Nesse instante, desse instante, estava dialogando com meu filho sobre Filosofia, resolvendo dialogicamente a atividade “de casa”. Foi quando me deparei com a poesia abaixo, o que me enviou, inevitavelmente, ao universo filosófico do olhar.
Receita de olhar
Nas primeiras horas da manhã
desamarre o olhar
deixe que se derrame
sobre todas as coisas belas
o mundo é sempre novo
e a terra dança e acorda
em acordes de sol
faça do seu olhar imensa caravela.
(MURRAY, Roseana. Receitas de olhar. São Paulo: FTD, 1997. p.44)
Perfeito! “Desamarrar” o olhar para ver mais longe e superar a miopia que esconde as coisas belas. “Desamarrar” o olhar é um convite filosófico e poético para contemplar curiosamente o mundo e navegar sobre todo um universo que passa a existir ao nosso redor. Então isso já nos leva a perguntar se o que existe, existe através do nosso olhar. Pablo Neruda, grande poeta chileno, afirmava em um de seus fantásticos poemas que, diante da mulher amada,
“Nada mais veem meus olhos quando a veem.”
A paixão nos cega e, assim, tateamos no escuro, da terra, do ar ou do mar, o amor que nosso embaçado olhar vê profundamente apenas com o coração. É Cecília Meireles que, em um de seus belos versos nos partilha a sua procura “marítima” por si mesma.
(Mas, neste espelho,
no fundo desta fria luz marinha,
como dois baços peixes
nadam meus olhos
à minha procura...)
Talvez o mundo seja apenas um oceano que nos distrai do encontro com nós mesmos. São tantas as coisas coloridas, saborosas e divertidas que preenchem nossas ânsias que, de repente, paramos de pensar em quem somos nessa trama e nosso olhar vai se amarrando nesses fios sedutores das mil coisas do mundo e, nessa astuta teia, de tanto ver o que vemos terminamos deixando de ver o sagrado in-visível. É o que nos cega. É preciso um “Ensaio sobre a cegueira” para ver se saímos com um olhar diferente dela. E, surpreendentemente, descobrirmos que não existimos em nosso olhar, que “desexistimos” no que existe, pois nosso olhar se “derrama” em desperdício. O olhar repousa sobre o desejo, não há como negar. E o mundo do “Amor sem Escalas” denuncia subjetividades tênues como nuvens, cujo olhar empobrecido de humanidade detesta pousar em sua própria intimidade, pois foge dela, pois só vê decadência, ao invés de também, cadência. É o mundo que a gente vê, e que por ver, a gente cria e acredita sem pestanejar mais, sem mais olhar para o nosso olhar e, de lá, veri-ficar outros pontos de vista.
Quem sabe outro mundo que não existia não esteja nos chamando pra navegá-lo com um olhar contemplativo, surpreso, encantado? Quem sabe velas brancas sobre o azul imensidão não proponha um navegar imprescindível na descoberta de continentes insuspeitos? Caravele por aí seu olhar curioso, procurando ou por si, ou por outro (a) que pode vir a existir em ti, caso seu olhar se derrame na trajetória de sua subjetividade.
Pra terminar, um poema "meu" do poema acima que nasceu quando meu olhar pousou em seus versos e sentidos que ecoaram e escoaram em meus olhos derramados.
O sol acorda carinhosamente a terra
aos sons afinados
de seus raios.
Meu olhar se abre preguiçoso
mas não vê na manhã
o sentido glorioso.
Sou míope, admito.
O que posso ver
soa meio esquisito
na palavra
Só existem os sentidos
na partilha
de cada ponto de vista
de cada ponto de cegueira
que me visita.
Nesse mundo impreciso
construído por um ver viciado
viro zumbi de mercado
andando tolamente
à procura de ofertas,
promoções, emoções
que se esvaem
ao fim das liquidações.
Joselito da Nair, do Zé, do Rafael, de Ana Lúcia, de Tantas Gentes e de Jesus, O Emanuel.