quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

“Todo Risco” da Ontologia Política

Todo Risco

A possibilidade de arriscar é que nos faz homens
Vôo perfeito no espaço que criamos
Ninguém decide sobre os passos
que evitamos
certeza de que não somos pássaros
e que voamos
Tristeza de que não vamos
por medo dos caminhos.  
                                                                           Damário da Cruz

Esta poesia – Todo Risco, de Damário da Cruz – expressa, numa bela síntese, a natureza da dimensão política do ser humano. É na possibilidade de arriscar, de escolher, de optar, de decidir que, segundo Aristóteles (2002), se encontra a origem da política no humano, que o distingue do animal, como destacamos nesta citação abaixo:

De modo muito claro entende-se a razão de ser o homem um animal sociável em grau mais alto do que as abelhas e os outros animais todos que vivem reunidos. A natureza, afirmamos, nenhuma coisa realiza em vão. Somente o homem, entre todos os animais, possui o dom da palavra; a voz indica dor e o prazer, e por essa razão que ela foi outorgada aos outros animais. Eles chegam a sentir sensações de dor e de prazer, e fazerem-se entender entre si. A palavra, contudo, tem a finalidade de fazer entender o que é útil ou prejudicial e, consequentemente, o que é justo e o injusto. O que, especificamente, diferencia o homem é que ele sabe distinguir o bem do mal, o justo do que não o é, e assim todos os sentimentos dessa ordem cuja comunicação forma exatamente a família do Estado. (ARISTÓTELES, 2002, Livro primeiro, Capítulo I, § 10, p. 14).

Tendo capacidade de discernimento, o ser humano não pode escapar da ética, é convidado, desafiado constantemente a fazer sua opção entre o certo e o errado, o bem e o mal. É também neste sentido que Paulo Freire aponta a politicidade intrínseca ao ser humano quando afirma que:
Já não foi possível existir a não ser disponível à tensão radical e profunda entre o bem e o mal, entre a dignidade e a indignidade, entre a decência e o despudor, entre a boniteza e a feiúra do mundo. Quer dizer, já não foi possível existir sem assumir o direito e o dever de optar, de decidir, de lutar, de fazer política. (FREIRE, 2002, p.58)
A existência humana em Paulo Freire nos lança inevitavelmente, à necessidade de tomar decisões acerca dessa existência, que é coletiva, que é social e histórica. Por isso, a existência humana em Paulo Freire não é um fato metafísico, algo dado antes do mundo. Ele mesmo afirma que
Na verdade, falo da ética universal do ser humano da mesma forma como falo de sua vocação ontológica para o ser mais, como falo de sua natureza constituindo-se social e historicamente não como um ‘a priori’ da História. A natureza que a ontologia cuida se gesta socialmente na história.(FREIRE, 2002, p. 20)
Temos a possibilidade, sempre há possibilidade de ruptura em algum ponto, não existe sistema infalível, não existe realidade permanente que a transcendência humana não supere. Mas esta possibilidade envolve riscos e, por isso mesmo, nos exige responsabilidade na opção que fazemos, na decisão que tomamos. O primeiro risco é o desvio da ética. Na opção que tomamos quem é que vai pagar por isso? Quem vai se beneficiar com isso? Quando ensinamos nossos alunos e nossas alunas das classes populares a perceberem as contradições de seu espaço social e político e a intervirem na reestruturação desses espaços, estamos nos posicionando política e ideologicamente contra os privilegiados daquele espaço social e político. Estamos garantindo possibilidades futuras em utopias, em projetos sociais, em projetos pedagógicos, em projetos políticos, e nas pequenas ações do cotidiano, quase invisíveis, quase imperceptíveis, mas que vão transformando o mundo, como uma semente de mostarda no segredo da terra se transforma em árvore imensa. Quando tomamos decisões em outra direção também estamos fazendo uma opção política explícita em favor da manutenção daquela situação de privilégios e marginalização e, portanto, transgredindo a ética, com afirmava o mestre Paulo Freire (2002). Toda decisão envolve aspectos e dimensões políticas e sociais, por isso, ela deve ser guiada pela ética.

Não podemos nos assumir como sujeitos da decisão, da ruptura, da opção, como sujeitos históricos, transformadores, a não ser assumindo-nos como sujeitos éticos. Nesse sentido a transgressão dos princípios éticos é uma possibilidade mas não é uma virtude. Não podemos aceitá-la. (FREIRE, 2002, p. 19)
E ninguém decide sobre os passos que evitamos... A decisão é nossa. Lembro que “já não é possível existir sem assumir” (FREIRE, 2002, p.58). Podemos, nós professores assumir projetos pedagógicos de ruptura com o status quo dominante da minoria privilegiada, ou podemos assumir projetos e ações que legitimem e reproduzam as discriminações sociais, econômicas, políticas e culturais, em favor da minoria privilegiada. São as nossas decisões que dirigem as nossas ações.


E é no domínio da decisão, da avaliação, da liberdade, da ruptura, da opção, que se instaura a necessidade da ética e se impõe a responsabilidade. A ética se torna inevitável e sua transgressão possível é um desvalor, jamais uma virtude." (FREIRE, 2002, p. 20).
Toda decisão exige responsabilidade e ética. E um profissional docente, que foi preparado para assumir com responsabilidade sua tarefa educativa, não pode se refugiar no argumento da ignorância. Ninguém que freqüentou uma formação sistemática de preparação de professores pode afirmar que não sabia das implicações políticas, sociais, e culturais de sua opção ao ensinar. Apesar de todas as regulações, de todas as imposições, ainda nos resta o espaço da decisão. Esta é nossa, mas ela afeta a nós e a outros; exige que seja acompanhada por uma reflexão profunda sobre nossas crenças, nossos valores, nossa percepção de sociedade e de ser humano.

Quando, enquanto sujeitos singulares e enquanto profissionais docentes, nós temos a consciência de que a pobreza não é um dado natural, que ela é “expressão do acesso às vantagens sociais” (DEMO, 2001, p.13), e de que o “atraso intelectual” de nossos alunos e alunas não é culpa de sua “preguiça” em estudar, então somos exigidos pela ética a assumir uma postura de reflexão crítica em torno desses fenômenos sociais e da análise de sua produção econômica, social e cultural, desmistificando as relações de poder que produzem a pobreza e o “atraso intelectual”. Nossa tarefa educativa tem uma exigência ética de caráter emancipatório, numa sociedade tão perversamente desigual como a nossa. Não podemos ficar neutros diante de uma realidade que nos afronta dia a dia. Não podemos legitimar as causas da pobreza e naturalizá-las. Não podemos nos consolar com a precariedade do ensino e assumir a fatalidade de sua ineficiência. Não podemos dizer que os filhos das classes populares não aprendem “porque isto” ou “porque aquilo”. Temos que mergulhar em nossa ação docente e descobrir o segredo do opressor que faz com que aceitemos a negação humana na escola, que destrua as nossas crenças e que esmague as nossas utopias para, dialogando com esse demoníaco, possamos nos emancipar e emancipar. Não há neutralidade política. De qualquer forma decidimos, optamos, pela beleza ou pela feiúra do mundo.


Temos a certeza de que não somos pássaros, isto sabemos. Mas... Voamos? Creio que sim. Voar é o exercício da liberdade, da criatividade, da transcendência. O ser humano não aceita o dado concreto, material. Este dado o desafia, o incita a superá-lo, a transformá-lo, a embelezá-lo, a humanizá-lo enfim, poetizando-o, revolucionando-o, produzindo cultura...
O artista conduz os outros homens e mulheres a um mundo de fantasia, onde seus anseios se libertam, afirmando desse modo a recusa da consciência humana em aceitar o condicionamento do meio. Mobiliza-se assim um potencial de energias submersas que, por sua vez, regressam ao mundo real, para transformar a fantasia em realidade. (THOMPSON, 1993, p.118)
Ângelus Silésius, místico medieval, nos alerta para a importância do sonho, da arte, da utopia quando afirma que “Se em teu centro um paraíso não puderes encontrar não existe chance alguma de, algum dia, nele entrar”. Quando lutamos, nos amparamos na memória pretérita que nos avisa, na esperança inacabável, da possibilidade futura, nos símbolos que fortalecem e dão sentido à nossa luta, oferecendo exemplos históricos, atualizando nossa memória, ressignificando os fatos históricos e seus personagens, nossas decisões e ações, instituindo-as de um conteúdo estético e revolucionário. O teatro, a poesia, o grafite, a dança, o canto, a música, a criatividade popular, em suas diversas manifestações, energizam nossos projetos e potencializam nossas ações, mobilizando “um potencial de energias submersas”, que nos ajudam a enfrentar com tenacidade os obstáculos de nossas lutas políticas pela força da utopia. Isto é voar!

E para voar perfeito temos que dominar metodologias e conteúdos que vamos ensinar; temos que conhecer as circunstâncias de nosso trabalho educativo em determinado local; temos que valorizar e articular as características do grupo discente com a metodologia mais adequada à aprendizagem daquele grupo; temos que conhecer as articulações do mundo do trabalho, da cultura, da política, da economia com o sistema educacional no qual estamos inseridos como profissionais da educação; temos que elaborar o projeto político-pedagógico da escola e seu currículo de forma participativa, levando em consideração as características e necessidades locais e tendo como referencial básico a função social da instituição escolar; etc. E lembramos ainda dos valores que a prática pedagógica deve trazer, a fim de dar significado emancipatório a tão importante intervenção...
Sou professor a favor da decência contra o despudor, a favor da liberdade contra o autoritarismo, da autoridade contra a licenciosidade, da democracia contra a ditadura de direita ou de esquerda [...] Sou professor contra a ordem capitalista vigente que inventou esta aberração: a miséria na fartura [...] [...] Sou professor a favor da boniteza de minha própria prática, boniteza que dela some se não cuido do saber que devo ensinar, se não brigo por este saber, se não luto pelas condições materiais necessárias sem as quais meu corpo descuidado, corre o risco de se amofinar e de já não ser o testemunho que deve ser de lutador pertinaz, que cansa, mas não desiste.(FREIRE, 2002, p. 115-116)
Tristeza de que não vamos por medo dos caminhos... O medo não pode nos paralisar. As vezes é vertiginoso o nosso olhar pelo espelho da nossa experiência social, política e cultural de nosso Estado e de nosso país. Pensamos no desemprego, na prisão, no isolamento, no esquecimento. Pensamos na dor, na morte, na perseguição... Os caminhos da luta política no Brasil e na Bahia são temerosos. Mas também lembramos “daqueles que morreram por outros que viverão”, como afirmou Vinícius de Moraes. Lembramos de Chico Mendes, de Santo Dias, de Irmão Josimo, da Irmã Dorothy e de tantos e tantos outros que lutaram pela vida em plenitude para os mais pobres, para os explorados, para os analfabetos, para os expulsos da terra, do acesso aos bens produzidos coletivamente. E esta lembrança nos anima, convoca nossas forças insuspeitas a construírem um mundo mais justo, mais solidário, democrático. Convoca-nos à humanidade plena que se realiza na luta política calcada na esperança, no sonho profundo de uma humanidade mais solidária, conciliada com sua vocação ontológica para ser mais, como afirmou o educador Paulo Freire. Coisa triste é ver um ser humano reduzido ao silêncio, destituído de esperança e de fé, esperando a morte como solução inevitável das desgraças pessoais e coletivas que sofre. “É triste ver esse homem, guerreiro, menino, com a barra de seu tempo por sobre os seus ombros...” Já cantava, choroso, Gonzaguinha.

A política, portanto, é da ordem do humano, está inscrita em sua gênese social e pessoal, em sua ontologia histórico-social. Arriscar-se, optar, dizer a sua palavra em direção ao mundo, a fim de pronunciá-lo/transformando-o, ensaiando vôos perfeitos nos espaços criados por nossos sonhos, nossa ação e nossa reflexão rumo à construção de uma sociedade solidária e democrática. Podemos também nos negar ao risco, à aventura de assumir nossa existência comprometida com a sociedade acima buscada. Nesse caso, também estaremos agindo a favor do autoritarismo, da competitividade, da corrupção, da violência e da manutenção da situação de marginalização em que se encontram as classes populares. Não nos neguemos enquanto seres políticos, pois, na mesma medida, estaremos nos negando enquanto seres éticos e, desgraçadamente, abrindo mão de nossa humanidade.

REFERÊNCIAS

ALVES Rubem. O Retorno Eterno. 24. ed. Campinas, SP: editora Papirus, 2003
ARISTÓTELES. Política. São Paulo, SP: Martin Claret, 2002.
BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. 8. ed. Brasília, DF: edit. Univers. de Brasília, 1995.
DEMO, Pedro. Pobreza Política. 6. ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2001.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Saberes necessários à prática educativa. 24. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002
RIBEIRO, Maria L. A Formação Política do Professor de 1.º e 2.º Graus. 4. ed. Campinas, SP: Autores Associados, 1995.
THOMPSOM, George. Marxismo e Poesia. Lisboa Editorial, 1993.

2 comentários:

  1. Professor precisava ler esse texto antes de começar meu estagio. Algumas reflexoes feitas por vc pode mudar o modo como estou encarando o estagio e os alunos. Me levou a refletir sobre minhas ações

    sérgio

    graduando em geografia - serrinha

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  2. Belezura Sérgio!!! A ideia é essa mesma: a reflexão sobre o cotidiano tecido, tecer uma vontade renovada de fazer diferente, de construir outros olhares sobre o mundo, a escola, a cultura, nossos educandos e nossas educandas e dar o salto em busca de um jeito mais comprometido, mais ético, mais poético, mais político - no sentido pleno dessa palavra- a fim de nos tornarmos, de fato, educadores.
    Continue tecendo comigo e com outros e outras.
    Um abraço: Joselito

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joselitojoze@gmail.com