A voz de minha bisavó ecoou criança nos porões do navio.
Ecoou lamentos [...]
A voz de minha avó ecoou obediência aos brancos-donos de
tudo.
A voz de minha mãe ecoou baixinho revolta nos fundos das
cozinhas alheias [...]
A minha voz ecoa versos perplexos com rimas de sangue e
fome.
A voz de minha filha recolhe todas as nossas vozes. Recolhe
em si
as vozes mudas, caladas, engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha recolhe em si a fala e o ato. O ontem –
o hoje – o agora.
(Conceição Evaristo, 1990)
Nosso país passa por um
sério retrocesso em relação às conquistas que sua população brasileira organizada
obteve nos últimos anos, exigindo uma necessidade de compreensão da nossa forma
de exercício da cidadania e de sua pobreza nesse momento tão conturbado de
nossa história, no intuito de motivar a ação e o pensamento das pessoas, grupos
e instituições a fim de manter essas conquistas obtidas nesse quadro de
anacronismo político, cultural e ideológico em que nos encontramos.
Agora mesmo o
vice-presidente Michel Temer está articulando um pacote de maldades contra o
trabalhador brasileiro. Há propostas de flexibilização da Consolidação das Leis
do Trabalho (CLT), do aumento da idade para aposentadoria e da desvinculação do
aumento da aposentadoria do aumento do salário mínimo. Está última, na prática,
vai asfixiar financeiramente os aposentados brasileiros, prejudicando
enormemente sua já precária qualidade de vida na terceira idade.
Se não houver uma reação
vigorosa da população brasileira, numa coletividade unida por laços de
solidariedade material, política e ideológica, pagaremos um preço alto para a
crise que se coloca como desculpa esfarrapada para a retirada de direitos
básicos dos trabalhadores, dos aposentados e da maioria da população brasileira
que sustenta esse pesado país em seus ombros, como um calvário permanente que a
história nos impõe através do exercício de poder das classes hegemônicas que retomam
o controle do estado em suas mãos.
Contudo, devemos refletir
sobre esses laços de solidariedade política, ideológica e material que nos une.
Mais ainda: refletir sobre o alcance e a qualidade ética e política de nossa suposta
união. Para isso, os conceitos apresentados por Pedro Demo (2006) de pobreza política e qualidade política nos auxiliam na busca de compreensão dessa
qualidade política de nossa união coletiva. Assim, o entendimento da nossa
cidadania será abordado tendo a pobreza e a qualidade política como eixo analítico
de seu exercício na sociedade brasileira atualmente, visando, de modo muito humilde
e tosco, contribuir para a reflexão que favoreça o fortalecimento da ação
política organizada da população brasileira contra sua degradação econômica,
social, política e cultural diante dos desafios impostos, nesta nossa tensa
realidade atual.
A Pobreza: fenômeno natural ou produção social?
Ninguém nasce pobre. A
pobreza é uma discriminação no campo das vantagens sociais. Ou, em linguagem
simples. Não nascemos pobres, somos tornados pobres. Somos tornados pobres quando
não temos educação pública de qualidade; somos tornados pobres quando a saúde
pública funciona mais como um sistema de morte e mal-estar que de recuperação
da nossa saúde e bem-estar; somos tornados pobres quando não temos acesso a
bens e serviços que nos são negados tendo o critério financeiro de mercado como
princípio único de exclusão; somos tornados pobres quando recebemos um
pagamento irrisório pelo nosso trabalho, que mal dá para cuidar de nossas
necessidades básicas; somos tornados pobres, sobretudo, quando aceitamos a
ideia do outro sem questionar seus fundamentos e suas consequências em nossas
vidas.
Aceitamos ideias de que
somos pobres porque queremos, porque não estudamos, porque somos preguiçosos,
indolentes, inconsequentes com o nosso futuro; aceitamos ideias de que os
brancos são melhores que nós e que, por isso, merecem sempre estar no domínio
dos rumos de nossa sociedade; aceitamos passivamente ideologias estéticas de
que o bonito e o belo só pode ser coisa de branco, loiro, corpo “assim ou
assado”, olhos claros, azuis ou verdes, etc; aceitamos pensar, de modo
impensado, de que a crise econômica deve ser paga pelos trabalhadores
brasileiros e pelas classes populares, porque somos a maioria, enquanto
aceitamos passivamente a reprodução dos privilégios dos mais ricos e abastados;
quando agimos pensando que a mulher é inferior ao homem estamos pensando como a
dominação masculina deseja, e estamos, ao aceitar todo esse conjunto de ideias,
entre outras, motivando a violência contra a mulher, contra o negro, o
homossexual, o indígena, o analfabeto e contra nós mesmos, a favor do macho adulto
rico branco, nem sempre no comando (https://www.letras.mus.br/caetano-veloso/44757/).
A Pobre Pobreza do Individualismo sem Saída
O projeto de sociedade das elites,
de modo geral, funciona assim: ele produz a pobreza e produz, para a pobreza
continuar sendo pobre, a ideologia de que essa condição é responsabilidade do pobre
ou “mau jeito do mercado, produto eventual, fortuito, não questão estrutural,
parte integrante do capitalismo” (DEMO, 2006, p.06). Assim, somos concebidos
por essa história de negação pensando que nossa condição material precária é culpa de nossos pais e
avós. Assumimos a responsabilidade por ela e nos esforçamos
ao máximo para sairmos dessa situação desfavorável através de nossos estudos e do nosso trabalho. Desse
modo, a nossa pobreza econômica se alia à pobreza política para reproduzir nossa
pobreza de sempre. Aceita sem reclamos, mas com resignação e a certeza de que estamos cumprindo o nosso papel individual na busca pela melhoria de nossas condições materiais de existência na sociedade capitalista.
Não sairemos dessa pobreza
assim. Desculpe te decepcionar meu caro/minha cara estudante/colega. No plano
do exercício de nossas potencialidades individuais que o liberalismo nos propõe,
só estaremos contribuindo ainda mais para o acúmulo da riqueza nas “mãos invisíveis”
do capital privado. No plano individual alguns poucos podem até melhorar sua
situação – anotem isso: alguns poucos – mas do ponto de vista da maioria dos
nossos irmãos e nossas irmãs, colegas, companheiros/as, somente a provocação
unida e exigente por políticas públicas de inclusão, elaboradas no âmbito da sociedade
civil e sancionadas e implementadas no âmbito do estado, é que muitos de nós
poderemos juntos, nessa coletividade implicada com nossa assunção social,
melhorar nossa qualidade de vida. O Movimento dos Sem-Terra (MST) consegue
fazer isso razoavelmente bem. Caso contrário, seguiremos cantando o trecho de “Sangue
Latino” com Ney Matogrosso:
Jurei
mentiras
E
sigo sozinho
Assumo
os pecados
Uh!
Uh! Uh! Uh!
Os
ventos do norte
Não
movem moinhos
E
o que me resta
É
só um gemido
Minha
vida, meus mortos
Meus
caminhos tortos
Meu
Sangue Latino
Uh!
Uh! Uh! Uh!
Minh'alma
cativa
Do mesmo modo, no plano
cultural e ideológico, só conseguiremos sair de nossa condição de pobreza
política, tirando nossa alma do cativeiro, quando investigarmos profundamente as ideias e os mecanismos políticos e econômicos que nos dominam em nossa
prática cotidiana. Porque nos contradizemos. E, no plano individual, soltos
como unidades humanas de produção, não poderemos entender o mecanismo amplo que
nos empobrece. Nossa atividade mental produz “o protesto individualista do
mendigo, ou a resignação mística do penitente.” (BAKHTIN, 2002, p.115). “Deus
quis assim”; “É desse jeito”, “É assim mesmo”, são expressões que caracterizam
essa percepção mental ideologicamente empobrecida de aceitação passiva da
realidade. Portanto, no plano individual de nossos esforços e esperanças não
sairemos de nossa pobreza produzida e reproduzida pelas tramas dos poderes
dominantes em suas políticas assistencialistas e de exclusão.