segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

"Bolinho de Jesus"???? Prefiro o Acará!!!



Um artigo de Ailton Ferreira (2015) e uma reportagem no Jornal A Tarde de segunda-feira, 28/12/2015, nas páginas A3 e A4 apresentam a questão da canibalização do acará (acarajé) e do abará, possibilitando inúmeras reflexões sobre o fenômeno, possibilidade na qual me insiro a fim de gerar ainda mais reflexões sobre um fenômeno que pode passar despercebido para muitas pessoas, reproduzindo um pensar sobre a africanidade no Brasil que corrobore o racismo e seus efeitos sobre nossas relações sociais, políticas, econômicas e culturais.

No artigo de Ailton Ferreira intitulado “ Acarajé, respeito à tradição”, o autor critica outro artigo publicado no mesmo jornal, do antropólogo Luís Mott, no qual, segundo Ferreira (2015), Mott

[...] faz elogios ao “bolinho de Jesus”, defende sua comercialização por pessoas não caracterizadas pelas indumentárias afro brasileiras e nos surpreende ao defender que o acará deve ser apreciado pela mão invisível do capital, o determinante para a decisão de compra do acará, e não a orientação pela tradição cultural. (FERREIRA, 2015, p. A2)

De fato, a ideologia capitalista, visando a maximização do lucro, pela iniciativa individual, através da exploração do mecanismo da mais-valia, vai descaracterizando os elementos simbólicos da cultura e da fé popular, produzindo a reificação das relações e sentidos históricos e culturais emanados, no caso, pelo abará e pelo acarajé.

A “canibalização” capitalista se alimenta das forças vivas e dinâmicas que se fortaleceram num contexto de opressão e exclusão. Os (as) vendedores (as) de rua surgiram num contexto brasileiro aristocrático do final da escravidão em que a negritude ficou sem terras e sem acesso aos bens produzidos coletivamente. Enquanto os imigrantes italianos chegavam e eram bem acolhidos, os negros eram despedidos de mãos vazias, empurrados para os morros, as periferias, colocando, entre outros, seus tabuleiros na cidade a fim de continuar produzindo sua existência.

O acarajé e o abará são produzidos por subjetividades historicamente constituídas, com seus tabuleiros, suas indumentárias, seus símbolos enfim, erguidos na cidade em sua altivez pelo povo negro, contra uma sociedade que desejava sua destruição. A inserção do negro na sociedade brasileira pós-escravidão pode ser entendida muito bem nessa dialética tensa, preconceituosa, violenta, folclorizada ideologicamente. O sangre negro derramado durante séculos tempera historicamente o acará e o abará, junto ao dendê que o ferve. Foi oferecido ao paladar da sociedade baiana e brasileira como forma de sobreviver material, física, cultural e espiritualmente, a essa mesma sociedade que detestava, e muitos ainda detestam, sua presença neste território e em todo o mundo.

O acarajé é comida sacra de Yansã, alimento litúrgico, partilhado com as pessoas que devem usar as roupas afro-brasileiras conforme determina a lei municipal sob a orientação da tradição religiosa de matriz africana, e quem vende ou manipula o acarajé deve, no mínimo, respeitar a religião que reúne uma parte do nosso povo. (FERREIRA, 2015, p. A3)

Transformados em mercadoria pelos princípios e leis do mercado, o abará e o acarajé, perdem sua essência explicativa, sua força original, sua constituição tensa, violenta, dialeticamente afirmando-se diante desse contexto de negação da negação, como uma das condições de afirmação de um povo, ou, como diz Ferreira, parte dele. A taxa decrescente de lucro e a lei da procura e da oferta não vão atingir a memória de um povo que permanece altivo, oferecendo, também com seu tabuleiro, a mensagem de que não aceita sua destruição, o que me impede de cair na ilusão do fetiche da mercadoria.

Recuso-me a comer o “bolinho de Jesus”, vendido por mãos que rejeitam a nossa história, nossa memória contra a escravidão e todos os seus efeitos, sentidos até hoje. O “bolinho de Jesus” tenta roubar essa memória sagrada, rejeita a forte presença simbólica de nossa gente e ainda coloca Jesus na condição de marca capital de uma mercadoria copiada da comida sacra de Yansã. O discurso que não está escrito, mas está dito, é o seguinte: o “bolinho de Jesus”, abençoado por Este, é limpo das impurezas do candomblé, dos oguns e orixás, etc, e, por isso, com o "Selo Jesus de Qualidade", é o único autorizado para ser comido pelos evangélicos baianos e todas as pessoas de bom senso.

A mensagem acima é uma declaração de profundo desrespeito para com o povo negro que tem as religiões afro-brasileiras como prática de fé. Por isso, não posso comer aquilo que vai ferir a minha alma, o meu senso de justiça, de respeito ao (à) outro (a). Continuo com meu acarajé, com meu abará, que, por sinal, é o motivo principal do meu próximo texto.

Com abará e acarajé, oferecido aos orixás, Joselito de Salvador, da Bahia e da África em nosso território.   

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