Um
artigo de Ailton Ferreira (2015) e uma reportagem no Jornal A Tarde de
segunda-feira, 28/12/2015, nas páginas A3 e A4 apresentam a questão da
canibalização do acará (acarajé) e do abará, possibilitando inúmeras reflexões
sobre o fenômeno, possibilidade na qual me insiro a fim de gerar ainda mais
reflexões sobre um fenômeno que pode passar despercebido para muitas pessoas,
reproduzindo um pensar sobre a africanidade no Brasil que corrobore o racismo e
seus efeitos sobre nossas relações sociais, políticas, econômicas e culturais.
No
artigo de Ailton Ferreira intitulado “ Acarajé, respeito à tradição”, o autor
critica outro artigo publicado no mesmo jornal, do antropólogo Luís Mott, no
qual, segundo Ferreira (2015), Mott
[...] faz elogios ao “bolinho de Jesus”,
defende sua comercialização por pessoas não caracterizadas pelas indumentárias
afro brasileiras e nos surpreende ao defender que o acará deve ser apreciado
pela mão invisível do capital, o determinante para a decisão de compra do
acará, e não a orientação pela tradição cultural. (FERREIRA, 2015, p. A2)
De
fato, a ideologia capitalista, visando a maximização do lucro, pela
iniciativa individual, através da exploração do mecanismo da mais-valia, vai
descaracterizando os elementos simbólicos da cultura e da fé popular,
produzindo a reificação das relações e sentidos históricos e culturais emanados,
no caso, pelo abará e pelo acarajé.
A “canibalização”
capitalista se alimenta das forças vivas e dinâmicas que se fortaleceram num
contexto de opressão e exclusão. Os (as) vendedores (as) de rua surgiram num
contexto brasileiro aristocrático do final da escravidão em que a negritude
ficou sem terras e sem acesso aos bens produzidos coletivamente. Enquanto os
imigrantes italianos chegavam e eram bem acolhidos, os negros eram despedidos
de mãos vazias, empurrados para os morros, as periferias, colocando, entre
outros, seus tabuleiros na cidade a fim de continuar produzindo sua existência.
O
acarajé e o abará são produzidos por subjetividades historicamente
constituídas, com seus tabuleiros, suas indumentárias, seus símbolos enfim,
erguidos na cidade em sua altivez pelo povo negro, contra uma sociedade que
desejava sua destruição. A inserção do negro na sociedade brasileira
pós-escravidão pode ser entendida muito bem nessa dialética tensa,
preconceituosa, violenta, folclorizada ideologicamente. O sangre negro
derramado durante séculos tempera historicamente o acará e o abará, junto ao
dendê que o ferve. Foi oferecido ao paladar da sociedade baiana e brasileira
como forma de sobreviver material, física, cultural e espiritualmente, a essa
mesma sociedade que detestava, e muitos ainda detestam, sua presença neste território e em todo o mundo.
O acarajé é comida sacra de Yansã,
alimento litúrgico, partilhado com as pessoas que devem usar as roupas
afro-brasileiras conforme determina a lei municipal sob a orientação da
tradição religiosa de matriz africana, e quem vende ou manipula o acarajé deve,
no mínimo, respeitar a religião que reúne uma parte do nosso povo. (FERREIRA,
2015, p. A3)
Transformados
em mercadoria pelos princípios e leis do mercado, o abará e o acarajé, perdem
sua essência explicativa, sua força original, sua constituição tensa, violenta,
dialeticamente afirmando-se diante desse contexto de negação da negação, como uma
das condições de afirmação de um povo, ou, como diz Ferreira, parte dele. A
taxa decrescente de lucro e a lei da procura e da oferta não vão atingir a
memória de um povo que permanece altivo, oferecendo, também com seu tabuleiro, a
mensagem de que não aceita sua destruição, o que me impede de cair na
ilusão do fetiche da mercadoria.
Recuso-me
a comer o “bolinho de Jesus”, vendido por mãos que rejeitam a nossa história,
nossa memória contra a escravidão e todos os seus efeitos, sentidos até hoje. O
“bolinho de Jesus” tenta roubar essa memória sagrada, rejeita a forte presença simbólica
de nossa gente e ainda coloca Jesus na condição de marca capital de uma
mercadoria copiada da comida sacra de Yansã. O discurso que não está escrito,
mas está dito, é o seguinte: o “bolinho de Jesus”, abençoado
por Este, é limpo das impurezas do candomblé, dos oguns e orixás, etc, e, por
isso, com o "Selo Jesus de Qualidade", é o único autorizado para ser comido pelos
evangélicos baianos e todas as pessoas de bom senso.
A
mensagem acima é uma declaração de profundo desrespeito para com o povo negro
que tem as religiões afro-brasileiras como prática de fé. Por isso, não posso
comer aquilo que vai ferir a minha alma, o meu senso de justiça, de respeito ao
(à) outro (a). Continuo com meu acarajé, com meu abará, que, por sinal, é o
motivo principal do meu próximo texto.
Com
abará e acarajé, oferecido aos orixás, Joselito de Salvador, da Bahia e da
África em nosso território.
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