segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Orai e Vigiai no Espelho de Si Mesmo.

Percebo, na sociedade contemporânea, um movimento estranho ao processo de humanização: uma desumanização crescente que caminha rumo à barbárie em função de atitudes desrespeitosas para com o Outro. Hoje, 15/11/2010, o noticiário mostrou o episódio em que jovens de classe média alta de São Paulo, em plena Avenida Paulista, atacaram brutalmente outros jovens motivados por homofobia. Há pouco, uma jovem estudante de direito incitava os paulistas a afogarem nordestinos, por esses serem culpados da eleição de Dilma para Presidente da República. São atitudes alimentadas ideologicamente e passadas de geração a geração, pois preconceito, embora não seja matéria escolar, é conteúdo social que possui uma eficácia pedagógica impressionante. Nós aprendemos e gostamos – ou aprendemos porque gostamos? – a sermos preconceituosos. E transformamos tal aprendizado em atitudes hostis com qualquer outro que nos seja estranho.

Na base parafrástica de Sartre, do “o inferno é o outro”, vamos experimentando nazismos e paulistanismos possíveis, dominados por idéias xenófobas, que vão matando os outros, seja simbolicamente, seja de fato. Edgar Morin nos avisa que muitas vezes pensamos que somos donos de nossas idéias, mas, ao contrário, elas é que são nossas donas, elas, as idéias, são quem nos dominam e nos controlam e, dominados por certas idéias, a loucura e a insensatez aparecem como sintomas de uma sociedade que não pensa sobre seus próprios pensamentos. Há idéias que nos têm que nem pensamos em pronunciá-las. Escondemo-las de nós mesmos empurrando para o inconsciente. Mas esquecemos que somos controlados mais pelo inconsciente do que pelo consciente, por isso, o importante e imprescindível papel da psicanálise. Jesus fez uma espécie de psicanálise quando perguntou ao endemoninhado qual o nome daquele que afligia aquela alma. E ele(s) respondeu (ram): “Legião é o meu nome, porque somos muitos”. (MARCOS, 5: 8-9). É preciso saber os nomes das muitas idéias que nos dominam, para que possamos exorcizá-las de nós. Inveja, preconceito, xenofobia, homofobia, racismo, misoginia e tantas idéias medíocres sobre negros, mulheres, homossexuais, nordestinos, nortistas, crianças, jovens, portadores de deficiência física e mental, ricos, baixos, altos, feios, cabeleireiros, bailarinos, africanos, moradores de favela, entre tantas e tantas idéias que, embora endemonizem os outros, é o próprio demo agindo em nós.

Caso comecemos uma nova caça às bruxas, começaremos matando nordestinos, negros, homossexuais, favelados, indígenas, moradores de rua, travestis, ladrões, portadores de deficiência, judeus, não-cristãos, ateus, entre outros. Depois de ser feita a “limpeza”, enfim descansaremos em paz na sociedade que sempre sonhamos... Será? Não. Porque haverão outros estranhos e forasteiros para queimar na “fogueira santa”. Os neonazistas espalhados pelo mundo se juntarão aos neoinquisidores e aos talibãs e recomeçarão nova matança. Estudos genéticos serão feitos para comprovar a pureza do sangue de alguns brancos. Mulheres que tiverem problemas de menstruação e outras que forem estéreis, benzedeiras, Mães de Santo, serão queimadas vivas, pois serão consideradas aberrações, bruxas contemporâneas. As vezes a gente pensa só nos lemas da Revolução Francesa: Igualdade, liberdade, fraternidade. Bonito. Mas até a decapitação de Robespierre não podemos esquecer que houve um grande e cruel derramamento de sangue inocente. Pessoas que apenas eram injustamente acusadas de conspirar contra a nova ordem, perdiam suas cabeças nas guilhotinas francesas. Os filhos da antiga burguesia foram sistematicamente abandonados e pereceram prematuramente. Agora há outros Outros. Os imigrantes latinos, africanos, indianos e mulçumanos não são manos. Mesmo os que foram “batizados” e os proselitistas são tratados como seres inferiores. Hélio Pólvora, Escritor, Membro da Academia Baiana de letras, um senhor elegante de cabelos grisalhos, revela, no jornal A Tarde do dia 13/11/2010, na página 6 do Caderno 2, como foi tratado por uma garçonete americana. Diz ele:

Certa vez, em San Francisco, esqueci-me que não estava no Brasil e chamei uma garçonete assim: “Psiu!” Foi o bastante para que ela, uma loura magra de cabelo trançado e ancas estreitas, estourasse: - My name is not Psiu! I’m not a cat, do you understand? Please, call me waitress!” (Não me chamo Psiu. Não sou gato, entende? Queira chamar-me de garçonete). E, com ar escarninho, de fundo desprezo, resmoneou alto: - These mexicans! (Mexicanos duma figa). Fui à forra: - See here, waitress. I’m not Mexican. I came from a country more down southward. (Olhe aqui garçonte. Não sou mexicano. Vim de um país mais ao sul)
Certamente que esta garçonete concorda com a forma utilizada pela estudante de direito paulista, modificando apenas o conteúdo. Poderia ser assim: - Façam um favor aos EUA, matem um mexicano afogado na fronteira ou dentro dela. E assim vamos nós. Nordestinos, mexicanos, africanos, mulçumanos, sempre haverá alguém para bode expiatório. Sempre haverão candidatos para a “fogueira purificadora” da humanidade, de certa humanidade desumana.

Jesus nos fala que devemos orar e vigiar para não cairmos em tentação. Orar, sim. Pois há forças maiores que o próprio ser humano, forças silenciosas sustentadas em idéias de caça às bruxas, cultivadas em cada um de nós. Há idéias malévolas que insistem em nos controlar. Por isso, perdidos nesse antropocentrismo da barbárie, precisamos de Alguém Maior, de um Ser Superior onde nos apegamos para não sufocar em nosso próprio vômito. Mas não podemos esquecer que devemos fazer a nossa parte. Há uma margem de manobra de nossas ações e, por isso, além de orar, devemos vigiar. E o que é esse “vigiar’? É olhar e tecer sobre a vida dos outros, “os pecadores”? Não. É vigiar a nós mesmos. E não há outro caminho senão pensarmos sobre os pensamentos que residem em nós, que habitam nossa alma e que não confessamos nem para nós mesmos. Vigiar é olhar no espelho o reflexo de nós mesmos: Reflexão. É essa margem que nos cabe. Ver a imagem que se projeta, pois pode ser que, surpreendemente, possamos ver no espelho a estudante paulista ou a garçonete americana falando com outras palavras as mesmas idéias. Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel

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