Eu estava correndo e a memória de
uma tristeza ainda não suficientemente chorada ficou latejando. Apesar dos anos
ainda sinto uma tristeza enorme em função da falta de meus pais e de todo
aquele universo que nos cercava. Sei que nós, humanos, tendemos a apagar os
momentos mais terríveis de nossas memórias, ficando apenas com os momentos mais
sublimes ou, pelo menos, aqueles que assim tornamos. Mas não quero saber disso
nesta hora que a tristeza reclama da presença da ausência deles. Nair Dórea de
Jesus e José Manoel de Jesus, meu pais.
Creio que não guardei o luto como
devia, nem chorei como podia e, por isso, a tristeza desta saudade sempre
aparece em meu ser. Sou um homem dividido em relação à fé. Mas tenho de crer
assim mesmo, para que a morte não elimine definitivamente todas as minhas
esperanças. As vezes dá uma vontade de voltar no tempo a fim de abraçá-los mais
uma vez e dizer o quanto os amava e que não compreendia isso naquele momento. Algumas
pessoas dizem que o saber traz sofrimento. Mas a ignorância traz ainda mais,
porque somente considera as outras pessoas, natureza e o mundo a partir de seu
ego enfermo. O exercício da alteridade é impossibilitado de acontecer naqueles
e naquelas que só percebem a si mesmos/as no mundo, tomando-se como “ponto-de-fuga”
na constituição da realidade, realidade mesquinha e tosca.
E nesta noite eu preciso chorar a
morte de meus pais. Preciso sentir profundamente o significado de tal evento
para mim. Antes eu queria me separar deles e viver a “minha vida”, naquela
liberdade que toda juventude anseia e busca. Mas agora, nesta hora da minha
existência, na qual eu mesmo estou mais próximo da morte, tive um desejo imenso
de ser filho e ter meus pais ao lado. Para pedir todos os perdões que fossem
possíveis, para abraçar todos os abraços que pudesse, para amar sem mais, nem
menos, só amar, sem porquês, sem senões. Se eu pudesse inventar uma máquina do
tempo voltaria mais para abraçar e pedir perdão. Voltaria para olhar nos olhos
e, sem dizer uma palavra, dizer tudo o que estou sentindo sobre a importância
deles em minha constituição ontológica.
Depois faria um café, pois o café
sempre foi a bebida que nos encontrava palavras adentro, formando um feixe
dialógico em torno da mesa da cozinha. Neste feixe, todos tecíamos nossas rendas
sob a orientação de Nair Dórea de Jesus. À noite o café antecedia a cama e os
sonhos. Pela manhã este líquido preto acordava nosso olfato, formando um hábito
que nunca nos abandonou. Aprendi a fazer café para produzir aquele cheiro de
sempre que compõe minha memória afetiva. Para mim, fazer café tem um
significado profundo e fecundo. É sacramento. É a voz que ninguém mais ouve, é
a mão que ninguém mais toca, é o abraço que ninguém mais dá, é a oferenda que
ninguém pode fazer por mim aos meus pais e, pelas histórias que ela e ele
contavam, aos meus avós. De vez em quando o café aparecia nas memórias que meus
pais contavam ao redor da cama em noites de candeeiro e de colchas de retalhos.
E, de histórias em histórias, de retalhos em retalhos, costurávamos o sentido do
mundo e de nós mesmos nele. Fazer café é celebrar a memória fecunda de minha
família. É encontrar-se com a própria história singular de quem compartilhou
café, afeto e memória, formando subjetividades entrelaçadas naqueles rituais de
todos os dias.
Na política nacional do “café com
leite” este segundo elemento só ficou conhecido muito tempo depois, por causa
de nossa pobreza. Até hoje tenho a sensação de que o leite branco suja o café
preto, contaminando sua pureza original, retirando o seu cheiro fundante das
manhãs e dos finais de tarde, apagando uma memória que guardo nas profundezas de
minha história. Poucas vezes eu vi alguém colocar primeiro o leite na xícara, para depois o café. Geralmente o café sempre vem primeiro, porque talvez, na memória de nossa gente, o café seja primordial. O luto eu também guardo em meu ser. De modo errôneo. Tanto que
ainda preciso chorar toda a tristeza que em mim está insepulta, reapresentando a
morte que não passou pelo ritual necessário para seguir seu caminho de além. Um
além que está aqui, talvez além do meu controle, mas não muito além do meu desejo de
novamente celebrar com o café preto a presença dos pais que nunca morreram em
mim.
Joselito da Nair Dórea de Jesus e
do José Manoel de Jesus.
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