-terra contra o poder do agronegócio, do movimento feminista contra o poder do machismo com sua violência física e simbólica, dos homossexuais contra a heteronormatividade e a violência assassina, entre tantos outros movimentos e grupos críticos dos arranjos sociais dominantes, situam-se na arena ideológica a favor da afirmação altiva dos negados por séculos de tradições colonizatórias que caracterizam a opressão no Brasil.
 “O conceito de política, entendida como forma de atividade ou de práxis humana, está estreitamente ligado ao de poder”, afirma Bobbio (1995). O poder político é, como vimos acima, em última instância, o poder da coação, do uso da força para manter o comportamento do outro na submissão, diante dos interesses que beneficiam os que estão no domínio. Não há, portanto, como entender a política desvinculada do poder, pois, segundo Bobbio (1995, p.956)
O que caracteriza o poder político é a exclusividade do uso da força em relação à totalidade dos grupos que atuam num determinado contexto social, exclusividade que é o resultado de um processo que se desenvolve em toda a sociedade organizada, no sentido da monopolização da posse e uso dos meios com que se pode exercer a coação física.
Quem tem a posse legítima do poder político é o estado, entendido por Weber apud Bobbio (1995) “Por estado se há de entender uma empresa institucional de caráter político onde o aparelho administrativo leva avante, em certa medida e com êxito, a pretensão do monopólio da legítima coerção física, com vistas ao cumprimento das leis.” Embora tenha o monopólio e a legitimidade do uso da força, através de seu aparelho repressor – polícias, forças armadas, etc. – a administração institucional do poder – relação de subordinação entre governante e governados – não pode ser pensada apenas como ação do estado, senão a cidadania desaparece da cena política e o autoritarismo se instaura. Daí a importância da negociação para a construção do consenso no âmbito da sociedade civil.

O Aparecimento da Sociedade Civil na Trama Política

É nesse contexto estrutural assim delineado que podemos apresentar a importância da operacionalização do conceito de sociedade civil. Segundo Bobbio, numa definição positiva de estado entende-se a sociedade civil como o
[...] conjunto de relações não reguladas pelo estado, e portanto como tudo aquilo que sobra uma vez bem delimitado o âmbito no qual se exerce o poder estatal. Mas mesmo numa noção assim vaga podem-se distinguir diversas acepções conforme prevaleça a identificação do não-estatal com o pré-estatal, com o anti-estatal ou inclusive com o pós-estatal. (BOBBIO, 1992, p.34)
Assim, a política não se restringe à administração do estado. Do ponto de vista da sociedade civil pré-estatal poderíamos afirmar que a política começa na sociedade civil.
Numa primeira aproximação pode-se dizer que a sociedade civil é o lugar onde surgem e se desenvolvem os conflitos econômicos, sociais, ideológicos, religiosos, que as instituições estatais têm o dever de resolver ou através da mediação ou através da repressão. (BOBBIO, 1992, p.36)
Nessa concepção de sociedade civil a negociação para a construção do consenso, seria a ação prioritária da política. Contudo, uma vez que o estado não consiga produzir respostas satisfatórias aos conflitos advindos da sociedade civil ele perde a governabilidade, o que pode conduzir à perda de sua legitimidade, podendo evoluir para uma dinâmica anti-estatal ou, quem sabe, desembocar numa sociedade pós-estatal, o que em nosso contexto parece muito difícil.
A sociedade civil é uma dimensão importante e imprescindível da política. Nela os conflitos são gerados e as esperanças concebidas, demandando solução do estado. Este último, para não perder a governabilidade, utiliza-se de instrumentos e meios para ficar a par dos interesses da população, ou seja, captar os humores da opinião pública no intuito de se posicionar na arena política instaurada. A percepção da opinião pública e de seus distintos interesses no âmbito da sociedade civil pelo estado é de fundamental importância para orientação do aparelho ideológico da instituição estatal, pois a decisão deste último – que geralmente é a favor de um indivíduo, grupo ou instituição e geralmente contra outro indivíduo, grupo e instituição – vai ser justificada direcionado a uma coletividade e ao bem-estar da mesma.
O aparelho ideológico do estado é necessário para se fortalecer a busca pela obtenção do consenso na sociedade civil através da mediação. Caso contrário, o estado aciona seu aparelho repressor. Mesmo assim, evidencia o poder que tem a sociedade civil e que não pode ser desprezado. A sociedade civil não encaminha apenas as demandas que se tornam objeto de decisão política para o estado. Encaminha também as orientações e os direcionamentos que os indivíduos, grupos organizados e instituições dão aos conflitos; encaminha as histórias de esperanças e as decepções que a elas se seguiram por governos que a desprezava; encaminha, enfim, a futura decisão em relação ao estado e ao governo que nele se apresenta. Futura decisão que se mantém na tensão armada no compasso de espera no campo aberto da política.
Assim, a sociedade civil é constituída como um cabo de guerra, numa arena política, no qual movimentos, associações, instituições empresariais, religiosas, educacionais, partidárias, sindicatos, etc, disputam a orientação e o direcionamento das demandas levantadas em seu âmbito político, uns tendo a orientação de classe social e sua luta e, os outros, tendo a orientação liberal como guia. O poder e a política, nesse sentido, são exercidos cotidianamente, geralmente, mas nem sempre, na luta pelo bem-estar de uns em detrimento dos outros. Essa disputa acontece nos campos da saúde, da infraestrutura, da economia, dos direitos civis, e da educação, entre outros.
Na ditadura, os setores organizados da sociedade civil em torno dos interesses da negritude, da mulher, dos homossexuais, dos trabalhadores, dos sertanejos, da intelectualidade crítica aos arranjos conservadores, entre outros, são silenciados pelo poder político do estado a serviço dos interesses dominantes e neocolonizatórios. E esse silenciamento é feito com tortura e morte. O contraditório não constitui elemento do debate político e ideológico, que se restringe às dimensões técnicas e moralistas, reconstituindo todo um sistema econômico, jurídico, político e ideológico que justifique e legitime o status quo dominante e excludente. Portanto, a ditadura só favorece quem possui condições ideológicas, econômicas e políticas favoráveis à manutenção do poder excludente, com o povo marcado, de volta à sua “vida de gado” no curral da ordem branca, hetero e burguesa que tenta nos encurralar na história contemporânea.

Joselito M. de Jesus, professor. Com o auxílio de:
BOBBIO, Norberto. Estado, governo, sociedade; por uma teoria geral da política. Tradução: Marco Aurélio Nogueira. 4. ed. Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra, 1992.; ________________;.MATTEUCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Tradução Carmen Varriale [et al]; coordenação de tradução: João Ferreira; revisão geral: João Ferreira e Luis Guerreiro Pinto Cascais. 8. ed./Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília, 1995. 
Zé Ramalho: Vida de Gado. 

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