Nesse contexto em que nosso país se encontra dividido de um
extremo a outro, alguns brasileiros clamam pela volta da ditadura como solução
definitiva para o problema da corrupção no país. Com um Congresso Nacional no
qual a maioria dos seus representantes está envolvida com a corrupção,
independente de cores partidárias, com os escândalos envolvendo empresas
estatais, políticos e empresários, com a crise que abala a economia brasileira
e com as manobras políticas de setores conservadores da sociedade para tentar a
impossibilidade de voltar atrás na história, o apelo ao regime de exceção na condução
da política brasileira vai beneficiar apenas os grupos sociais, políticos e
culturais que sempre foram agraciados com o acúmulo escandaloso do capital em
nosso território. Logo, o exercício do poder político num contexto ditatorial
só beneficiará as camadas sociais privilegiadas da população brasileira na economia, na política, na ciência e, principalmente, nos serviços sociais, resultando num país
distorcido, com um povo empobrecido, mas lutador e esperançoso na divisão
equânime dos bens produzidos coletivamente.
Os poderes
na arena social
Para entendermos sistematicamente as afirmações acima é
preciso compreender o que é o poder. A política, para produzir seus efeitos de
forma eficaz precisa do exercício organizado do poder. Demonstrando a distinção
entre os poderes sociais econômico, ideológico e político, Bobbio (1995, p.956)
afirma que:
Esta distinção entre três tipos principais de poder social
se encontra, se bem que expressa de diferentes maneiras, na maior parte das
teorias sociais contemporâneas, onde o sistema social global aparece direta ou
indiretamente articulado em três subsistemas fundamentais, que são a
organização das forças produtivas, a organização do consenso e a organização da
coação.
O poder, segundo Bobbio (1995) é a capacidade de um
indivíduo, grupo ou instituição de modificar o comportamento de outro indivíduo,
grupo ou instituição, segundo os seus interesses. O poder econômico é a
capacidade de um indivíduo, grupo ou instituição de modificar o comportamento de outro indivíduo, grupo
ou instituição, segundo os seus interesses, utilizando para isso as vantagens
dos recursos econômicos disponíveis. O poder ideológico é a capacidade de um
indivíduo, grupo ou instituição de modificar o comportamento de outro indivíduo, grupo ou instituição,
segundo os seus interesses, utilizando-se das ideias, crenças, valores, modos de
ser e de estar no mundo, que beneficiam e legitimam o grupo dominante na sociedade.
O poder político é a capacidade de um indivíduo, grupo ou instituição de modificar o comportamento de
outro indivíduo, grupo ou instituição, segundo os seus interesses, utilizando-se
do uso da força, do aparato policial, das forças armadas, dos jagunços, dos
paramilitares, ou seja: de qualquer grupo armado a serviço do grupo dominante.
A organização das forças produtivas – o poder econômico –, a
organização do consenso – poder ideológico – e a organização da coação – poder político
– constituem a base fundamental do “sistema social global”. Num regime de
exceção como é a ditadura, o poder da coação, de prender e arrebentar, como
diria um ex-presidente, cujo nome não pronuncio atendendo ao pedido do maldito saudoso,
é legitimado pelo domínio absoluto do estado sobre a sociedade. Nesse modelo
opressor do estado, o poder econômico age sem controle da população, atendendo de
modo privilegiado aos interesses dos grandes grupos econômicos. O poder
ideológico é utilizado através de meios como jornais nacionais, jornais
impressos, revistas, propagandas do estado no rádio e na televisão, escolas, poder
judiciário, universidades e, entre outros meios, as igrejas, como forma de legitimar
o domínio e a opressão, convencendo a população brasileira da suposta necessidade
do exercício do poder centralizado no estado, dominado por grupos privilegiados,
no qual a população apenas aparece como gado a ser conduzido pela falsidade ideológica
história adentro.
Vocês que fazem parte dessa massa
que passa nos projetos do futuro.
É duro tanto ter que caminhar
e dar muito mais do que receber
e ter que demonstrar sua coragem
À margem do que possa parecer
E, com o exercício do poder ideológico, articulado ao poder
político e ao econômico, nosso povo vai voltando a ser uma massa crente nos “projetos
do futuro”, nunca nos projetos do presente. O país deixa de ser nosso agora,
para ser deles “sempre”. Nesse sentido eu valorizo a contribuição do “Príncipe
do Gueto” em Salvador. "Depois de nós é nós de novo!" O poder ideológico é o mais nefasto, porque a gente
começa a ver o outro, nosso algoz, como o ideal a ser seguido: ideal de beleza,
de trabalho, de organização familiar, etc. e, ao mesmo tempo, começamos a nos
ver como exemplo de trabalho, de família, de religiosidade e de beleza, entre outros, mal sucedido a ser negado e abandonado. Por isso, o importante
papel dos movimentos sociais na atuação contra-ideológica. O movimento negro na
Bahia, por exemplo, tem uma importância ímpar nesse processo quando reconstrói
a percepção da negritude em condições ideológicas favoráveis a essa imensa
parcela da população baiana e brasileira. A noite da beleza negra, para escolha
da Deusa do Ébano, por exemplo, é uma das iniciativas importantíssimas como
posicionamento ideológico crítico da negritude em nossa sociedade. O movimento
dos sem-terra contra o poder do agronegócio, do movimento feminista contra o
poder do machismo com sua violência física e simbólica, dos homossexuais contra
a heteronormatividade e a violência assassina, entre tantos outros movimentos e
grupos críticos dos arranjos sociais dominantes, situam-se na arena ideológica
a favor da afirmação altiva dos negados por séculos de tradições colonizatórias
que caracterizam a opressão no Brasil.
“O conceito de política, entendida como forma de atividade
ou de práxis humana, está
estreitamente ligado ao de poder”, afirma Bobbio (1995). O poder político é, como
vimos acima, em última instância, o poder da coação, do uso da força para
manter o comportamento do outro na submissão, diante dos interesses que
beneficiam os que estão no domínio. Não há, portanto, como entender a política
desvinculada do poder, pois, segundo Bobbio (1995, p.956)
O que caracteriza o poder político é a exclusividade do uso
da força em relação à totalidade dos grupos que atuam num determinado contexto
social, exclusividade que é o resultado de um processo que se desenvolve em
toda a sociedade organizada, no sentido da monopolização da posse e uso dos
meios com que se pode exercer a coação física.
Quem tem a posse legítima do poder político é o estado,
entendido por Weber apud Bobbio (1995) “Por estado se há de entender uma
empresa institucional de caráter político onde o aparelho administrativo leva
avante, em certa medida e com êxito, a pretensão do monopólio da legítima
coerção física, com vistas ao cumprimento das leis.” Embora tenha o monopólio e
a legitimidade do uso da força, através de seu aparelho repressor – polícias,
forças armadas, etc. – a administração institucional do poder – relação de
subordinação entre governante e governados – não pode ser pensada apenas como
ação do estado, senão a cidadania desaparece da cena política e o autoritarismo
se instaura. Daí a importância da negociação para a construção do consenso no
âmbito da sociedade civil.
O
Aparecimento da Sociedade Civil na Trama Política
É nesse
contexto estrutural assim delineado que podemos apresentar a importância da
operacionalização do conceito de sociedade civil. Segundo Bobbio, numa
definição positiva de estado entende-se a sociedade civil como o
[...]
conjunto de relações não reguladas pelo estado, e portanto como tudo aquilo que
sobra uma vez bem delimitado o âmbito no qual se exerce o poder estatal. Mas
mesmo numa noção assim vaga podem-se distinguir diversas acepções conforme
prevaleça a identificação do não-estatal com o pré-estatal, com o anti-estatal
ou inclusive com o pós-estatal. (BOBBIO, 1992, p.34)
Assim, a
política não se restringe à administração do estado. Do ponto de vista da
sociedade civil pré-estatal poderíamos afirmar que a política começa na
sociedade civil.
Numa
primeira aproximação pode-se dizer que a sociedade civil é o lugar onde surgem
e se desenvolvem os conflitos econômicos, sociais, ideológicos, religiosos, que
as instituições estatais têm o dever de resolver ou através da mediação ou
através da repressão. (BOBBIO, 1992, p.36)
Nessa
concepção de sociedade civil a negociação para a construção do consenso, seria
a ação prioritária da política. Contudo, uma vez que o estado não consiga
produzir respostas satisfatórias aos conflitos advindos da sociedade civil ele
perde a governabilidade, o que pode conduzir à perda de sua legitimidade,
podendo evoluir para uma dinâmica anti-estatal ou, quem sabe, desembocar numa
sociedade pós-estatal, o que em nosso contexto parece muito difícil.
A sociedade
civil é uma dimensão importante e imprescindível da política. Nela os conflitos
são gerados e as esperanças concebidas, demandando solução do estado. Este
último, para não perder a governabilidade, utiliza-se de instrumentos e meios para
ficar a par dos interesses da população, ou seja, captar os humores da opinião
pública no intuito de se posicionar na arena política instaurada. A percepção
da opinião pública e de seus distintos interesses no âmbito da sociedade civil
pelo estado é de fundamental importância para orientação do aparelho ideológico
da instituição estatal, pois a decisão deste último – que geralmente é a favor
de um indivíduo, grupo ou instituição e geralmente contra outro indivíduo,
grupo e instituição – vai ser justificada direcionado a uma coletividade e ao
bem-estar da mesma.
O aparelho
ideológico do estado é necessário para se fortalecer a busca pela obtenção do
consenso na sociedade civil através da mediação. Caso contrário, o estado
aciona seu aparelho repressor. Mesmo assim, evidencia o poder que tem a
sociedade civil e que não pode ser desprezado. A sociedade civil não encaminha
apenas as demandas que se tornam objeto de decisão política para o estado.
Encaminha também as orientações e os direcionamentos que os indivíduos, grupos
organizados e instituições dão aos conflitos; encaminha as histórias de
esperanças e as decepções que a elas se seguiram por governos que a desprezava;
encaminha, enfim, a futura decisão em relação ao estado e ao governo que nele
se apresenta. Futura decisão que se mantém na tensão armada no compasso de
espera no campo aberto da política.
Assim, a
sociedade civil é constituída como um cabo de guerra, numa arena política, no
qual movimentos, associações, instituições empresariais, religiosas,
educacionais, partidárias, sindicatos, etc, disputam a orientação e o
direcionamento das demandas levantadas em seu âmbito político, uns tendo a
orientação de classe social e sua luta e, os outros, tendo a orientação liberal
como guia. O poder e a política, nesse sentido, são exercidos cotidianamente,
geralmente, mas nem sempre, na luta pelo bem-estar de uns em detrimento dos
outros. Essa disputa acontece nos campos da saúde, da infraestrutura, da
economia, dos direitos civis, e da educação, entre outros.
Na ditadura, os setores organizados da sociedade civil em
torno dos interesses da negritude, da mulher, dos homossexuais, dos
trabalhadores, dos sertanejos, da intelectualidade crítica aos arranjos
conservadores, entre outros, são silenciados pelo poder político do estado a
serviço dos interesses dominantes e neocolonizatórios. E esse silenciamento é feito com tortura e morte. O contraditório não
constitui elemento do debate político e ideológico, que se restringe às
dimensões técnicas e moralistas, reconstituindo todo um sistema econômico,
jurídico, político e ideológico que justifique e legitime o status quo dominante e excludente. Portanto,
a ditadura só favorece quem possui condições ideológicas, econômicas e políticas
favoráveis à manutenção do poder excludente, com o povo marcado, de volta à sua
“vida de gado” no curral da ordem branca, hetero e burguesa que tenta nos
encurralar na história contemporânea.
Joselito M. de Jesus, professor. Com o auxílio de:
BOBBIO, Norberto. Estado, governo, sociedade; por uma teoria geral da política.
Tradução: Marco Aurélio Nogueira. 4. ed. Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra, 1992.;
________________;.MATTEUCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Tradução Carmen Varriale [et al];
coordenação de tradução: João Ferreira; revisão geral: João Ferreira e Luis
Guerreiro Pinto Cascais. 8. ed./Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília,
1995.
Zé Ramalho: Vida de Gado.