quinta-feira, 28 de abril de 2016

NOSSA POBREZA COLETIVA OU NOSSA QUALIDADE POLÍTICA ORGANIZADA? (Parte I)

A voz de minha bisavó ecoou criança nos porões do navio. Ecoou lamentos [...]
A voz de minha avó ecoou obediência aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe ecoou baixinho revolta nos fundos das cozinhas alheias [...]
A minha voz ecoa versos perplexos com rimas de sangue e fome.
A voz de minha filha recolhe todas as nossas vozes. Recolhe em si
as vozes mudas, caladas, engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha recolhe em si a fala e o ato. O ontem – o hoje – o agora.
(Conceição Evaristo, 1990)

Nosso país passa por um sério retrocesso em relação às conquistas que sua população brasileira organizada obteve nos últimos anos, exigindo uma necessidade de compreensão da nossa forma de exercício da cidadania e de sua pobreza nesse momento tão conturbado de nossa história, no intuito de motivar a ação e o pensamento das pessoas, grupos e instituições a fim de manter essas conquistas obtidas nesse quadro de anacronismo político, cultural e ideológico em que nos encontramos.  
Agora mesmo o vice-presidente Michel Temer está articulando um pacote de maldades contra o trabalhador brasileiro. Há propostas de flexibilização da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), do aumento da idade para aposentadoria e da desvinculação do aumento da aposentadoria do aumento do salário mínimo. Está última, na prática, vai asfixiar financeiramente os aposentados brasileiros, prejudicando enormemente sua já precária qualidade de vida na terceira idade.
Se não houver uma reação vigorosa da população brasileira, numa coletividade unida por laços de solidariedade material, política e ideológica, pagaremos um preço alto para a crise que se coloca como desculpa esfarrapada para a retirada de direitos básicos dos trabalhadores, dos aposentados e da maioria da população brasileira que sustenta esse pesado país em seus ombros, como um calvário permanente que a história nos impõe através do exercício de poder das classes hegemônicas que retomam o controle do estado em suas mãos.
Contudo, devemos refletir sobre esses laços de solidariedade política, ideológica e material que nos une. Mais ainda: refletir sobre o alcance e a qualidade ética e política de nossa suposta união. Para isso, os conceitos apresentados por Pedro Demo (2006) de pobreza política e qualidade política nos auxiliam na busca de compreensão dessa qualidade política de nossa união coletiva. Assim, o entendimento da nossa cidadania será abordado tendo a pobreza e a qualidade política como eixo analítico de seu exercício na sociedade brasileira atualmente, visando, de modo muito humilde e tosco, contribuir para a reflexão que favoreça o fortalecimento da ação política organizada da população brasileira contra sua degradação econômica, social, política e cultural diante dos desafios impostos, nesta nossa tensa realidade atual.

A Pobreza: fenômeno natural ou produção social?

Ninguém nasce pobre. A pobreza é uma discriminação no campo das vantagens sociais. Ou, em linguagem simples. Não nascemos pobres, somos tornados pobres. Somos tornados pobres quando não temos educação pública de qualidade; somos tornados pobres quando a saúde pública funciona mais como um sistema de morte e mal-estar que de recuperação da nossa saúde e bem-estar; somos tornados pobres quando não temos acesso a bens e serviços que nos são negados tendo o critério financeiro de mercado como princípio único de exclusão; somos tornados pobres quando recebemos um pagamento irrisório pelo nosso trabalho, que mal dá para cuidar de nossas necessidades básicas; somos tornados pobres, sobretudo, quando aceitamos a ideia do outro sem questionar seus fundamentos e suas consequências em nossas vidas.
Aceitamos ideias de que somos pobres porque queremos, porque não estudamos, porque somos preguiçosos, indolentes, inconsequentes com o nosso futuro; aceitamos ideias de que os brancos são melhores que nós e que, por isso, merecem sempre estar no domínio dos rumos de nossa sociedade; aceitamos passivamente ideologias estéticas de que o bonito e o belo só pode ser coisa de branco, loiro, corpo “assim ou assado”, olhos claros, azuis ou verdes, etc; aceitamos pensar, de modo impensado, de que a crise econômica deve ser paga pelos trabalhadores brasileiros e pelas classes populares, porque somos a maioria, enquanto aceitamos passivamente a reprodução dos privilégios dos mais ricos e abastados; quando agimos pensando que a mulher é inferior ao homem estamos pensando como a dominação masculina deseja, e estamos, ao aceitar todo esse conjunto de ideias, entre outras, motivando a violência contra a mulher, contra o negro, o homossexual, o indígena, o analfabeto e contra nós mesmos, a favor do macho adulto rico branco, nem sempre no comando (https://www.letras.mus.br/caetano-veloso/44757/).  

A Pobre Pobreza do Individualismo sem Saída

O projeto de sociedade das elites, de modo geral, funciona assim: ele produz a pobreza e produz, para a pobreza continuar sendo pobre, a ideologia de que essa condição é responsabilidade do pobre ou “mau jeito do mercado, produto eventual, fortuito, não questão estrutural, parte integrante do capitalismo” (DEMO, 2006, p.06). Assim, somos concebidos por essa história de negação pensando que nossa condição material precária é culpa de nossos pais e avós. Assumimos a responsabilidade por ela e nos esforçamos ao máximo para sairmos dessa situação desfavorável através de nossos estudos e do nosso trabalho. Desse modo, a nossa pobreza econômica se alia à pobreza política para reproduzir nossa pobreza de sempre. Aceita sem reclamos, mas com resignação e a certeza de que estamos cumprindo o nosso papel individual na busca pela melhoria de nossas condições materiais de existência na sociedade capitalista.

Não sairemos dessa pobreza assim. Desculpe te decepcionar meu caro/minha cara estudante/colega. No plano do exercício de nossas potencialidades individuais que o liberalismo nos propõe, só estaremos contribuindo ainda mais para o acúmulo da riqueza nas “mãos invisíveis” do capital privado. No plano individual alguns poucos podem até melhorar sua situação – anotem isso: alguns poucos – mas do ponto de vista da maioria dos nossos irmãos e nossas irmãs, colegas, companheiros/as, somente a provocação unida e exigente por políticas públicas de inclusão, elaboradas no âmbito da sociedade civil e sancionadas e implementadas no âmbito do estado, é que muitos de nós poderemos juntos, nessa coletividade implicada com nossa assunção social, melhorar nossa qualidade de vida. O Movimento dos Sem-Terra (MST) consegue fazer isso razoavelmente bem. Caso contrário, seguiremos cantando o trecho de “Sangue Latino” com Ney Matogrosso:

Jurei mentiras
E sigo sozinho
Assumo os pecados
Uh! Uh! Uh! Uh!

Os ventos do norte
Não movem moinhos
E o que me resta
É só um gemido

Minha vida, meus mortos
Meus caminhos tortos
Meu Sangue Latino
Uh! Uh! Uh! Uh!
Minh'alma cativa

Do mesmo modo, no plano cultural e ideológico, só conseguiremos sair de nossa condição de pobreza política, tirando nossa alma do cativeiro, quando investigarmos profundamente as ideias e os mecanismos políticos e econômicos que nos dominam em nossa prática cotidiana. Porque nos contradizemos. E, no plano individual, soltos como unidades humanas de produção, não poderemos entender o mecanismo amplo que nos empobrece. Nossa atividade mental produz “o protesto individualista do mendigo, ou a resignação mística do penitente.” (BAKHTIN, 2002, p.115). “Deus quis assim”; “É desse jeito”, “É assim mesmo”, são expressões que caracterizam essa percepção mental ideologicamente empobrecida de aceitação passiva da realidade. Portanto, no plano individual de nossos esforços e esperanças não sairemos de nossa pobreza produzida e reproduzida pelas tramas dos poderes dominantes em suas políticas assistencialistas e de exclusão.

NOSSA POBREZA COLETIVA OU NOSSA QUALIDADE POLÍTICA ORGANIZADA? (Parte II)

Politicidade e Coletividade Institucionalizada

Precisamos de uma politicidade implicada coletivamente, tecida por laços de solidariedade no reconhecimento de nosso pertencimento a um grupo, a uma classe social concebida pela negação de seus direitos fundamentais e pela história de organização e lutas pela afirmação de nossos direitos a existência decente, porque cansamos de trabalhar, comer e dormir em benefício do lucro alheio; porque cansamos dessa vida de gado e queremos bebida, diversão e arte.
A gente não quer só comida
A gente quer comida, diversão e arte
A gente não quer só comida
A gente quer saída para qualquer parte

A gente não quer só comida
A gente quer bebida, diversão, balé
A gente não quer só comida
A gente quer a vida como a vida quer

Bebida é água!
Comida é pasto!
Você tem sede de quê?
Você tem fome de quê?

A gente não quer só comer
A gente quer comer e quer fazer amor
A gente não quer só comer
A gente quer prazer pra aliviar a dor

A gente não quer só dinheiro
A gente quer dinheiro e felicidade
A gente não quer só dinheiro
A gente quer inteiro e não pela metade

(http://www.vagalume.com.br/titas/comida.html)

Demo, (2006, p.10) entende “[...] como politicidade a habilidade humana de, dentro das circunstâncias dadas, tomar o destino em suas mãos e construir a autonomia relativa possível como sujeito.” Mas essa politicidade necessária não é construída no plano individual, pois este, sozinho, não possui os recursos intelectuais necessários para identificar as estruturas que atuam em seu processo de empobrecimento, nem recursos políticos e econômicos para elaborar e executar ações consistentes de enfrentamento bem sucedido a tais estruturas. Somente como sujeito coletivo e institucional é que essa politicidade sai do plano do lamento e da resignação e entra efetivamente na cena da desconstrução política, econômica e ideológica das estruturas que o empobrecem. Nesse sentido, Bakhtin (2002, p.116) demonstra que  
De maneira completamente diferente será experimentada a fome pelos membros de uma coletividade unida por vínculos objetivos (batalhão de soldados, operários reunidos no interior da usina, trabalhadores numa grande propriedade agrícola de tipo capitalista, enfim toda uma classe social desde que nela tenha amadurecido a ‘noção de classe para si’). Nesse caso dominarão na atividade mental as tonalidades do protesto ativo e seguro de si mesmo; não haverá lugar para uma mentalidade resignada e submissa. É aí que se encontra o terreno favorável para um desenvolvimento nítido e ideologicamente bem formado da atividade mental.  
A noção de “classe para si” somente é elaborada no interior da participação política do sujeito em grupos, movimentos e instituições que identificam as estruturas de poder e as ideologias da legitimação do domínio num processo dialógico intenso, promovendo assim o surgimento da força coletiva estabelecida em fundamentos políticos e éticos que move uma multidão rumo à busca da transformação das estruturas que a empobrece. E assim poderemos sair do lamento, da pobreza política e começarmos o processo de ruptura, passando a cantar, dialeticamente, o trecho seguinte do “Sangue Latino”, com o mesmo Ney Matogrosso:
Rompi tratados
Traí os ritos
Quebrei a lança
Lancei no espaço
Um grito, um desabafo

E o que me importa
É não estar vencido
Minha vida, meus mortos
Meus caminhos tortos

O horizonte da qualidade política guia nossa luta ativa, rompendo velhos tratados, traindo ritos que nos aprisionam, lançando nosso grito, nosso desabafo, jogando para fora do nosso espaço a lança ideológica alheia que nos fere a subjetividade ampla que nos caracteriza, nos une, nos estimula a criar formas de luta e enfrentamentos, não mais como indivíduos solitários, renunciados e frágeis, batendo a cabeça no muro da vergonha individual, mas como sujeitos políticos engajados em movimentos, associações, sindicatos e instituições que nos fortalecem enquanto sujeitos coletivos, porque o que importa é não estarmos vencidos, nem humilhados diante da arrogância do ethos capitalista, mas tecendo caminhos tortos diante dessas asas retas de Brasília que não pode sair do chão enquanto nossa emancipação e nosso bem-estar coletivo não estiver postos em seu plano de voo.  

Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de e com Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel com o apoio de:

BAKHTIN, Mikhail (VOLOCHINOV). Marxismo e filosofia da linguagem. 9. ed. São Paulo: Hucitec/Annablume, 2002.

DEMO, Pedro. Pobreza política: a pobreza mais intensa da pobreza brasileira. Campinas. SP: Armazém do Ipê (Autores Associados), 2006.

TAVARES, Conceição. Vozes-mulheres. Cadernos Negros 13; Quilombhoje. São Paulo, 1990.

sábado, 16 de abril de 2016

MANDELANDO O BRASIL

Professora: Quem dividiu o Brasil?

Estudante: Professor/a, a pergunta não seria quem descobriu o Brasil?

Professora: Não. Nesse contexto histórico atual a pergunta que fiz está correta.

Estudante: Wiliam Bonner, Miriam Leitão e Wiliam Waack dizem que foi o PT. Mas, desde que sou criança, vejo que somos divididos.

Professora: Ah, muito bem! Você desconfia de quem nos dividiu?

Estudante: olha pró, sou um rapaz negro, nordestino e pobre. Já nasci apartado. Minha irmã nunca foi escolhida para ser a rainha do milho, nem mesmo da laranja ou da jabuticaba.

Professora: Huum. Continue.

Estudante: Só entrei na universidade através das cotas e desde a contribuição dos/as meus/minhas professores/as da educação básica, comecei a perceber que a divisão começou há muito tempo. Teve um autor que eu li que afirmou o seguinte:

A Lei de Terras, em 1850, visou formalizar as posses das terras, no período do fim do tráfico de escravos. Se todos (ex-escravos, brancos que não tinham propriedade, pequenos agricultores) tivessem condições de comprar e regularizar a posse da terra não haveria mão de obra para substituir o sistema escravista. Após a abolição, o Brasil oferece incentivos à imigração e existe o movimento de pobres e ex-escravos expulsos do campo para as cidades para o trabalho em subempregos, com início da criação de bolsões de pobreza nas cidades (VELLOSO, 2013, p. 124).

Então meus antepassados foram impedidos de desenvolverem em paz suas capacidades e produzirem sua riqueza através do trabalho, professora. Eu descobri que não nasci pobre porque meus pais e avós não gostavam de estudar e trabalhar, como eu pensava antes. Eles foram impedidos de se desenvolverem por outros grupos humanos! Foram empobrecidos!

Professora: Muito bem meu jovem! Sua percepção crítica está muito boa. E o seu domínio técnico-científico está aliado a essa percepção?

Estudante: Sim professora. Entendi que minha luta para que a história não se repita passa pelo meu empoderamento através também de uma aprendizagem eficiente, conquistada com muita dedicação e disciplina. Passa pela minha associação com meus colegas, professores/as, grupos, instituições, associações e movimentos políticos e sociais.

Professora: Então vamos reunir essa nação baseados em outros fundamentos e princípios? Vamos mandelar para acabar com esse apartheid nacional?
Estudante: Vamos pró!

Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel.