terça-feira, 18 de janeiro de 2011

A morte lhes cai muito bem

Leonardo Boff nos conta que a morte não é algo estático. Morremos desde o dia em que fomos concebidos, com pecado, com muito gosto, com muito prazer, deixando jorrar o sêmen que hidrata nosso riso. A vida e a morte merecem “o gozo supremo dos mortais”. Vivo e morro, e entendo isto de maneira surpreendente. A vida e a morte estão entrelaçadas permanentemente, convivendo/morrendo, fazendo história e glória. Algumas vezes essa relação ganha vida e a abundância, a paz, o amor, o perdão, a misericórdia e a solidariedade prevalecem. Algumas vezes o contrário ganha terreno, e a guerra, a ganância, o terror, a sordidez, a indiferença e a vingança ganham hegemonia. E assim caminha a humanidade desde que surgiu no planeta terra. A vida roda sobre a morte, como o Windows sobre o DOS. Rubem Alves afirma que a morte é nossa grande mestra. Aprendemos a viver porque a morte nos pressiona, nos avisa constantemente que o tempo está fugindo e, portanto, é preciso colher o dia. Alves nos diz que “quem sabe que o tempo está fugindo descobre, subitamente, a beleza única do momento que nunca mais será.” E o que nunca mais será morre em sua própria realização. Enterramos o momento no momento em que o vivemos. E quanto mais é significativo o momento, mais profundo é o sentimento de sua perda, mais tememos seu fim inevitável, mais desejamos repeti-lo. É assim: um paradoxo.

Vi aquele monte de corpos no chão de uma delegacia numa das cidades serranas do Rio de Janeiro onde aconteceu tragédia recente. Aquele monte de corpos, pessoas cheias de sonhos e conquistas para 2011, planejando mil e uma coisas para os próximos 300 e tantos dias desse ano, jaziam sem vida, cheias de morte e desesperança. Cruzaram o umbral aparentemente definitivo da humanidade e agora seus entes queridos vivos esperam contra toda a esperança, para poderem continuar além da dor que pulsa toda poderosa no coração de cada um deles, a partir da relação entre humanidade, sociedade e natureza. Aqueles mortos estão todos pronunciando palavras de vida, nos avisando da situação precária do ser humano. Ensinando-nos a viver cada segundo, a aproveitar cada minuto, pois a vida é um fio tênue que se desfaz na água, no vento, na rocha, na escada, no tempo. Através de seu personagem Guimarães Rosa nos avisa que viver é muito perigoso.

Muitos colegas meus, vizinhos, morreram prematuramente. Muitos. A maioria pela violência que os engoliram, outros poucos por doenças. A vida, para esses colegas, sempre foi mais próxima da morte. A vida, na verdade, para quem mora em bairros da periferia, sempre é mais próxima da morte. Não é uma fatalidade, não precisa ser. É uma realidade. A falta de escolas públicas de qualidade, de serviços aceitáveis de saúde, limpeza urbana, saneamento e lazer vão empurrando desesperanças para cima dos mais pobres. O Estado se apequena de tanto querer abandonar os seres humanos em situação mais precária que a própria vida em seu estado natural. Muitos entraram para o tráfico de drogas, não porque quisessem ou tivessem o “instinto” mais malévolo que o meu. Entraram no caminho da morte para ver se viviam mais um pouco menos morrendo. E terminaram morrendo prematuramente porque, como ratos de laboratório, foram sendo guiados no labirinto que a nossa sociedade e seu Estado desenha meticulosamente. Fica muito difícil para algumas subjetividades forjadas na periferia escaparem dessa armadilha bem preparada que leva muitos jovens pobres para o alçapão da morte. Sem escolas de qualidade que permitam um aprendizado eficaz assegurado por um ensino eficiente não há possibilidade dos jovens que freqüentam tais escolas de adentrarem com dignidade o mercado de trabalho. Sem esperança, sem acesso ao sistema de saúde, educação, serviços públicos essenciais aos jovens negros, na maior parte dos casos, são “guiados” para a saída do crime e vão se aproximando da morte, sendo nela envolvidos, marcados, selados, preparados no ritual do mundo marginal, adquirindo tatuagens, linguagem específica, expressões faciais, atitudes. São educados para matar e para morrer. A morte não lhes ensina vida, pois esta foi-se perdendo nos corredores percorridos do labirinto, forjando aqueles defuntos nas cadeias, nas ruas, nas beiras das cidades. A morte vai acontecendo no analfabetismo, nas doenças, nos barracos, no homem invisível que a sociedade não vê, faz questão de não ver, que o Estado o apaga definitivamente na aparente saída definitiva do labirinto. A morte, portanto, lhes cai muito bem.

Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel.

2 comentários:

  1. Desde pequena ouço falar da importância de dar o real valor para o presente, haja vista que o futuro e a vida é algo muito incerto. Porém, foram poucos os textos, semelhantes a esse, que levaram-me uma compreensão pacífica acerca do sentido da " morte".

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  2. Que bom Juliete. Quando a gente entende isso fica mais em paz, pois esperamos a morte preparando nossa vida com tranquilidade para recebê-la com certa elegância.

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joselitojoze@gmail.com